Introdução
Este texto tem como origem um
convite do semanário aracajuano Cinform para que eu escrevesse sobre a
violência escolar, devido a dois casos de agressão física a professores na
grande Aracaju em meados de 2015 – o da diretora que foi esmurrada e perfurada
com caneta por um aluno de 16 anos, quando este soube que seria expulso da
escola; o da diretora que sofreu ameaças e teve seus cabelos puxados por uma
mãe de aluna, porque a diretora impediu que a filha da agressora entrasse na
escola sem farda. Esta introdução retoma e amplia o artigo publicado naquele
jornal, enquanto o primeiro tópico apresentará os temas saídos do artigo que
serão tratados e a abordagem retida. Quanto aos outros tópicos, será preciso
esperar a publicação do livro da Renaesp do qual o texto integral será um dos
capítulos.
O convite do Cinform remeteu-me à
distância que sempre existe entre percepção da violência (o que as
pessoas pensam ser o grau de violência na sociedade) e realidade da
violência (os índices reais de violência na sociedade, medidos
estatisticamente). Tal distância pode ser verificada a respeito de quaisquer
fenômenos sociais significativos, sobretudo quando se trata de assunto que
provoca medo numa sociedade dada e que é muito explorado pelas mídias. Sabe-se,
por exemplo, que nas sociedades europeias boa parte das populações teme o
aumento da imigração, por considerar, erroneamente, que o desemprego e os
baixos salários são causados pelos imigrantes. Pois bem: pesquisas em vários
países detectam que as pessoas acreditam existir uma percentagem bem superior
de imigrantes do que na verdade existe.
Como vivemos num contexto societal
de fluxo ininterrupto de informação, muitas vezes sem controle de sua
veracidade, a distância entre o que as pessoas percebem e o que realmente
acontece pode ser ainda mais importante. No caso da violência escolar na grande
Aracaju, tenho a hipótese de que um caso de violência sobre um professor em
2014, por ter sido particularmente chocante, despertou o interesse das mídias
para a violência escolar no estado, fazendo com que notícias sobre agressões a
professores tenham se tornado regulares. Em tal situação, os sergipanos tendem
a perceber que a violência escolar tem crescido assustadoramente, embora quase
nunca tenham meios de verificar o grau real desse crescimento.
Lembrar da distância entre percepção
e realidade da violência não significa diminuir a gravidade do ato de agredir
profissionais em seu local de trabalho. Especialmente quando se exerce contra
professores que, na modernidade, seriam um dos principais agentes sociais de
transmissão de valores, normas e competências cidadãs às novas gerações, tendo,
idealmente, um papel de autoridade comparável àquele exercido por nossos pais.
Valores, normas e competências cidadãs implicam na capacidade adquirida pelos
alunos para a reflexão e o diálogo respeitoso diante de situações de conflitos
entre interesses, necessidades, atos, desejos, crenças ou valores, ao invés de
usarem qualquer meio de coerção física ou verbal contra qualquer um que
contrarie um interesse, necessidade, ato, desejo, crença ou valor seus. Mas
antes de se poder concluir apressadamente que a violência escolar cresce
assustadoramente, seria importante acompanhar os índices reais dessa violência,
para poder medir a distância entre o que as pessoas acreditam e o que de fato
acontece, principalmente porque a violência escolar é temática comumente
associada ao da violência juvenil.
