quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Tramas de Babel: subjetividade e tradução em tempos de rede



Cristina Petersen Cypriano


Nas páginas que encerram o texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Jacques Lacan propõe aos psicanalistas uma espécie de compromisso com a prática clínica. Ele sugere “que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo da tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra continua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas” (Lacan, 1998, p. 322).
Dessa colocação de Lacan nascem os três feixes temáticos que norteiam as questões exploradas nesse breve ensaio: um que diz respeito à subjetividade de nossa época, outro que se volta para a espiral que hoje nos arrasta na obra contínua de Babel e um terceiro que nos coloca a refletir sobre a função de intérprete na corrente discórdia das línguas.
A marcação da contemporaneidade no tratamento dessas questões é aqui feita pela crescente presença em nossas vidas das redes tecnológicas de informação e comunicação, de modo que toda a discussão se dá em torno do intenso uso da internet, principalmente por parte das gerações que nascem e crescem assimilando essas tecnologias aos seus modos de ser e de se ligar uns aos outros. Trata-se de crianças e adolescentes que dificilmente se separam de seus celulares, smartphones, tablets ou computadores e que vivem conectados às redes sociais online.

Aprés l’Orgie

No início de um trabalho sobre os fenômenos extremos, Jean Baudrillard (1990) formula em caixa alta a seguinte questão: “QUE FAIRE APRÉS L’ORGIE?”, ou seja, o que fazer depois da orgia? Ele propõe essa questão como uma formulação coletiva diante de uma atualidade que sucede a um momento explosivo: “o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pulsões inconscientes, liberação da arte”. (Baudrillard, 1990, p.11).
Essa questão que foi colocada por Baudrillard nos anos 1990 pode ser atualizada pouco mais de uma década depois da ampla liberação das tecnologias de conexão às redes informáticas para uso de adolescentes e crianças. O que fazer com os casos extremos nos modos de relação com essas tecnologias?
Em 2012, o grupo de dependência de Internet, do ambulatório de transtornos do impulso vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo oferecia orientação aos pais de adolescentes e jovens que faziam uso excessivo de Internet e/ou Jogos on-line. Em 2014, a mesma instituição convidava os próprios adolescentes para se inscrever no tratamento: “o Hospital das Clínicas de São Paulo abre inscrições para tratamento de adolescentes paulistanos viciados em Internet. A instituição convida pessoas de ambos os sexos, entre 12 e 17 anos e 11 meses, que se considerem dependentes do acesso à Web”.
A China foi o primeiro país a considerar, desde 2008, o vício à internet como um distúrbio mental e não tardou a construir centros de reabilitação para adolescentes e jovens adictos Em 2009 já haviam sido construídos 300 centros e em 2014 chegaram em torno de 400. As dúvidas sobre como lidar com esses jovens e adolescentes mobiliza não apenas médicos, psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. Persiste entre pais, professores e adultos em geral uma dificuldade em conviver cotidianamente com esses jovens que, por todos os lugares, fixam os olhos nas reluzentes telas de suas máquinas e por elas deslizam seus polegares, ora entretidos, ora sorrindo, ora apáticos.
Recentemente exibido no Brasil, o filme “Homens, mulheres e filhos” reúne uma gama de situações que dão testemunho das dúvidas e das dificuldades que os adultos têm para lidar com essa espécie de onipresença da Internet na vida cotidiana deles próprios e de seus filhos. Os personagens do filme não sabem como proceder quando as tecnologias de conexão em rede começa a fazer parte das relações amorosas, sexuais, afetivas, de maneira ilimitada. O que fazer?
    Ocorre que também os próprios jovens se mostram perdidos, sem saber como lidar com os atrativos das novas tecnologias e com as facilidades expressivas que são oferecidas pelos serviços online. Em sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, Rosely Sayão relata: “um jovem de 17 anos escreveu contando que abriu uma conta no Twitter, mas que estava prestes a fechar porque percebera que muita gente, inclusive ele, escreve coisas impulsivamente e depois se arrepende, mas aí é tarde demais porque o texto já se espalhou”.
Foi também uma jovem que publicou em sua página pessoal no Twiiter uma crítica bem humorada à expressividade ilimitada que vem sendo praticada nos sites de redes sociais. Ela escreve: “ai vc vai mandar um ‘oi’ e sem querer erra a tecla e manda ‘eu te amo vc é tudo na minha vida, vamos casar’”
Esse breve texto dá mostras de como a expressividade amorosa que vigora nas redes sociais online – principalmente no Twitter – caracteriza-se pela fugacidade que acompanha uma espécie de injunção ao ato de comunicar, a quem queira saber, uma experiência afetiva. É como se as palavras deslizassem das esferas de intimidade na direção de um público heterogêneo e, não raro, desconhecido

