“Eu
acredito que a única desculpa que temos para sermos musicistas e para fazermos
música de qualquer tipo é para que possamos fazê-la diferentemente, executá-la
diferentemente, estabelecermos a diferença da música em relação à nossa própria
diferença” (Gould em Genius Within: the inner life of Glenn Gould).
“Reconhecer-se a si próprio no estranho,
sentir-se em casa nele, é o movimento básico do espírito, cujo ser consiste justamente
em retornar, daquilo que é outro, a si mesmo” (Gadamer, 2006: 13).
No post anterior, apresentei a
ideia de práxis da compreensão a fim de argumentar que existem formas de
conhecimento distintas daquela produzida pela ciência que devem ser levadas em
conta em qualquer disciplina que se interesse pelas práticas humanas e seus
produtos. Além disso, argumentei brevemente sobre como a compreensão gerada
pela experiência prática é também uma forma de autocompreensão. A fim de tornar
este argumento mais claro, seguirei aqui um caminho iniciado por Gadamer para demonstrar
como o conhecimento gerado pela experiência estética, particularmente da música,
pode ajudar a iluminar o processo de autoconhecimento e, portanto de
autodeterminação, dos seres humanos.
Meu objetivo mais geral é refletir
sobre a possibilidade de uma concepção de agente humano como um ser que busca
se autodeterminar por meio da (auto)interpretação, mas uma concepção que não se
apoie em uma epistemologia que, fundamentada em uma metafísica do sujeito,
reduza o autoconhecimento a um simples “tornar-se objeto” para si mesmo. Não se
trata, como Heidegger teria feito antes de Gadamer, de recusar o projeto
epistemológico em sua inteireza (Lawn e Keane, 2011:45), nem de desacreditar tão
completamente o “subjetivo” a ponto de fazer desaparecer a noção de “Outro” e,
assim, tornar a compreensão impossível (Gadamer, 2000: 286). O que está em questão
é a incorporação de uma teoria do conhecimento de acordo com a qual o
“subjetivo” (ou o “pessoal”, que é o termo que Gadamer prefere a fim de evitar
as aporias da metafísica do sujeito) não constitui a “substância de todas as
nossas ideias” (Ibid: 277) e, por essa razão, não pode adquirir primazia epistemológica.
Tomarei como cerne
da minha investigação a ideia de êxtase, algo que, tanto para Gould como para
Gadamer, representa a forma mais perfeita de abertura e de encontro com um tipo
de objeto que, por seu caráter simbólico (i.e., cujo significado sempre excede
aquilo que é apresentado), tem o poder de gerar estranhamento e de alargar
nossos horizontes: a obra de arte. Obviamente, meu propósito não é opor Gadamer
a Gould e decidir “quem tem razão”, mas efetuar uma interpretação hermenêutica
da práxis de um intérprete musical que conhece profundamente aquilo a que suas interpretações dizem respeito, ou seja,
a própria música.
O termo êxtase diz respeito a um
esquecimento do self, um “estar fora de si” (do grego ex, fora, e stasis,
movimento) que, ainda que para Gould não constitua a “finalidade” da arte,
constitui a “única busca legítima do artista” (Gould, 1984: 254). Embora Gould não defina o termo e frequentemente o utilize no sentido de introspecção - o
que caracterizaria o seu oposto, o “ênstase” – uma análise mais atenta de sua
obra revela que o que está em questão é justamente uma transcendência do self
por meio da atenção integral à estrutura de uma obra, gerando um sentido de unidade
entre esta e o self que, por sua vez, passa a se reconhecer naquela. O êxtase
é, neste sentido, algo que contribui para efetivar o verdadeiro “propósito” da
arte: “a construção gradual, ao longo de toda uma vida, de um estado de
encantamento e de serenidade” (Ibid.: 246).
O “esquecimento de si” que
possibilita este sentido de unidade implica em um deixar-se levar pela estrutura da obra, o que, para
Gould, é impossível quando o foco da atenção repousa na subjetividade do autor
ou do intérprete da obra. Isso pode ser melhor compreendido a partir de sua
crítica ao romantismo (particularmente do concerto romântico) e sua ênfase na
figura do virtuoso.