Ora, quando se fala em violência
juvenil no Brasil, basta fazer um rápido levantamento de estatísticas
relacionando jovens e homicídios para se saber quão discrepante é a distância
entre as representações sociais (Moscovici, 2004) que a maior parte de
nossa sociedade partilha sobre a violência juvenil e a realidade social
dessa violência. Assim, enquanto se defende a redução da maioridade penal sob a
justificativa do aumento da participação de jovens em crimes violentos, os
números esclarecem que nossos jovens são muitíssimo mais suas vítimas do que
seus algozes. É verdade que a autoria juvenil de homicídios tem crescido
(embora sem haver números oficiais das instâncias governamentais sobre isso) e
a respeitada UNICEF[3],
fundamentando-se em relatórios governamentais sobre a violência e em estudos
entre 2000 e 2012, estima que 2,8% dos assassinatos no Brasil teriam sido
cometidos por jovens nesse período – sendo que 1% teriam sido cometidos por
jovens entre 16/17 anos (alvo da redução da maioridade). Entretanto, os índices
de jovens assassinados no Brasil, num só ano, tornam esses 2,8% ou 1%
irrisórios: em 2013, o homicídio continua sendo a primeira causa externa de
morte de jovens brasileiros, correspondendo à causa de quase metade dos óbitos
de jovens entre 16/17 anos de idade (Waiselfisz, 2013).
Além disso, comparações
internacionais de dados entre 2010 e 2013 dão conta de que somos o 3º país,
entre 85 pesquisados, na taxa de homicídios por 100.000 jovens de 15 a 19 anos
(Waiselfisz, 2015). Para vislumbrar o grau epidêmico da violência fatal sofrida
cotidianamente por nossos jovens, basta saber que a taxa de assassinados por
100.000 adolescentes é, no Brasil, 183 vezes maior do que a de países como o
Egito, a Alemanha ou a Coreia, e, 275 vezes maior do que a de países como
Áustria, Japão, Reino Unido ou Bélgica (Waiselfisz, 2015)! E nunca é demais
lembrar que esse grau de violência contra os jovens brasileiros não é
“democratizado”, posto que a maioria dos jovens assassinados seja pobre, negra
e parda, exprimindo nossas profundas e complexas desigualdades.
1. Abordando a violência escolar sob modo
qualitativo, articulado e propositivo
Essa discrepância entre
representação social e realidade social, acima analisada no que diz respeito às
quantidades da violência juvenil, também se manifesta em explicações sobre as
causas possíveis da violência – inclusive a escolar. É comum ouvir-se fórmulas
explicando que “os jovens estão fora de controle” ou “os pais terceirizaram sua
responsabilidade educacional”. Neste caso, aplicando-se a noção de imaginação
sociológica (W. Mills, 2006), segundo a qual as ciências sociais são um
conhecimento que articula problemas pessoais a estruturas sociais[4],
pode-se facilmente invalidá-las, porque são explicações que isolam os atores
sociais de suas condições sociais objetivas e simbólicas de vida, como se suas
práticas e valores fossem definidos unicamente por eles mesmos. Ora, não há
“jovens”, “pais” ou quaisquer outros tipos de indivíduos humanos cujas orientações
de vida, de valores, de desejos e de comportamento possam ser entendidos sem
consideração do quadro de possibilidades e limitações que o contexto
socioeconômico, cultural e institucional onde eles vivem imprimem às suas
práticas e representações (Moscovici, 2004). Melhor dizendo, em termos do
construtivismo sociológico de P. Berger e Thomas Luckmann (1996), a
subjetividade das pessoas não se constrói sem articulação com a realidade
social objetiva que as cerca. Sendo assim, por que e como esperar que as
novas gerações adquiram aqueles valores, normas e competências do ideal moderno
de cidadania, ideal este potencialmente capaz de sublimar a agressividade[5],
se elas são socializadas numa sociedade violenta?
A continuidade deste texto
sustentará o argumento de que tal esperança ilusória pode ser compreendida pela
análise articulada de arranjos institucionais e simbólicos (para Mills,
estruturas sociais) que, tornando-se predominantes a partir das transformações
societais aceleradas desde os anos 1980, fragilizaram valores indissociáveis do
ideal moderno de cidadania, como a de bens comuns e de cooperação
redistributiva como meio de regulação social, em favor de valores como o da
competição ilimitada, do sucesso como prova meritocrática e justificativa de segregação
social, além do prazer sensorial consumista como horizonte de vida - valores
estes que incidem no aumento de práticas, representações e interações sociais
violentas[6].