Palavras de Amor

Mesmo antes da ampla assimilação da Internet como “espaço relacional onde os indivíduos, em vez de se encontrarem fisicamente, conversam e trocam dados através de terminais e redes interpostos” (Nora, 1995, p. 11), já se observava nas interações online a forte presença de temas ligados ao amor e à sedução. Em uma investigação feita há mais de uma década sobre as emoções na Internet, Ben-ze’ev (2004) perguntava-se por que ali eram tão intensos os afetos, uma vez que sempre havia a mediação de uma máquina, o que poderia redundar em distanciamento e frieza. O anonimato e a imaginação eram, então, elementos fundamentais das relações afetivas e/ou eróticas engendradas no milieu digital. Isso porque as interações que aconteciam nas salas de bate-papo e nos fóruns de discussão acolhiam participantes “sem nome” e “sem rosto” que se apresentavam por apelidos ou codinomes, favorecendo a impessoalidade e a fantasia.
De lá para cá, entretanto, com a crescente exposição dos indivíduos em sites de rede social, o anonimato e a imaginação perderam a força como principais propulsores de emoções na Internet. As declarações de amor que hoje são proferidas nas redes sociais aparecem nas páginas pessoais de quem não somente se dá a conhecer por meio de fotos e textos, como frequentemente o faz com riqueza de detalhes. Os sentimentos se manifestam com a publicação de depoimentos e testemunhos que acompanham a partilha de experiências cotidianas, sejam elas prosaicas ou significativas, superficiais ou profundas. De modo que a intensidade afetiva das relações em ambiente digital tem crescido juntamente com a mudança de perfil nos modos de apropriação social da Internet: se no início do século XXI a utilização das redes tecnológicas era prioritariamente instrumental, hoje os usos dessas redes privilegiam as relações sociais, compondo uma “web relacional” (GENSOLLEN, 2010) infiltrada por emoções.
Hoje, a publicação online de palavras de amor se insere com muita naturalidade em meio a outras modalidades de expressão afetiva.  A maneira como os jovens e adolescentes proferem seus sentimentos nas redes sociais faz surgir um “discurso amoroso” (Barthes, 1981) inteiramente alheio ao encadeamento linear das narrativas românticas, pelas quais o ser amado é inserido em uma trajetória pessoal duradoura. Não raro o amor declarado nessas redes é expresso por abreviadas unidades de sentido (Lash, 2001). São também muito comuns no ambiente digital os enunciados que exprimem tão somente o desejo ou a vontade de amar, “esse impulso surdo e sem objeto, em particular na juventude, em direção a qualquer coisa a ser amada”, como definiu Simmel (2001, p. 127). Não há nesses enunciados, como naqueles com destinatário definido, fortes indícios de que se trata de algum tipo de atualização da busca do romance que encontra na expectativa do amor compartilhado um processo ativo de engajamento com o futuro (Giddens, 1993, p. 62).
As peculiaridades nos modos de expressão afetiva dos jovens integrantes das redes sociais online ficam mais evidentes quando tomamos como referência o amor romântico, cujo significado é vinculado a atributos tais como as nítidas partições que distinguem entre o racional e o sentimental, o público e o privado, o objetivo e o subjetivo, o gênero masculino e o feminino, e assim por diante. É também o amor romântico que em grande medida dá sentido à nuclear família moderna e às atribuições sociais da maternidade e da paternidade.
O amor que vem sendo declarado nas redes online não se parece com nenhum tipo de aprimoramento ou de decadência qualitativa em relação às trocas afetivas pautadas pelo romance. Tem muito a dizer, entretanto, de uma geração que cresce habituada a estabelecer relações tecnologicamente mediadas. Os sites de redes sociais operam mediações que agregam padrões tecnológicos às relações de seus frequentadores. Variam as lógicas pelas quais são modelados os padrões que regem os distintos tipos de mediação que eles exercem, contudo, existe em todos eles um incentivo à formação de laços emocionalmente investidos. Talvez o mais emblemático fomentador de laços afetivos seja o polegar em riste do Facebook que dispensa qualquer outro recurso de linguagem: você curte minha foto, eu curto seu post, você curte meu comentário, eu curto seu compartilhamento, e assim, eu sinto que você me curte e vice-versa. Ficam dadas as condições para o recíproco prazer do sentimento correspondido e nada mais.
É nesse tipo de site que tanto facilita as interações puramente emocionais que vêm sendo publicadas as palavras de amor. E são esses mesmos sites que favorecem os desvios, “os contágios, as epidemias, os ventos” (Deleuze & Parnet, 1998, p. 57) que interferem ali, onde o eu se dirige ao tu do amor. Nesse momento, a pergunta se impõe: afinal, como esse eu do enunciado amoroso se liga ao tu do amor pela mediação das redes tecnológicas?
Não se trata, entretanto, de atitudes isoladas. Entre os jovens e os adolescentes, o proferimento amoroso em rede vem se tornando parte edificante de uma espécie de acervo de práticas significativas, princípios de conduta e valores que são por eles mesmos legitimados. Trata-se de processos de legitimação pelos quais as experiências compartilhadas nos sites de redes sociais passam por um processo de “sedimentação intersubjetiva”, ou seja, se inserem em um processo de objetivação que “abstrai a experiência de suas ocorrências individuais biográficas” e as torna “uma possibilidade objetiva para todos” (Berger & Luckmann, 1985, p. 97).
Um olhar para o âmbito da cultura de nossa época nos permite perceber que a emergência desse tipo de acervo está relacionada a decisivas redefinições em alguns dos códigos fundamentais que regem nossas linguagens, valores, hierarquias de práticas, trocas e mesmo os nossos esquemas perceptivos – tomando como referência a perspectiva de Michel Foucault (1981). Redefinições de códigos que constituem um produto cultural de nosso tempo, com o qual temos que lidar e no qual havemos de nos encontrar, ainda que não estejam muito claros quais sejam os novos parâmetros – ou, para usar os termos de Lacan, qual seja a espiral que nos arrasta na obra contínua de Babel (Lacan, op. cit.).
É importante considerar que a vigência de um novo produto cultural não corresponde necessariamente ao abandono ou ao esquecimento dos códigos fundamentais que o antecedem e que já estão profundamente enraizados em nossos modos de ser e de estar no mundo. Não se trata de uma superação ou substituição do velho pelo novo. Há, antes, um estado de coexistência entre o novo e o que existia antes que proporciona sobreposições e tensões cada vez mais frequentes e profundas. Tais tensões estão incorporadas no habitual conflito geracional que conta hoje com um particular ingrediente: um estranhamento que é, por vezes, inconciliável, pois parecem por demais abruptas algumas das diferenças entre os modos de ser e de viver que distinguem a nossa geração da geração que nos sucede. Tais diferenças suscitam as questões que compõem o feixe temático que se volta para a subjetividade de nossa época.

