Corpo, Consumo e Saúde: reflexões
contemporâneas
Cuiabá - 18 de setembro de 2015
Jonatas
Ferreira
Começo esta comunicação propondo a existência de um dispositivo psicofarmacológico e
afirmando sua importância para entendermos as necessidades dinâmicas do
capitalismo contemporâneo. Proveniente da genealogia foucaultiana, o termo
dispositivo diz respeito a uma “urgência”, a uma “função estratégica
dominante”, de pretensões quase sistêmicas, em dada formação governamental. Em seu ensaio “O que é um
dispositivo?”, Giorgio Agamben recorre a alguns poucos excertos em que Foucault
procura esclarecer este termo: “O que estou tentando destacar com esse termo é, primeiro e acima de tudo, um conjunto de discursos largamente heterogêneo, instituições, formas arquitetônicas, decisões de caráter regulador, leis, medidas administrativas, declarações científicas, proposições morais e filantrópicas - em suma, o dito tanto quanto o não dito. Esses são os elementos do aparato. O aparato é, ele mesmo, a rede que pode estabelecer esses elementos…” (Agamben, What is an Apparatus, p.
2). Interessa-me nesse conjunto de elementos discursivos articulados sua precariedade, a forma tensa e por vezes ambígua como ele se
torna operante, o seu não dito. Por motivos que ficarão claros na
continuidade desta exposição, uma análise da medicalização do sofrimento
psíquico na contemporaneidade pode se beneficiar de tal aporte teórico.
Digamos inicialmente acerca dessa
possibilidade discursiva e de seu significado: se a aceleração e a “aceleração
da aceleração” desempenham um papel crucial na própria lógica a partir da qual
o capitalismo responde ao horizonte sempre iminente das crises globais – e,
deste modo, inovar e consumir são necessidades sistêmicas desta economia -, uma
das condições da sustentabilidade de sua dinâmica é a existência desse
dispositivo biopolítico. É preciso que os corpos respondam positivamente às
condições dromológicas de reprodução do capital, à perecibilidade de objetos,
ao caráter descartável dos envolvimentos afetivos, em suma, a estes fenômenos
inerentes ao “turbocapitalismo”. Isso demanda, não apenas próteses químicas,
medicamentos, tais como antidepressivos, ansiolíticos, psicoestimulantes, mas
uma “cultura” e uma biopolítica em que os corpos devem sempre estar em estado
de prontidão, em que formas específicas de regulação e ampliação da atuação
médica, em que mudanças institucionais etc., contribuam para a possibilidade de
operação mais ampla deste sistema.
O dispositivo psicofarmacológico compreende, pois,
não apenas a popularização do consumo de substâncias psicoativas, tais como
neurolépticos, antidepressivos, ansiolíticos, mas um conjunto de saberes -
encapsulados nos manuais de diagnóstico, por exemplo -, a institucionalização
de terapêuticas específicas, a ação de grandes empresas farmacêuticas, a regulação
governamental da prática médica, da atuação da indústria farmacêutica, do
controle do consumo de medicamentos, entre diversos outros fenômenos sociais.
Este conjunto articulado de práticas, saberes, poderes, oferece uma forma de
entender o sofrimento a partir da bioquímica, deficits de serotonina, circuitos
sinápticos, mas fundamentalmente propõe uma forma de lidar com o mal-estar
contemporâneo e de aprender a “funcionar” num contexto de fragmentação e
dissolução difíceis de ser suportadas. Trata-se, pois, de um dispositivo
biopolítico em que o silenciamento dos processos de significação corre em
paralelo ao privilegiamento da administração da “vida nua”[1],
à zoologização dos humores.
A atenção que se tem dado ao tema, no entanto, em
geral, tende a tomar como foco esse produto recente da neurobiologia, isto é, o
medicamento. Neste sentido, a medicalização dos sofrimentos mais comezinhos, a
intolerância à dor e ao sofrimento, se destacam do conjunto biopolítico onde
eles fazem algum sentido. A explosão no consumo de psicofármacos é um aspecto
importante do dispositivo psicofarmacológico, não há dúvida. Comecemos então
por mencioná-lo aqui. Tomemos o caso do Brasil e de Portugal, como ilustração.