Para Gould, muito da música
romântica opera uma distinção entre “um fenômeno objetivo e a resposta
emocional que tal fenômeno pressupõe”, uma distinção que, em sua melhor forma,
representaria “o último bastião de um mundo determinado a delimitar aquilo que
ele concebeu como os limites da quantificação” (Gould, 1984: 76). Em linguagem
mais filosófica, o que Gould está se referindo é à crítica da razão operada
pelo movimento romântico a partir de um deslocamento das questões
epistemológicas para as questões estéticas, cuja ênfase recaia menos sobre a
racionalidade do que sobre a intuição, a sensibilidade e a liberdade. Mas o que
está pressuposto em sua crítica ao romantismo é que isso foi feito às custas de
uma valorização excessiva de elementos subjetivos, em detrimento daquilo que
ele chama de “estrutura” ou “espinha dorsal” da obra. Mais do que isso, essa valorização ocorreu a partir de uma espécie de atomização gerada por um processo de diferenciação social no universo musical. Em um documentário de 1974, Gould coloca a questão nos seguintes termos: “o que deu errado na música deu errado no século XVIII, quando o compositor, o intérprete e a audiência se separaram e se tornaram isolados”.
Lembremos que esse foi o período de
ascensão da burguesia, que passa a consumir algo que antes estava restrito aos
salões das cortes. Espaços seculares relativamente autônomos, como salas de
concertos e de recitais, parques e teatros, substituíram as igrejas, as cortes
e os salões privados onde compositores como Bach, Mozart, Haydn e Beethoven (em
seus primeiros anos) tocavam ou regiam suas próprias obras. Essa substituição foi, em parte, facilitada pelo desenvolvimento tecnológico dos instrumentos
musicais, que os tornou mais potentes e, portanto, mais adequados a ambientes maiores,
o que também contribuiu para que os músicos se desligassem do patrocínio das
cortes e passassem a depender de um público pagante. Mas esse público, ao contrário do público anterior, não era particularmente versado em música, e isso contribui para a centralidade que, no século seguinte, a figura do virtuoso adquire, particularmente
com as carreiras exemplares de Paganini e Liszt que, embora compositores,
eram muito mais admirados por suas aparições demoníacas nos palcos do que por
suas composições. (Said, 2000).
A estrutura da música também mudou,
particularmente a do concerto que, ao possibilitar a exibição das habilidades
do virtuoso, passou a ser a forma musical preferida. Em seu The History of the
Concert (A História do Concerto), Thomas Roeder (1994: 199) argumenta que, em
consonância com o individualismo crescente, a figura do solista adquire o
primeiro plano e a tensão antes existente entre a orquestra e o solista é
substituída pelo “uso quase contínuo de um solo brilhante contraposto a uma
orquestra geralmente subjugada”. Os movimentos mais lentos, que não eram
particularmente adequados como veículos de exibicionismo virtuosísticos, tornaram-se mais curtos e passaram a
constituir simples introduções para finais grandiosos e muito rápidos.
O concerto do século XIX adquire
ainda o que, em termos musicais, pode
ser chamado de uma maior variedade cromática, isto é, uma maior combinação de
escalas, acordes e harmonias (a harmonia pode ser definida como um conjunto de
notas tocadas ao mesmo tempo e que são consideradas “passíveis” de estarem
juntas). O uso da dissonância também se tornou mais frequente, especialmente
quando se queria indicar sentimentos ou eventos negativos. As melodias foram
enfatizadas, a fim de evocar emoções (a melodia, em contraste com a harmonia,
pode ser pensada como as notas que são tocadas ao longo do tempo, umas após as
outras) e os tons menores, associados à tristeza, foram extremamente valorizados
nos concertos do século XIX. As composições se tornaram mais longas e seus
temas foram inspirados por expressões artísticas de fora da música, como a
poesia, as artes plásticas, a literatura (o exemplo mais claro disso são os
lieder de Schubert, baseados na poesia de grandes poetas românticos como Goethe
e Schiller).