Estrangeiros e habitantes

A indagação de Michel Serres (2012, p. 6) diante de seus alunos assimila a inquietação de muitos professores, pais e adultos em geral: “quem se apresenta, hoje, na escola, no colégio, no liceu, na universidade?”. Essa pergunta tão genérica quanto profunda é formulada a partir da constatação de que “pelo celular, eles acessam todas as pessoas; pelo GPS, todos os lugares; pela web todo o saber: eles assombram um espaço topológico de vizinhanças, ao passo que habitamos um espaço métrico, referenciado por distâncias” (Serres, 2012, p. 13). Nesse espaço de vizinhanças, “resta inventar novos laços. Testemunho disso é o recrutamento do Facebook”, sendo que de maneira completamente diversa, “nós, adultos, não inventamos nenhum laço social novo. A dominação da crítica e da suspeita faz mais é destruí-los” (Serres, 2012, p. 16).
A demarcação de diferenças observada por Serres implica em compreendermos que, de alguma maneira, o mundo que esses jovens habitam nos provoca todo tipo de estranhamento, embora seja também o lugar onde vivemos. Com muita frequência, nós, adultos, utilizamos o Google para fazer pesquisas, o GPS para chamar um táxi ou encontrar um endereço, assim como nutrimos perfis em redes sociais, principalmente no Facebook e no Whatsapp. Mantemos, no entanto, uma certa desconfiança quanto à natureza dos laços que são cultivados nessas redes sociais online. A pergunta padrão é: são todos realmente amigos? Existe também uma ênfase mais quantitativa para a mesma questão, que indaga se existe alguém que realmente tenha centenas de amigos. Questão que nos é própria e que dificilmente é colocada pelos integrantes das novas gerações.
Os jovens de hoje nascem e crescem em um mundo onde aquilo que “nós designamos convencionalmente pelo nome de ‘amizade’ é um tipo de ligação inteiramente específica dos ambientes sociais da Web”, como observou Antonio Casilli (2010, p. 270) em um trabalho sobre as ligações numéricas. Isso significa aceitar que, embora possua a mesma designação de um vínculo social offline, trata-se de um tipo de laço que não existe senão nas dinâmicas típicas do mundo online. Na língua inglesa “essa amizade assistida por computador toma o nome de friending. O neologismo designa o ato de ‘amigar’ ou de ‘tornar-se amigo de’ alguém” (Casilli, 2010: 271). Não é de se admirar que essa forma de ligação assuma o estatuto de uma ação, uma vez que abarca o movimento voluntário e persistente de constituir redes sociais, cujas interações atravessam transversalmente as relações face a face.
Cabe lembrar que os sistemas tecnológicos são exímios fomentadores desse tipo de ação. No incentivo à conectividade que engendra ligações sociais, tais serviços recorrem à aplicação de hipóteses formuladas no âmbito dos estudos de rede, tal como ocorre com a operacionalização da propalada ideia de “mundo pequeno”, segundo a qual, é “provável que o mundo esteja globalmente conectado”, uma vez que “praticamente qualquer par de indivíduos pode se conectar através de uma cadeia curta de intermediários” (Watts, 2009: 52). É bom lembrar que, na Internet, esse encadeamento é sustentado por tecnologias que tornam de fato exíguas as distâncias geográficas. Mais uma vez fica posta a questão: que espécie de laço social está sendo cultivado com a participação desses sistemas tecnológicos baseados em rede?
A persistência da dúvida muito se justifica pelo fato de que nosso regime de subjetividade está vinculado a outro mundo, onde as distâncias são métricas, como notou Serres. Nós nascemos e crescemos em outro tempo-espaço, em que as relações se traçam olhos nos olhos e as amizades acontecem numa cumplicidade da experiência que é compartilhada na duração. Nascemos e nos tornamos sujeitos em um mundo no qual as palavras evocam o som da voz, um mundo em que os emoticons ou emojis não fazem parte dos códigos essenciais da cultura.
Atualmente, a presença desses ícones entre as palavras que são digitadas nos teclados dos tablets, smartphnes e celulares já foi considerada “uma transformação sem precedentes em 1400 anos de língua inglesa”, como avalia Paul Payack, presidente do instituto Global Language Monitor. Ele nota que, “com esses ícones, o alfabeto ganha caracteres a uma velocidade impressionante”. A forte presença desses ícones na língua inglesa chega ao ponto de o desenho do “coração” ter sido identificado como a “palavra” do ano em 2014. É evidente que esse tipo de transformação não se restringe à língua inglesa e que, como vários outros processos vinculados às redes informáticas, a assimilação dos emojis nos códigos linguísticos constitui um fenômeno de alcance mundial.
Não há como negligenciar a questão de que essas mudanças na língua podem intervir nos modos de subjetivação de crianças que, cada vez em mais tenra idade, manipulam os ícones nas telas dos celulares e tablets de seus pais. Considerando, com Lacan, que existe um momento no qual “a criança começa a se comprometer com o sistema do discurso concreto do ambiente, reproduzindo mais ou menos aproximativamente, em seu Fort! e em seu Da!, os vocábulos que dele recebe” (Lacan, 1998, p. 320), podemos, no limite, indagar se estamos diante de jogos Ford-Da que se dão com as pontas dos dedos manipulando os coloridos ícones que se movimentam sob as telas lisas e cintilantes de uma máquina. Silenciosamente.
Embora essa questão, assim como outras aqui formuladas, dificilmente nos conduza a uma resposta conclusiva, ao menos nos faz notar o quanto estamos nos tornando estrangeiros em mundo onde os habitantes são nossos filhos, sobrinhos, alunos e jovens clientes, cuja subjetividade se forma em um ambiente no qual os recursos tecnológicos já fazem parte do “sistema do discurso concreto”. Vivemos a dualidade da experiência de estarmos ocasionalmente muito próximos desses habitantes sem que para isso deixemos de estar algo distante deles.
 Isso não significa dizer que somos turistas no contemporâneo, que estamos aqui a passeio, ao contrário, nos provoca a impressão de sermos alguém que “chega hoje e amanhã fica”, como definiu Georg Simmel (1983, p. 182) a respeito do estrangeiro. Muito de nossa ambiguidade nesse tempo-espaço decorre do fato de sermos integrantes dessas sociedades que assimilam as redes tecnológicas como modo de mediação com o mundo, sem, entretanto, deixarmos de ser estranhos a elas. Trazemos nossas bagagens de alhures, o que inclui nossa língua pátria e nossa oralidade.
Grande parte da dualidade que vivemos em relação às novas circunstâncias de vida sociocultural reside no fato de que não pertencemos a elas desde sempre, o que, por sua vez, nos dá chances de nelas introduzir elementos provenientes do contexto de onde viemos. Mas, para isso, temos que desvelar, ao menos um pouco da dialética que nos compromete com essas vidas num movimento simbólico, como propôs Lacan na assertiva que provoca esse ensaio. Qual será, afinal, a dialética que nos compromete com esses sujeitos que, há mais ou menos uma década, se apresentam atrelados a seus aparelhos tecnológicos? A nostalgia não tem se mostrado a melhor companheira para nos aproximarmos dessa questão. Se há como trazermos nossas bagagens para a contemporaneidade, precisamos saber onde alojá-las, superando mesmo os mais inquietantes estranhamentos.
Para tanto, é fundamental considerar que, “a maneira como tu és e como eu sou, a maneira como nós homens somos sobre a terra é o buan, a habitação”, como propôs Martin Heidegger (1958, p.173). Nessa concepção, habitar equivale a construir, cultivar, edificar não somente esse ser no mundo, mas também o mundo onde se é. Trata-se de uma abordagem que vê o habitante como aquele que constrói o mundo onde se torna sujeito. Ele é o que é à medida que habita. Ele se faz onde habita, mas também faz seu habitat. Cultiva e é cultivado enquanto permanece, cuida, constrói.
Por essa perspectiva, o habitante das novas formas socioculturais é conectado às múltiplas redes que se encadeiam através da interface de um celular ou de qualquer aparelho da mesma linhagem. De modo que, para dar prosseguimento à indagação sobre a subjetividade de nossa época, fica colocada uma nova pergunta: que habitat é esse que vem sendo cultivado por esses sujeitos? Essa questão conduz para outro feixe temático, o que se volta para a espiral que atualmente nos arrasta na obra contínua de Babel.