De acordo com dados da ANVISA, em 2010 foram
dispensadas 25.677.892 unidades de algum tipo de benzodiazepínico - isto é, de
hipnóticos com propriedade ansiolítica - no Brasil, um número que corresponde a
aproximadamente 135 unidades para cada mil habitantes. Se compararmos esse
consumo com dados de 2008, ou seja, em um intervalo de apenas 2 anos, observaremos
um crescimento de 325,4%. Na Europa, merece destaque o caso português: “Entre
os anos de 2000 e 2012, o consumo de antidepressivos calculado em doses diárias
por mil habitantes mais que triplicou e o de ansiolíticos cresceu 170%. A venda
de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos (vulgarmente designados
tranquilizantes) aumentou 6%, mas este continua a ser o subgrupo com maior
utilização em Portugal (96 doses diárias por mil).”
Há entre o aumento do consumo de psicofármacos no
mundo e a constatação do aumento dos diagnósticos de transtornos mentais uma
relação largamente difundida, mas que não é tão evidente assim. O Brasil, não
há dúvida, refletiria uma tendência mundial de aumento de transtornos psíquicos como
a depressão. No ano de 2013, 7,6% dos diagnósticos de doenças crônicas no SUS
diziam respeito precisamente à depressão (11% mulheres e 4% homens). Esse valor
alcança 13% dos casos totais de doenças crônicas em Santa Catarina e Rio Grande
do Sul (nos dois casos as mulheres têm mais que o dobro dos diagnósticos dos
homens). Em sua edição de 18/08/2014, o jornal O Estado de São Paulo, com base em dados do SUS, afirmava que o
número de mortes decorrente de estados depressivos aumentara 705% em 16 anos. “O número total de suicídios também teve aumento significativo no
Brasil. Passou de 6.743 para 10.321 no mesmo período, uma média de 28 mortes
por dia”[2].
Diante desses números, é forçoso perguntar: estamos
diante de um aumento real de casos de depressão, da notificação de casos que
antes não eram notificados - inclusive pela ausência de mecanismos padronizados
de diagnóstico -, ou do peso de uma psiquiatria voltada para o sintoma, cuja
força não pode ser negligenciada, e que tenderia a tornar “patológico”, e
portanto passível de medicalização, todo sofrimento que puder ser tratado
mediante a intervenção de medicamentos? É possível que ambas as alternativas estejam corretas. Sob a influência da psiquiatria estadunidense e das versões 3, 4 e 5 do
Manuais Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), ocorre uma padronização dos diagnósticos de
transtornos mentais e esta uniformização de critérios resultou no aumento
expressivo das estatísticas de sofrimentos, a exemplo da depressão. Esta
padronização dos critérios de diagnóstico, por outro lado, foi um elemento
importante na popularização de uma terapêutica bioquímica, bem como na
legitimação de uma epistemologia médica de base neurológica. Diríamos que a
eficiência dos novos psicofármacos no tratamento de uma síndrome qualquer age
como critério reverso de validação da nosologia que orienta este tipo de
psiquiatria: se um conjunto de sintomas pode ser tratado com um medicamento
dado é porque estamos diante de um transtorno específico. Todos devemos ter em
mente aqui a dificuldade que a psiquiatria sempre teve de ser tratada como uma
prática médica entre outras precisamente por não contar com pressupostos etiológicos
convincentes: ela compensa isso com uma predisposição classificatória, presente
desde os primeiros esforços de seus fundadores. Essa dificuldade é compreensível:
parece bem mais fácil estabelecer uma relação causal entre o entupimento de uma
artéria e a ocorrência de um infarto que encontrar as “causas” biológicas da
esquizofrenia.