Para além das características
propriamente musicais do concerto romântico, sua ênfase na figura do virtuoso
gerou um tipo de experiência do concerto que, para Gould, seria profundamente
antitética à ideia de êxtase e que se expandiu nos séculos seguintes. Se o objetivo último do artista é criar
condições propícias ao êxtase, que para Gould consiste numa união perfeita
entre o self (do intéprete ou da audiência) com a estrutura da obra, a
separação ou isolamento gerado pelo concerto romântico foi exacerbado em meados
do século XX, tornando este estado ainda mais difícil de ser alcançado. Nas
palavras de Edward Said (2000: 4):
Em meados do século XX, a experiência do concerto foi refinada e especializada em termos de uma distância profunda da vida cotidiana, descontínua com a atividade de se tocar um instrumento por prazer e satisfação pessoal, inteiramente conectada ao mundo competitivo de outros intérpretes, de vendedores, agentes e empresários, assim como de executivos crescentemente controladores da indústria fonográfica e das empresas de mídia.
Para fins de comparação, observe como o concerto de Brandenburgo n. 5, de J. S. Bach (cerca de 1720), considerado o primeiro concerto a exibir um solo para teclado, revela a tensão entre orquestra e solista a que Roeder se refere, sem que aquela seja subjugada por este, como ocorre no concerto romântico - abaixo representado pelo Concerto para Piano no. 1, de Liszt, interpretado pelo pianista chinês Lang Lang.
A impossibilidade do êxtase em uma experiência de concerto na qual a ênfase recai na performance pessoal deve-se, segundo
Gould, ao fato de que isso desvia a atenção do intérprete da música para si mesmo e, da
audiência, para o virtuoso. Além disso, Gould considera que os concertos geram, no intérprete, hábitos (ou
“perversões”, como ele prefere) relativos ao uso de recursos teatrais que destorcem a
estrutura da obra à medida em que se busca entreter a audiência. Um exemplo
desse tipo de “perversão” é descrito por Payzant em relação à gravação de Gould da
Partita no. 5 de Bach, em julho de 1957, após uma temporada europeia:
Ele tocou a quinta partita ou trechos dela em quase todos os programas, fosse como parte do mesmo ou como um encore. De forma a projetar a peça em salas de concertos grandes e lotadas, ele adquiriu hábitos de palco: dinâmicas expressivas e rubatos, e outros recursos. Esses truques apareceram na gravação, o que é uma coisa ruim, segundo Gould, dado que não apenas são redundantes, mas que distraem (Payzant, 1994: 24).
Compare aqui as gravações de 1957 e
a de 1954 (o trecho equivalente ao vídeo de 1957, a Allemande, tem início aos 2 minutos e 5 segundos).
No que diz respeito à ênfase na
figura do virtuoso, Gould se opôs a isso de diversas formas. Uma delas foi por
meio de artigos, como o autoexplicativo “Nós devemos desenterrar os românticos
raros?... Não, eles são apenas um modismo”, originalmente publicado no New York
Times, em 1969. Lá, Gould critica a
tentativa de reatualização do culto ao virtuoso em programas de concertos como
os organizados pela Juilliard School of Music, que insistiam na inclusão de
obras como o “perenialmente fascinante, ainda que perpetualmente insatisfatório,
Primeiro Concerto para Piano” de Liszt (Gould, 1984: 72-73).
Outra, talvez mais radical,
consistiu em sua interpretação nada ortodoxa do Concerto para Piano no. 1 de
Brahms, em 1962, sob a regência de um atônito, ainda que divertido, Leonard
Bernstein. O propósito de Gould neste interpretação particular foi revelar as
qualidades e os defeitos que ficaram obscurecidas sob "cem anos de camadas de
gestos interpretativos” (Gould, 1984: 70). Isso aponta, mais uma
vez, para a preocupação de Gould com a estrutura da obra e deixa claro que, em
lugar de uma suposta “autenticidade”, o que está em questão na interpretação é
a possibilidade de, ao fazer diferente, enfatizar-se possibilidades e aspectos
até então não revelados da própria obra.
Bernstein, que não concordou com a
interpretação de Gould, mas que concordou em regê-la em respeito à seriedade do
pianista, iniciou a performance com uma fala onde explicitava suas
discordâncias e, ao final, brinca, dizendo que aquela seria a primeira e última
vez que acompanharia Gould.