Interface

Vivemos hoje muitas condições do que Scott Lash (2001) denomina “formas tecnológicas de vida”. Isso significa entender que frequentemente “atribuímos sentido ao mundo através de sistemas tecnológicos” (Lash, 2001: 107), o que implica em comunicar aos outros, através dessas tecnologias, o sentido cotidiano do viver, assim como em uma abreviação das formas de transmitir esse sentido do mundo vivido. Como alternativa às narrativas que são fruto de longa reflexão, vem sendo disseminado o uso do texting, ou seja, o recurso aos brevíssimos textos que são digitados nos aparelhos tecnológicos e instantaneamente enviados às redes sociais. Nota-se aí uma abreviação das unidades de sentido refletida em costumeiras contrações de palavras – como, por exemplo, a fração “vc” onde se escreveria “você”, ou a abreviatura “abc” em substituição à saudação “um abraço”.
Marcado pela brevidade e pelo efêmero, o sentido que é comunicado às redes de relações sociais está aberto à intervenção daqueles com quem é compartilhado. E essas comunicações se dão em fluxo contínuo e de longo alcance. O fugaz sentido da vida cotidiana que é partilhado por indivíduos tecnologicamente conectados está apto a atravessar longas distâncias e a fluir permanentemente pelas configurações reticulares dessas novas formas sociais.
Nas formas tecnológicas de vida também os vínculos que estabelecemos uns com os outros são tecidos pela interface com as máquinas. De maneira que as ligações que compõem a intrigante topologia reticular dessas formas tecnológicas de vida “são conectadas não por laços sociais per se, mas sim por vínculos sócio-técnicos. Elas são unidas por conexões tão técnicas quanto sociais” (Lash, 2001: 112). Daí decorre a desconcertante impressão de que “já não se sabe ao certo se existem relações específicas o bastante para serem chamadas de ‘sociais’”, ao mesmo tempo em que “o social parece diluído por toda parte e por nenhuma em particular”, como observa Latour (2012: 19) a propósito da redefinição daquilo que entendemos hoje por social.
Boa parte dos modos de ser que dizem respeito a essas novas formas sociais não é senão a “realização objetiva”, para usar os termos de Simmel (2005, p. 52), das subjetividades que há uma década cultivam essas ligações em rede. Jovens, adolescentes e mesmo crianças que convivem com a interface como se ela não existisse.
Nós, adultos, encontramos na interface uma espécie de fronteira porosa que oferece passagens e que, entretanto, traça os limites que distinguem entre o mundo online e o offline. Lidamos com ela como lidamos com os outros limites que orientam nossos modos de vida, reconhecendo-a e transpondo-a. As fronteiras da interface aparecem cada vez que é desligado um computador ou qualquer outro tipo de aparelho de conexão.
Os integrantes das novas gerações, por sua vez, parecem não se ater a esse tipo de delimitação. Para eles não há muita relevância nessa espécie de fronteira que demarca uma exterioridade do outro lado da interface. Eles não dão muita importância à ideia de uma distinção entre o lado de cá e o lado de lá. Não se posicionam aquém ou além da interface. Nasceram e vivem em um mundo onde são corriqueiras as translações entre os acontecimentos locais e os fluxos de alcance global, onde as trocas podem ser indefinidamente prolongadas através dos encadeamentos sociotécnicos, sem que para isso ocorram rupturas. É esse o mundo que eles habitam, o mundo onde eles são.
Podemos nos perguntar, então, de que maneira a onipresença da interface com os sistemas tecnológicos participa da espiral que nos arrasta na obra contínua de Babel? Essa questão nos conduz para o terceiro eixo temático desse ensaio, o que procura refletir sobre a função de intérprete na corrente discórdia das línguas.