“Yet no mental disorder is
associated with a consistente biological marker either from neurochemistry or
from imaging data. This suggests that psychopathology is too complex to be
readily classified, either in distinct categories, or in broad spectra. For
example, the fact that psychopharmacological agents can change brain chemistry
does not prove the fact that mental disorders are caused by ‘chemical
imbalance’. Similarly, the fact that mental disorders are associated with
change in brain function that can be measured by imaging does not prove that
alterations in the activity of neuro-circuitry are the cause of these illness” (Paris, p.40).
O sintoma, no contexto da psiquiatria de orientação
biológica, funciona como um critério para estabelecimento de uma etiologia.
Isto ocorre na medida em que uma síndrome possa ser objeto de intervenção
medicamentosa que a atenue: a classificação psiquiátrica de um sofrimento, isto
é, um conjunto de sintomas, e sua medicalização, assim, andam de mãos dadas. Neste
sentido, o fato de a psiquiatria hegemônica na contemporaneidade dispor de
quadros nosológicos amplos que constatam o aumento vertiginoso dos diagnósticos
de depressão parece, ao mesmo tempo, apontar para a necessidade de intervenções
químicas. Porém, o fato de dispormos de enormes gavetas para, mediante uma
conferência rápida de um quadro sintomático, arquivar situações de mal-estar em
dada categoria pode significar que este mal-estar tenha uma dimensão
ontológica, biológica e social mais complexa que o desejo de alguns por métodos
pragmáticos de lidar com o sofrimento pode admitir. Escutemos a esse respeito,
mais uma vez, o psiquiatra estadunidense Joel Paris:
“Infelizmente, reducionismo biológico não consegue
reconhecer sistemas complexos têm propriedades emergentes que não podem ser
inteiramente explicados com base em seus componentes. Embora a mente não exista
sem o cérebro, ela não pode ser reduzida a circuitos neurológicos ou mecanismos
celulares” (Paris, p. 40)
Creio que devemos nos perguntar que mudança
discursiva, epistemológica, encontra na nosologia do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais – sobretudo em suas três últimas versões - sua
racionalização típica. A meu ver, estamos diante de uma transformação profunda
de sentido metadiscursivo, ou seja, uma mudança que diz respeito ao próprio
sentido da linguagem nos processos de comunicação que se estabelecem no
dispositivo psicofarmacológico e de um modo bem particular na relação entre
médico e paciente. Diríamos inicialmente que a pretensão destes guias de
diagnóstico da saúde mental é constituir um processo científico de entrada,
processamento e saída de informações não ambíguas de modo a orientar um tipo de
terapêutica tão racional e simples que seria plenamente compreensível não
apenas pelo psiquiatra, pelo especialista, mas por clínicos gerais, demais
especialistas e leigos. Porém e, sobretudo, a lógica de operação desses manuais
é tornar possível a própria automatização dos mecanismos diagnósticos. Uma medida
considerável de automatização das trocas comunicacionais entre médico e
paciente – e, assim, a degradação do sentido como parte inerente do processo
terapêutico - está na raiz da racionalidade do dispositivo como um todo. Por
essa razão não parece fortuito que Robert Spitzer, que teve uma posição chave
na força tarefa que elaborou a versão 3 do DSM, fale da pretensão de
transformar diagnósticos em algoritmos, em tudo semelhantes àqueles que
encontramos na programação computacional. Apenas esse processo permitiria
construir mecanismos estatísticos capazes de estimar a real situação da saúde
mental dos E.U.A. Os algoritmos de que fala Spitzer, neste sentido, são, não apenas
relevantes, mas um elemento central da lógica mais ampla que articula o próprio
dispositivo: mapear, identificar e controlar o sofrimento.
“The
Patient Health Questionnaire (PHQ) is a 3-page questionnaire that can be
entirely self-administered by the patient. The clinician scans the completed
questionnaire, verifies positive responses, and applies diagnostic algorithms
that are abbreviated at the bottom of each page. The PHQ assesses 8 diagnoses,
divided into threshold disorders […], and subthreshold disorders”[3].