Além disso, como tais arranjos institucionais e simbólicos mantêm afinidades
eletivas (Weber, 2004) com os dois conteúdos ao mesmo tempo nucleares
(Abric, 2001) e opositivos das representações modernas sobre a juventude, a
percepção do aumento da violência escolar possibilita a vã esperança de que a
repressão do suposto descontrole dos jovens e da suposta irresponsabilidade dos
pais sejam meios eficientes para resolver
o problema.
Para sustentar o argumento proposto,
continuarei com uma rápida descrição da construção social da juventude pela
modernidade, consolidando o misto de fascínio e medo com os quais se percebe
cotidianamente os jovens, articulando esse processo ao da elevação da
instituição escolar enquanto meio fundamental de controle da suposta natureza
desviante da juventude, para sua integração “normal” à sociedade. Em seguida,
será feita uma articulação entre a problemática convergência histórica da
democratização de sistemas de ensino com aquelas transformações societais que,
aceleradas a partir dos anos 1980, costumam ser discutidas pelos termos de globalização
(referente às dimensões objetivas e institucionais dessas transformações) e de pós-modernidade
(referente às suas dimensões subjetivas e simbólicas)[7].
A análise se concentrará sobre a impregnação de políticas públicas educacionais
pela lógica competitiva cega, segregativa e perversamente meritocrática
subjacente àquelas transformações, articulando-a ao crescimento de relações
negativas de boa parte dos alunos à escola, entre as quais a relação violenta.
Neste sentido, utililizarei a
distinção entre três tipos de violência escolar colocada num pequeno texto de
Bernard Charlot (2002): a violência à escola, referente a atos violentos
tendo como objeto o estabelecimento ou seus atores, como professores,
diretores, alunos, pessoal administrativo, etc.; a violência na escola,
referente a práticas violentas que ocorrem na escola mas que não a têm, nem a
seus atores, como objeto – como acertos de conta entre alunos ou grupos de
alunos, etc.; e, violência da escola, referente a práticas, normas ou
orientações institucionais que atingem os
alunos e provêm da própria escola ou de seus responsáveis. Defenderei a
hipótese segundo a qual a coincidência problemática entre democratização dos
sistemas de ensino e transformações societais que puseram em cheque
compromissos sociais como o do Estado do bem-estar social ou o do
desenvolvimentismo, provocou um aumento estrutural da violência da escola
que, como um bumerangue, volta-se contra ela como relações negativas de parte
de seus alunos ou familiares, entre as quais a de relação violenta à
escola.
Nas considerações finais serão
colocados preliminarmente passos de uma caminho artesanal do ensino da
sociologia no ensino médio, como potencial contribuição das ciências sociais no
sentido de que as relações entre “estruturas sociais” e “problemas pessoais” na
escola contemporânea não impliquem inevitavelmente na mera reprodução da lógica
mercadológica e violenta onde parte dela e das subjetividades que a sustentam
se encontram.
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[1] Este texto é parte de um capítulo
de livro no prelo, organizado pela RENAESP/UFS (Rede Nacional de Altos Estudos
em Segurança Pública/Universidade Federal de Sergipe)
[2] Professora associada da
Universidade Federal de Sergipe e coordenadora do Pibid/UFS-Ciências Sociais.
[4] Charles Wright
Mills utilizava o conceito de estrutura social num sentido fraco, ou seja, ele
não se inseria exatamente em teorias sociológicas ditas estruturalistas ou
sistêmicas, para as quais a subjetividade nada mais seria do que a
interiorização das normas, valores e instituições sociais pelos indivíduos, mas
também não se inseria em teorias sociológicas individualistas nem francamente
interacionistas. Desenvolvendo um modelo teórico-metodológico singular mas
afinado com uma tradição de sociologia crítica, podemos dizer que Mills
concebia a relação indivíduo/sociedade sob um modo de interdependência em
aberto, onde estruturas não se concebiam fora da dinâmica entre subjetividades
e objetividade do social. Neste sentido, uso seu binômio estruturas
sociais/problemas pessoais por entendê-lo epistemologicamente compatível o
binômio conceitual realidade social objetiva e realidade social
subjetiva de Berger e Luckmann (1996).