A tarefa do tradutor

Sobre a tarefa do tradutor vale remeter à exposição de Walter Benjamin (2000) e à posterior discussão de Derrida (2006) a esse respeito. Benjamin faz uma elaboração em torno das relações entre o original e sua tradução que foi minuciosamente examinada por Derrida e que nos permite uma aproximação muito singular do que pode significar o ato de interpretação.
Benjamin encontra entre a tradução e o original muito mais que uma transmissão de significado, antes, uma “correlação de vida”. Ele argumenta que “do mesmo modo como as manifestações da vida, sem nenhum significado para o vivo, estão com ele na mais íntima correlação, assim a tradução procede do original. Certamente menos de sua vida que de sua ‘sobrevida’” (Benjamin, 2000, p. 246).
A noção de sobrevida é central nesse contexto de pensamento. É interessante notar que Benjamin evoca a concepção de vida a partir de uma perspectiva histórica e não orgânica. Ele considera a sobrevida como uma possibilidade de existência do original para além do tempo e do lugar onde ele tem vida. Sobrevida como vida para além da vida. Na tradução, diz Benjamin, “a vida do original, em sua constante renovação, conhece seu desenvolvimento o mais tardio e o mais expandido” (Benjamin, 2000, p. 247).
Derrida (2006) retoma essa concepção de Benjamin e explora a ideia de sobrevida que dá consistência ao ato de tradução. Ele observa que “se o tradutor não restitui nem copia um original, é que este sobrevive e se transforma. A tradução será na verdade um momento de seu próprio crescimento, ele aí completar-se-á engrandecendo-se” (Derrida, 2006, p. 46). Derrida procura eximir o tradutor do eterno dever de restituir ao original seu sentido, pois essa exigência o coloca na condição de endividado, de alguém que se encontra em situação de devolver ao original algo que foi retirado. Remetendo a Benjamin, Derrida define a posição do tradutor como “agente de sobrevida”, frisando que “tal sobrevida dá um pouco mais de vida, mais que uma sobrevivência” (Derrida, 2006, p. 33). Por esse ponto de vista, a tradução está muito distante da noção de cópia infiel, ela assume o status de uma transposição poética que transgride os limites do que é traduzido e o transforma ampliando-o, estendendo-o.
Essa concepção da tradução nos possibilita pensar nossa função de intérpretes no mundo de hoje como facilitadores de transposições poéticas que abrem brechas para a vida além das formas tecnológicas de vida. Isso nos exige, entretanto, saber de algum modo desfazer as tramas das ligações sóciotécnicas.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981.
BAUDRILLARD, Jean. La transparence du mal: essai sur lês phénomènes extremes. Paris: Galilée, 1990.
BENJAMIN, Walter. “La tache du traducteur”. In: Benjamin, W. Œuvres I. Paris: Gallimard, 2000.
BEN-ZE’EV, Aaron. Love online: emotions on the Internet. Cambridge University Press, 2004.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
CASILLI, Antonio A. Les liasons numériques: vers une nouvelle sociabilité? Paris: Éditions Du Seuil, 2010.
DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Ed. Escuta, 1998.
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2006.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
GENSOLLEN, Michel. “Le web relationnel: vers une économie plus social?”, in: MILLERAND, F., PROULX, S. & RUEFF, J. (orgs.) Web social. Mutation de la communication. Québec, Presses de l’Université du Québec, 2010, pp. 93-110.]
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo, Editora UNESP, 1993.
HEIDEGGER, Martin. “Batir, habiter, penser”. In HEIDEGGER, M. Essais et conferences. Paris: Gallimard, 1958.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LASH, Scott. “Technological forms of life”. Theory, Culture and Society. Vol. 18 (1), 2001, pp. 105-120.
LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA, Bauru: EDUSC, 2012.
NORA, Dominique. Os conquistadores do ciberespaço. Lisboa: Terramar, 1995.
SERRES, Michel. Petite poucette: le monde a telement changé que lês jeunes doivent tout réiventer une maniére de vivre ensemble, des instituitions, une maniére d`être et de connaître. Paris: Éditions Le Pommier, 2012.
SIMMEL, Georg. “O estrangeiro”, in: MORAES FILHO, Evaristo. (Org.). Georg Simmel: sociologia. São Paulo, Ed. Ática, 1983.
SIMMEL, Georg. “O conceito e a tragédia da cultura”. In: SOUZA, J. & OËLZE, B. (Orgs.) Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 2005. 2ª ed.
WATTS, Duncan J. Seis graus de separação. São Paulo: Leopardo Editora, 2009.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Violência à escola e violência da escola: um olhar da imaginação sociológica[1]

                                                                                              Tâmara de Oliveira[2]