O desdobrar deste tipo de raciocínio pode ser
comprovado nas versões do DSM que se seguiram à sua terceira versão. O sentido
geral do empreendimento era criar categorias analíticas claras que pudessem
estabelecer um padrão internacional de diagnóstico de transtornos mentais, à
semelhança da International
Classification of Diseases. Tratava-se pois fornecer “critérios somáticos
explícitos”, e universalizáveis, capazes de servir sem ambiguidades ao
diagnóstico dos transtornos mentais. A padronização que promove o DSM-III foi
de fundamental importância para “explosão de pesquisas na área de saúde mental”
(Spitzer in Horwitz e Wakefeld, 2007, p. 7-8). Quando falamos aqui, seguindo
Horwitz e Wakefeld, de “explosão de pesquisas”, temos em mente pesquisas
quantitativas em grande escala, capazes de perceber como um mesmo caso de
depressão o sofrimento de pacientes em princípio bastante diversos. Quando hoje
falamos de uma explosão de casos de depressão no mundo, devemos ter em mente o
caráter organizador desses manuais diagnósticos e de sua capacidade de reduzir
a complexidade do real.
É claro que não se trata aqui nem de
demonizar o DSM nem o psicofármaco, mas de entendê-los no contexto de uma
discursividade mais ampla e que diz respeito às formas como a reprodução da
vida, da saúde mental e da subjetividade são empreendidas no contexto do
turbocapitalismo. Essa discursividade e a compreensão do que seja linguagem e
comunicação podem ainda ser ilustrados pela mesma busca de algoritmos que
racionalizem a linguagem cotidiana e busquem já não a compreensão esquematizada,
a significação mesmo que simplificada do sofrimento, mas sua domesticação nos
fluxos comunicacionais mais amplo da técnica. Em 04 de setembro de 2015, a Folha de São Paulo, em reportagem de
Giuliana Miranda, anunciava sem qualquer consideração crítica em seu caderno
“equilíbrio e saúde” o desenvolvimento de um “novo algoritmo ajuda cientistas a
prever casos de psicose”. Como Heidegger já propôs em seus ensaios sobre
linguagem e cibernética, a linguagem reduzida à comunicação, aos fluxos
comunicacionais, é esvaziada de toda ambiguidade, de toda pluralidade semântica
que se oponha à aceleração e à antecipação tecnológica. Parece que é isso de
que se trata aqui. Não é de estranhar que a psiquiatria que se desenvolve no
contexto do que chamamos aqui dispositivo psicofarmacológico trate a expressão
linguística do psicótico como um mero conjunto de sinais, como elemento
matematizável que pode oferecer dados mais amplos de previsibilidade da psique.
Desenvolvido por um time internacional de pesquisadores, o algoritmo de que
fala a reportagem “consegue analisar a fala de pacientes psiquiátricos e prever
aqueles que irão desenvolver uma psicose”. Mais abaixo somos informados: “Pacientes
com esquizofrenia, uma das psicoses mais conhecidas, têm vários sintomas
perceptíveis na fala, inclusive um certo grau de confusão e repetição. O que os
algoritmos dos cientistas fazem é automatizar o processo de identificação, que
hoje é feito pelos ouvidos atentos dos psiquiatras nos consultórios”. Se
ouvidos atentos dos psiquiatras já podem ser concebidos como supérfluos, tenha
ou não viabilidade prática e econômica o algoritmo de que fala a reportagem, é
porque a questão do sentido da comunicação, da linguagem, já foi reduzida a uma
sintomática, a um conjunto de sinais que não apenas podem ser manipulados
automaticamente, mas são, eles próprios, percebidos como signos matemáticos. A
vida desnudada de sentido, a palavra esvaziada de sua dimensão semântica, já
não é objeto de exegese, de interpretação, mas pode ser antecipada. Desde Marx,
como já enfatizamos acima em nossa primeira nota de rodapé, a abstração do
trabalho do ser humano, a perda de qualquer caráter subjetivo no laborar,
significava tanto sua bestialização com a própria possibilidade de
automatização. A redução da linguagem a um ato de performatividade
comunicacional, a um conjunto de signos, de sintomas antecipáveis,
matematizáveis, parece agora constituir um elemento fundamental no
empobrecimento da experiência sem o qual uma dinâmica dromológico, de consumo
vertiginoso não parece concebível.