Isso teve uma grande repercussão na
imprensa, inclusive com a sugestão de que a performance testemunhava o
nascimento de uma cisão entre os dois. Com isso, Gould escreve o que é talvez
um de seus textos mais esclarecedores sobre a ideia de interpretação e, em particular, suas razões para sua interpretação do concerto em questão, o seu
“N’aimez-vous pas Brahms?” (Você não gosta de Brahms?), do qual faço uma
citação extensa:
...Figuras como Beethoven e Brahms quase sempre aparecem como autores de concerto secundários, talvez porque suas sensibilidades ingênuas se recusem a tratar com indulgência as convenções absurdas da estrutura do concerto: a entrada prévia da orquestra, para excitar a expectativa do ouvinte para a entrada grandiosa e dramática do solista; a estrutura temática cansativamente repetitiva, arranjada para deixar o solista provar que ele pode realmente imprimir uma marca mais radical naquela frase do que o sujeito na primeira clarineta que a anunciou, e, acima de tudo, a aristocracia datada da composição das cadências – os trinados e arpejos, todos absolutamente supérfluos à proposição temática fundamental. Tudo isso ajudou a construir uma tradição de concerto que promoveu alguns dos exemplos mais embaraçosos da necessidade humana primeva de se exibir. Tudo isso ajudou a substanciar o ego ultrajante do solista. As peculiaridades da minha interpretação, portanto, têm como preocupação a tentativa de subordinar o papel do solista, não de engrandecê-lo – integrar em vez de isolar”. (Gould, 1994: 70-71).
Características como essas, levaram
Gould a se referir à exibição nas salas de concerto como uma forma de “esporte
sangrento”, fazendo com que ele abandonasse sua carreira de concertista no auge de seu sucesso,
aos 32 anos de idade. Até sua morte, em 1981, aos 50 anos, Gould vai
se dedicar inteiramente à tentativa de produção do êxtase à distância, tentando
remediar aquilo a que Adorno se referiu como alienação e regressão auditiva ao
substituir as salas de concertos por nada menos do que a própria indústria
cultural! Mas antes de expor esta questão, retornarei a Gadamer, no próximo
post, a fim de enfatizar a relação entre as noções de êxtase e de jogo e que
representam uma alternativa ao isolamento e à atomização a que Gould se refere
nos concertos.
5 comentários:
Adorei o texto Cynthia! Não consegui escutar como gostaria todas as performances musicais e também pretendo reler o texto, pois muita coisa me escapa. Mas, ainda assim, adorei a associação entre música, estética e o "fazer sociológico" e também a forma com ele foi construído.
Abração,
Raquel.
Obrigada, Raquel. Na verdade, trata-se de uma ideia em construção onde o objetivo é colocar alguns dos conceitos gadamerianos "para funcionar". Vamos ver se, por esse caminho, dá para extrair uma ideia de "sujeito" de base hermenêutica (uma ideia que, diga-se de passagem, tem tudo para naufragar) :)
Difícil mesmo Cynthia... Mas quem sabe dá certo, eu ficaria muito feliz!! Me amedronta tudo que implica em desconstruir o sujeito...
Um beijo,
R.
Cynthia e Raquel,
Eu passei dias e dias paquerando esse texto de Cynthia, mas me dizendo que era longo demais, que eu estava sem tempo para ler. Quando li o comentário de Raquel (leitora em quem confio demais) conclui que eu estava perdendo algo de muito bom: arregacei as mangas e confirmei que Raquel tem toda razão. Pois, Cynthia, pode construir uma canoazinha para que a ideia de sujeito de base hermenêutica não naufrague.
Achei interessante uma "coincidência": se entendi, você articula as críticas de Gould ao romantismo à noção individualista de homem da época; eu associei a pertinência da sociologia de Castel (que, para alguns, fez seu trabalho sobre a psiquiatria mais influenciado por Goffman do que por Foucault) à articulação sociológica entre fracassos individuais e estruturas sociais - ou seja, à tradição sociológica de crítica à concepção individualista do homem...Em outros termos, a uma ideia de sujeito não metafísica (Gadamer preferia a noção de pessoa a de sujeito? Pois Castel, acho que seguindo Elias, preferia a de indivíduo a de sujeito)...
Tâmara,
Desculpe a demora em responder ao seu comentário: na verdade, fiquei na dúvida se o cerne da questão diz respeito a uma noção individualista de sujeito. De fato, diz, sim, mas a questão é o que seria uma noção "individualista" neste caso. Vou tentar responder a isso num próximo post. Beijos!
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