Introdução 

   
            Este texto tem como origem um convite do semanário aracajuano Cinform para que eu escrevesse sobre a violência escolar, devido a dois casos de agressão física a professores na grande Aracaju em meados de 2015 – o da diretora que foi esmurrada e perfurada com caneta por um aluno de 16 anos, quando este soube que seria expulso da escola; o da diretora que sofreu ameaças e teve seus cabelos puxados por uma mãe de aluna, porque a diretora impediu que a filha da agressora entrasse na escola sem farda. Esta introdução retoma e amplia o artigo publicado naquele jornal, enquanto o primeiro tópico apresentará os temas saídos do artigo que serão tratados e a abordagem retida. Quanto aos outros tópicos, será preciso esperar a publicação do livro da Renaesp do qual o texto integral será um dos capítulos.
            O convite do Cinform remeteu-me à distância que sempre existe entre percepção da violência (o que as pessoas pensam ser o grau de violência na sociedade) e realidade da violência (os índices reais de violência na sociedade, medidos estatisticamente). Tal distância pode ser verificada a respeito de quaisquer fenômenos sociais significativos, sobretudo quando se trata de assunto que provoca medo numa sociedade dada e que é muito explorado pelas mídias. Sabe-se, por exemplo, que nas sociedades europeias boa parte das populações teme o aumento da imigração, por considerar, erroneamente, que o desemprego e os baixos salários são causados pelos imigrantes. Pois bem: pesquisas em vários países detectam que as pessoas acreditam existir uma percentagem bem superior de imigrantes do que na verdade existe.
            Como vivemos num contexto societal de fluxo ininterrupto de informação, muitas vezes sem controle de sua veracidade, a distância entre o que as pessoas percebem e o que realmente acontece pode ser ainda mais importante. No caso da violência escolar na grande Aracaju, tenho a hipótese de que um caso de violência sobre um professor em 2014, por ter sido particularmente chocante, despertou o interesse das mídias para a violência escolar no estado, fazendo com que notícias sobre agressões a professores tenham se tornado regulares. Em tal situação, os sergipanos tendem a perceber que a violência escolar tem crescido assustadoramente, embora quase nunca tenham meios de verificar o grau real desse crescimento.
            Lembrar da distância entre percepção e realidade da violência não significa diminuir a gravidade do ato de agredir profissionais em seu local de trabalho. Especialmente quando se exerce contra professores que, na modernidade, seriam um dos principais agentes sociais de transmissão de valores, normas e competências cidadãs às novas gerações, tendo, idealmente, um papel de autoridade comparável àquele exercido por nossos pais. Valores, normas e competências cidadãs implicam na capacidade adquirida pelos alunos para a reflexão e o diálogo respeitoso diante de situações de conflitos entre interesses, necessidades, atos, desejos, crenças ou valores, ao invés de usarem qualquer meio de coerção física ou verbal contra qualquer um que contrarie um interesse, necessidade, ato, desejo, crença ou valor seus. Mas antes de se poder concluir apressadamente que a violência escolar cresce assustadoramente, seria importante acompanhar os índices reais dessa violência, para poder medir a distância entre o que as pessoas acreditam e o que de fato acontece, principalmente porque a violência escolar é temática comumente associada ao da violência juvenil.
            Ora, quando se fala em violência juvenil no Brasil, basta fazer um rápido levantamento de estatísticas relacionando jovens e homicídios para se saber quão discrepante é a distância entre as representações sociais (Moscovici, 2004) que a maior parte de nossa sociedade partilha sobre a violência juvenil e a realidade social dessa violência. Assim, enquanto se defende a redução da maioridade penal sob a justificativa do aumento da participação de jovens em crimes violentos, os números esclarecem que nossos jovens são muitíssimo mais suas vítimas do que seus algozes. É verdade que a autoria juvenil de homicídios tem crescido (embora sem haver números oficiais das instâncias governamentais sobre isso) e a respeitada UNICEF[3], fundamentando-se em relatórios governamentais sobre a violência e em estudos entre 2000 e 2012, estima que 2,8% dos assassinatos no Brasil teriam sido cometidos por jovens nesse período – sendo que 1% teriam sido cometidos por jovens entre 16/17 anos (alvo da redução da maioridade). Entretanto, os índices de jovens assassinados no Brasil, num só ano, tornam esses 2,8% ou 1% irrisórios: em 2013, o homicídio continua sendo a primeira causa externa de morte de jovens brasileiros, correspondendo à causa de quase metade dos óbitos de jovens entre 16/17 anos de idade (Waiselfisz, 2013).
            Além disso, comparações internacionais de dados entre 2010 e 2013 dão conta de que somos o 3º país, entre 85 pesquisados, na taxa de homicídios por 100.000 jovens de 15 a 19 anos (Waiselfisz, 2015). Para vislumbrar o grau epidêmico da violência fatal sofrida cotidianamente por nossos jovens, basta saber que a taxa de assassinados por 100.000 adolescentes é, no Brasil, 183 vezes maior do que a de países como o Egito, a Alemanha ou a Coreia, e, 275 vezes maior do que a de países como Áustria, Japão, Reino Unido ou Bélgica (Waiselfisz, 2015)! E nunca é demais lembrar que esse grau de violência contra os jovens brasileiros não é “democratizado”, posto que a maioria dos jovens assassinados seja pobre, negra e parda, exprimindo nossas profundas e complexas desigualdades.  
1.  Abordando a violência escolar sob modo qualitativo, articulado e propositivo
            Essa discrepância entre representação social e realidade social, acima analisada no que diz respeito às quantidades da violência juvenil, também se manifesta em explicações sobre as causas possíveis da violência – inclusive a escolar. É comum ouvir-se fórmulas explicando que “os jovens estão fora de controle” ou “os pais terceirizaram sua responsabilidade educacional”. Neste caso, aplicando-se a noção de imaginação sociológica (W. Mills, 2006), segundo a qual as ciências sociais são um conhecimento que articula problemas pessoais a estruturas sociais[4], pode-se facilmente invalidá-las, porque são explicações que isolam os atores sociais de suas condições sociais objetivas e simbólicas de vida, como se suas práticas e valores fossem definidos unicamente por eles mesmos. Ora, não há “jovens”, “pais” ou quaisquer outros tipos de indivíduos humanos cujas orientações de vida, de valores, de desejos e de comportamento possam ser entendidos sem consideração do quadro de possibilidades e limitações que o contexto socioeconômico, cultural e institucional onde eles vivem imprimem às suas práticas e representações (Moscovici, 2004). Melhor dizendo, em termos do construtivismo sociológico de P. Berger e Thomas Luckmann (1996), a subjetividade das pessoas não se constrói sem articulação com a realidade social objetiva que as cerca. Sendo assim, por que e como esperar que as novas gerações adquiram aqueles valores, normas e competências do ideal moderno de cidadania, ideal este potencialmente capaz de sublimar a agressividade[5], se elas são socializadas numa sociedade violenta?
            A continuidade deste texto sustentará o argumento de que tal esperança ilusória pode ser compreendida pela análise articulada de arranjos institucionais e simbólicos (para Mills, estruturas sociais) que, tornando-se predominantes a partir das transformações societais aceleradas desde os anos 1980, fragilizaram valores indissociáveis do ideal moderno de cidadania, como a de bens comuns e de cooperação redistributiva como meio de regulação social, em favor de valores como o da competição ilimitada, do sucesso como prova meritocrática e justificativa de segregação social, além do prazer sensorial consumista como horizonte de vida - valores estes que incidem no aumento de práticas, representações e interações sociais violentas[6]. Além disso, como tais arranjos institucionais e simbólicos mantêm afinidades eletivas (Weber, 2004) com os dois conteúdos ao mesmo tempo nucleares (Abric, 2001) e opositivos das representações modernas sobre a juventude, a percepção do aumento da violência escolar possibilita a vã esperança de que a repressão do suposto descontrole dos jovens e da suposta irresponsabilidade dos pais sejam meios eficientes para resolver  o problema.