Tudo isso nos impele a refletir acerca dos motivos
pelos quais as condições sociais de produção do sofrimento, hoje tratado por
uma psiquiatria de base bioquímica, são deixadas de lado. É claro, por exemplo,
que o ritmo da vida contemporânea tem levado a quadros que são avaliados como
depressivos – toda uma literatura e estatísticas sobre a ocorrência de síndrome
de burnout nas grandes cidades apoiam
esse tipo de constatação. A verdade porém é que para além desse vetor
macrossociológico a própria dinâmica daquilo que Sadler (26) denomina Complexo
Médico-Industrial da saúde mental (MHMIC) deve ser considerado como fator
importante para entendermos o aumento expressivo dessas estatísticas. O
argumento de Sadler é simples: como qualquer negócio, o MHMIC procura expandir
constantemente seu mercado e, assim, maximizar o lucro de seus investidores.
Neste sentido, por exemplo,
“um compromisso
constante da psiquiatria Americana para aumentar o número de categorias de
transtornos mentais [mental disorders] é uma valiosa, talvez essencial,
contribuição para essa agenda expansionista. Até o momento, cada revisão do DSM
adicionou novas categorias e/ou subcategorias de transtornos. Mais, a indústria
farmacêutica provavelmente se beneficia da abordagem descritiva e “ateórica” do
diagnóstico, posto que o ateorismo contribui para potenciais prescrições
cruzadas (prescrições cruzadas são o uso do mesmo composto para diferentes
categorias de diagnóstico, tais como usar SSRIs[4] tanto
para a depressão quanto para a ansiedade”.
Sadler propõe ainda que observemos algumas dimensões
Complexo Médico-Industrial da saúde mental. A primeira delas é, sendo o negócio
seu motor, ele sobrevive da busca incessante por “maximizar lucros” e “minimizar
custos”. Terapias baseadas em medicamentos, no tratamento de sintomas claros e
rapidamente identificáveis, são uma alternativa bem mais barata que “terapias
psicossociais”. Comparemos uma consulta de um psiquiatra de orientação
neurobiológica, isto é, para quem o conjunto de sintomas leva ao diagnóstico e
ao medicamento, com um psiquiatra de orientação psicanalítica, em cuja prática
o sintoma é apenas o início de uma longa “investigação”. A guinada da
Associação Psiquiátrica Americana para fora da influência psicanalítica, neste
sentido, pode ser entendida como uma decisão econômica. AA pressão por eficiência
e por critérios racionais de gestão dos serviços de saúde acomodam-se e impelem,
deste modo, perfeitamente à virada que se produz na psiquiatria estadunidense a
partir do lançamento do DSM-3, e que Paris acertadamente denomina “reducionismo
biológico”. As mudanças de orientação biomédica que existem entre o DSM-II e o
DSM-III, como é sabido, devem-se em larga medida à síntese de medicamentos mais
eficazes no “tratamento de transtornos mentais”. “O efeito dramático da
clorpromazina, dos diazepínicos e dos antidepressivos tricíclicos abalou
completamente a ideia de separação entre processos orgânicos e psicológicos,
ajudou a desmontar a centralidade do tratamento hospitalar, e ampliou o
contingente de condições tratáveis pelos médicos” (Bezerra Jr., p. 24). Numa
série de entrevista que realizei com psiquiatras e psicólogos em Lisboa no ano
de 2014, a pressão gerencialista do sistema de saúde português, sobretudo no
que ele diz respeito às metas de atendimento de pacientes com algum tipo de
sofrimento psíquico, foi apontada como tendo impacto direto no tempo que os
profissionais da saúde mental pode dedicar a consultas, bem como na existência
de intervalos demasiadamente longos entre aquelas. Isso reforça, segundo entendo,
a tendência a adotar métodos de diagnóstico e tratamento compatíveis com, ou
mais ajustáveis a, essa pressão.