[5] Consideramos a
sublimação da agressividade, segundo a argumentação de Bernard Charlot (2002),
assim desenvolvida: “A agressividade é uma disposição biopsíquica reacional: a
frustração (inevitável quando não podemos viver sob o princípio único do
prazer) leva à angústia e à agressividade. A agressão é um ato que implica uma
brutalidade física ou verbal(...). A violência remete a uma característica
desse ato, enfatiza o uso da força, do poder, da dominação.(...)É uma ilusão
crer que se possa fazer desaparecer a
agressividade e, como consequência, a agressão e o conflito. Aliás, isso seria
desejável levando-se em conta que a agressividade sublimada é a fonte de
condutas socialmente valorizadas (no esporte, na arte, nas diversas formas da
concorrência) e se o conflito é também um motor da História, como pensava
Hegel? A questão é saber quais são as formas de expressão legítimas ou
aceitáveis da agressividade e do conflito. É a violência enquanto vontade de
destruir, de aviltar, de atormentar que causa problema – e que causa mais
problema ainda em uma instituição que, como a escola, inscreve-se na ordem da
linguagem e da troca simbólica e não da força física. Concretamente, isso
significa que o problema não é fazer desaparecer da escola a agressividade e o
conflito, mas regulá-los pela palavra e não pela violência – ficando bem
entendido que a violência será bem mais provável, na medida em que a palavra se
tornar impossível” Pp.435/436.
[6] A argumentação
sobre o Brasil e a França não significa que eles sejam os únicos países
afetados pelos processos aqui anunciados, mas que são os países sobre os quais
a autora tem dados e reflexões acumulados. Por outro lado, comparações
internacionais demonstram que outros países têm conseguido conviver com as
transformações da chamada globalização sem mergulharem tão dramaticamente nos
paradoxos do laço liberdade-competitividade enquanto princípio educacional.
Como a Finlândia, por exemplo que, talvez por causa disso, embora continue
considerada um dos líderes mundiais de competência acadêmica, caiu para a 12ª
posição mundial no PISA de 2012. Ora, o PISA é um exame vinculado à OCDE
(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – o que já indica
que sua lógica é impregnada por razões econômicas mais do que político-sociais.
[7] Não será
analisada aqui a diversidade, a complexidade e a polêmica em torno dos termos
de globalização e pós-modernidade. Isso levaria a caminhos de
discussão epistemológica e metodológica que desviaria o texto de seu assunto
principal, qual seja o da articulação entre jovens e violência escolar.
Manterei o termo transformações societais aceleradas, considerando que,
referindo-se a processos de mudanças sociais perceptíveis, não levaria este
texto a uma polêmica fora de seus propósitos e de seus temas.
4 comentários:
Curiosa :) esperando a segunda parte.
Marina Ribas
Saber que parte do texto abriu a curiosidade de uma excelente estudante das ciências sociais já traz uma reconfortante sensação de utilidade. Obrigada, Marina. Só que não posso postar as outras partes do artigo antes da publicação do livro, hélas...Mas vou encontrar um modo de fazê-la conhecer o texto completo muito antes disso - e promessa é dívida. Abraço
É interessante como você evoca as categorias violência na escola, violência à escola e violência da escola, Tãmara. Isso realmente me toca porque significa tentar cobrir, no mínimo, três conjuntos de aspectos: os primeiros que dizem respeito à forma como os atores interagem entre si, a segunda sobre a forma como eles interagem com a instituição e a terceira a forma como a instituição age sobre eles. Isso cria uma análise tridimensional que nos mostra tensões reflexivas, onde o aluno age, mas o faz também reagindo a estímulos.
Estou curioso para ter acesso ao restante dos tópicos, mas gostaria de antemão perguntar se, além das análises quantitativas, você entrou no aspecto da história da educação em Sergipe!
Abração
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