            Para sustentar o argumento proposto, continuarei com uma rápida descrição da construção social da juventude pela modernidade, consolidando o misto de fascínio e medo com os quais se percebe cotidianamente os jovens, articulando esse processo ao da elevação da instituição escolar enquanto meio fundamental de controle da suposta natureza desviante da juventude, para sua integração “normal” à sociedade. Em seguida, será feita uma articulação entre a problemática convergência histórica da democratização de sistemas de ensino com aquelas transformações societais que, aceleradas a partir dos anos 1980, costumam ser discutidas pelos termos de globalização (referente às dimensões objetivas e institucionais dessas transformações) e de pós-modernidade (referente às suas dimensões subjetivas e simbólicas)[7]. A análise se concentrará sobre a impregnação de políticas públicas educacionais pela lógica competitiva cega, segregativa e perversamente meritocrática subjacente àquelas transformações, articulando-a ao crescimento de relações negativas de boa parte dos alunos à escola, entre as quais a relação violenta.
            Neste sentido, utililizarei a distinção entre três tipos de violência escolar colocada num pequeno texto de Bernard Charlot (2002): a violência à escola, referente a atos violentos tendo como objeto o estabelecimento ou seus atores, como professores, diretores, alunos, pessoal administrativo, etc.; a violência na escola, referente a práticas violentas que ocorrem na escola mas que não a têm, nem a seus atores, como objeto – como acertos de conta entre alunos ou grupos de alunos, etc.; e, violência da escola, referente a práticas, normas ou orientações institucionais que atingem os  alunos e provêm da própria escola ou de seus responsáveis. Defenderei a hipótese segundo a qual a coincidência problemática entre democratização dos sistemas de ensino e transformações societais que puseram em cheque compromissos sociais como o do Estado do bem-estar social ou o do desenvolvimentismo, provocou um aumento estrutural da violência da escola que, como um bumerangue, volta-se contra ela como relações negativas de parte de seus alunos ou familiares, entre as quais a de relação violenta à escola.
            Nas considerações finais serão colocados preliminarmente passos de uma caminho artesanal do ensino da sociologia no ensino médio, como potencial contribuição das ciências sociais no sentido de que as relações entre “estruturas sociais” e “problemas pessoais” na escola contemporânea não impliquem inevitavelmente na mera reprodução da lógica mercadológica e violenta onde parte dela e das subjetividades que a sustentam se encontram.
Referências
ABRAMO, H. W. Condição juvenil no Brasil contemporâneo. In: ABRAMO, H. W./BRANCO, P. M. (orgs.) Retratos da juventude brasileira: Análises de uma pesquisa nacional. São Paulo/Porto Alegre: Editora Fundação Perseu Abramo/Instituto da Cidadania, 2011. p. 37-72.
ABRIC, J.-C. Pratiques sociales et représentations. Paris: PUF, 2001. 252 p.
BEAUD, S. 80% au bac…et après ? Les enfants de la démocratisation scolaire. Paris : La Découverte, 2002/2003. 338 p.
BERGER, P./LUCKMANN, T.  La construction sociale de la réalité. Paris : Masson/Armand Colin, 1996. 285 p.
BOUDON, R.  L’inégalité des chances. Paris : Hachette Littérature, 1984. 334 p.
BOURDIEU, P./PASSERON, J.-C. La reproduction : éléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris : Les Editions de Minuit, 1970. 279 p.
CHARLOT, B. A violência na escola : como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias. Porto Alegre, ano 4, nº 8, p. 432-443, jul/dez 2002.
COSTA, J. Freire Perspectivas de juventude na sociedade de mercado. In : NOVAES, R./VANNUCHI, P. (orgs.). Juventude e Sociedade : Trabalho, Educação, Cultura e Participação. São Paulo/Porto alegre : Editora Fundação Perseu Abramo/Instituto da Cidadania, 2011. p. 75-88.
COSTA, M. da/BARTHOLO, T. L. Padrões de segregação escolar no Brasil: um estudo comparativo entre capitais do país. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, nº 129, p. 1183-1203, out/dez, 2014.
DUBET, F. Déscolariser la société. Rencontre avec François Dubet: depoiment. Dez. 2008. Paris:  Sciences Humaines, nº 199. Entrevista concedida a Xavier Molénat.
HABERMAS, J. Droit et démocratie : entre faits et normes. Paris : Gallimard, 1997. 551 p.
LAHIRE, B. L'Esprit Sociologique. Paris: La Découverte, 2007. 434 p.
LAUTMAN, J. Retorno a Marx. Tomo. São Cristóvão, ano X, nº 12, p. 9-22, jan/jun, 2008.
MANNHEIM, K. O problema das gerações  . In : MANNHEIM, K. Sociologia do conhecimento : vol. II. Lisboa : Rés, 1928. p. 115-174.
MENDONÇA, R. S. Movimentos sociais como acontecimentos: linguagem e espaço público. Lua Nova, São Paulo, nº 72. 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452007000300005&lng=pt&tlng=pt  Acesso em : 23.09.2015.
MILLS, C. W. L'imagination sociologique. Paris : Éditions La Découverte, 2006. 229 p.
MOIGNARD, B. Bande d’adolescents de la France au Brésil : comparer l’incomparable ? In : MOHAMMED/MUCCHIELLI (dirs.). Les bandes de jeunes : des “blousons noirs” à nous jours. Paris : La Découverte, 2007. p. 351-377.
MOSCOVICI, S. Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis : Vozes, 2004. 404 p.
OLIVEIRA, Tâmara de et al. A imaginação sociológica e o artesanato intelectual : a resistência da realidade como instrumento de formação à docência. Pibid/UFS. No prelo.
OLIVEIRA, Tâmara de. Do diferente e do mesmo : manifestações de junho e mobilizações da juventude. Disponível em : http://gerts.com.br/seciri/v1/?page_id=68 Acesso em: 23 de set. 2015.
______ Evolução da relação entre educação e desigualdades sociais na França: trajetória do olhar sociológico. Estudos de Sociologia: Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, nº 18, 2012. http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/issue/view/7 Acesso em: 23 de set. 2015.
______ Zonas de Educação Prioritária na França (ZEPs): efeito perverso de política afirmativa ou componente institucional de uma dupla segregação social ? Disponível em :  http://sbsociologia.com.br/portal/index.phpoption=com_docman&task=cat_view&gid=186&Itemid=171 Acesso : 23 de set. 2015.
PERALVA, A. O jovem como modelo cultural. Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez Nº 6, pp. 15-24.
SCHANAPPER, D./BACHELIER, C. Qu'est-ce que la citoyenneté? Paris: Gallimard, 2000. 320 p.
SENNET, R. Richard Sennet e a dissolução da cooperação no novo capitalismo. Disponível em: http://www.ggnnoticias.com.br/noticia/richard-sennett-e-a-dissolucao-da-cooperacao-no-novo-capitalismo. Acesso em: 23 de set. 2015.
______. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2013. 360 p.
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva : uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília : Editora UNB, 2000. 276 p.
VAN ZANTEN, A. Une discrimination banalisée? L’évitement de la mixité sociale et raciale dans les établissements scolaires. In : FASSIN, D. / FASSIN, É. (dirs.). De la question sociale à la question raciale? Représenter la société française. Paris : Éditions La Découverte, 2006/2009. p. 203-218.
______ L’école de la périphérie : scolarité et ségrégation en banlieue. Paris : PUF, 2001. 417 p.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015. Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf. Acesso em: 23 de set. 2015.
______Juventude e homicídios no Brasil. Disponível em: http://mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf. Acesso em 23 de set. 2015. 
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 335 p.



[1]              Este texto é parte de um capítulo de livro no prelo, organizado pela RENAESP/UFS (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública/Universidade Federal de Sergipe)
[2]              Professora associada da Universidade Federal de Sergipe e coordenadora do Pibid/UFS-Ciências Sociais.
[4]              Charles Wright Mills utilizava o conceito de estrutura social num sentido fraco, ou seja, ele não se inseria exatamente em teorias sociológicas ditas estruturalistas ou sistêmicas, para as quais a subjetividade nada mais seria do que a interiorização das normas, valores e instituições sociais pelos indivíduos, mas também não se inseria em teorias sociológicas individualistas nem francamente interacionistas. Desenvolvendo um modelo teórico-metodológico singular mas afinado com uma tradição de sociologia crítica, podemos dizer que Mills concebia a relação indivíduo/sociedade sob um modo de interdependência em aberto, onde estruturas não se concebiam fora da dinâmica entre subjetividades e objetividade do social. Neste sentido, uso seu binômio estruturas sociais/problemas pessoais por entendê-lo epistemologicamente compatível o binômio conceitual realidade social objetiva e realidade social subjetiva de Berger e Luckmann (1996).  
[5]              Consideramos a sublimação da agressividade, segundo a argumentação de Bernard Charlot (2002), assim desenvolvida: “A agressividade é uma disposição biopsíquica reacional: a frustração (inevitável quando não podemos viver sob o princípio único do prazer) leva à angústia e à agressividade. A agressão é um ato que implica uma brutalidade física ou verbal(...). A violência remete a uma característica desse ato, enfatiza o uso da força, do poder, da dominação.(...)É uma ilusão crer  que se possa fazer desaparecer a agressividade e, como consequência, a agressão e o conflito. Aliás, isso seria desejável levando-se em conta que a agressividade sublimada é a fonte de condutas socialmente valorizadas (no esporte, na arte, nas diversas formas da concorrência) e se o conflito é também um motor da História, como pensava Hegel? A questão é saber quais são as formas de expressão legítimas ou aceitáveis da agressividade e do conflito. É a violência enquanto vontade de destruir, de aviltar, de atormentar que causa problema – e que causa mais problema ainda em uma instituição que, como a escola, inscreve-se na ordem da linguagem e da troca simbólica e não da força física. Concretamente, isso significa que o problema não é fazer desaparecer da escola a agressividade e o conflito, mas regulá-los pela palavra e não pela violência – ficando bem entendido que a violência será bem mais provável, na medida em que a palavra se tornar impossível” Pp.435/436.
[6]              A argumentação sobre o Brasil e a França não significa que eles sejam os únicos países afetados pelos processos aqui anunciados, mas que são os países sobre os quais a autora tem dados e reflexões acumulados. Por outro lado, comparações internacionais demonstram que outros países têm conseguido conviver com as transformações da chamada globalização sem mergulharem tão dramaticamente nos paradoxos do laço liberdade-competitividade enquanto princípio educacional. Como a Finlândia, por exemplo que, talvez por causa disso, embora continue considerada um dos líderes mundiais de competência acadêmica, caiu para a 12ª posição mundial no PISA de 2012. Ora, o PISA é um exame vinculado à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – o que já indica que sua lógica é impregnada por razões econômicas mais do que político-sociais.
[7]              Não será analisada aqui a diversidade, a complexidade e a polêmica em torno dos termos de globalização e pós-modernidade. Isso levaria a caminhos de discussão epistemológica e metodológica que desviaria o texto de seu assunto principal, qual seja o da articulação entre jovens e violência escolar. Manterei o termo transformações societais aceleradas, considerando que, referindo-se a processos de mudanças sociais perceptíveis, não levaria este texto a uma polêmica fora de seus propósitos e de seus temas.