Fatores como uma cultura de saúde baseada na
responsabilidade individual, ressaltada por autores como Nikolas Rose e Alain
Ehrenberg, além de formas diversas de propaganda e de divulgação do produtos e
serviços do Complexo Médico-Industrial de Saúde Mental, as relações econômicas estreitas
entre a indústria farmacêutica e a pesquisa científica, entre investigação e
negócio, além de lobby político das
grandes empresas deste Complexo junto ao Congresso são fatores que Sadler
acertadamente considera como relevantes para entender o que aqui chamamos de dispositivo
psicofarmacológico. Hegemônico nos EUA, este dispositivo parece particularmente
relevante por explicar mudanças culturais em nosso próprio sistema de saúde e
de saúde mental.
Todavia, quando parte dos profissionais da saúde
mental parecem se escandalizar ao constatar que, com base nas espectativas hegemônicas
na Associação Psiquiátrica Americana, na popularização de psicofármacos, na
pressão do mercado da saúde mental, tenha-se passado a tratar sofrimentos
perfeitamente “normais” com medicamentos, uma expectativa algo parece escapar a
este sentimento e à crítica mais ampla que a ela subjaz. Isso diz respeito à
própria ideia de normalidade como elemento regulador da prática médica. Espera-se
que a medicina continue a regular suas ações através da oposição entre normalidade e patologia, como percebeu
Canguilhem na década de 1940 acerca da medicina dos séculos XIX e XX. Neste
contexto, apenas o que pode ser considerado patológico deveria ser objeto de
qualquer medicalização, ou seja, de intervenção médica e medicamentosa.
Para ser exato, a medicina hegemônica na
contemporaneidade e as terapias que dela advém ainda se orientam, em um número
considerável de situações, através dessa oposição. A saúde mental não
desconhece essa situação. Ainda vamos ao médico e somos tratados por sermos
afetados por algum tipo de doença ou para prevenir uma predisposição patogênica
– embora essas duas situações sejam bem distintas. Porém, é evidente que a
atuação da medicina e da indústria farmoquímica não se atêm a esse tipo de circunscrição,
isto é, de reconduzir, na medida do possível, o corpo em padecimento à saúde. O
apoio que o Complexo Médico-Industrial dá ao desporto de alta performance
atesta que a fronteira entre normalidade e patologia não organiza a totalidade
biossocial e biopolítica desta atuação. O uso de Ritalina com o objetivo de
melhorar concentração e performance intelectual em pessoas não diagnosticadas
com transtorno de hiperatividade e atenção também parece ilustrar o que
afirmamos. Uma lógica psiquiátrica que tem como parâmetro básico de atuação
médica a funcionalidade dos indivíduos em um contexto social em que a saúde
mental, ou simplesmente de bom senso, poderia significar a rejeição desta mesma
funcionalidade parece também indicar que as fronteiras entre normalidade e
patologia estão sendo ressignificadas. Deste modo, quando transtornos psíquicos
passam a ser identificados como “perda de funcionamento biológico ótimo”, dado
um contexto evolucionário específico, ou uma “disfunção” que se traduz em
desvantagem (Kinghor, p. 49 e 50) física, perceptiva, sexual etc. para um
determinado indivíduo, implícito parece-nos aqui um contexto de concorrência
que funciona como marcador do que deve ser objeto da intervenção médica.
Não parece fortuito que a palavra transtorno (disorder, em inglês) substituia um jargão
psiquiátrico mais diretamente relacionado ao mundo das patologias mentais, como
seria o caso da palavras neurose ou psicose. O Transtorno, a “desordem”, e não
necessariamente a patologia, passam a organizar uma parte considerável das
intervenções nesses campos. A própria ideia de transtorno mental passa a
depender de uma apreciação subjetiva da intensidade do mal-estar por parte do próprio
paciente. Foi essa, aliás, a estratégia adotada pela APA para responder aos
grupos de defesa dos direitos homoafetivos que se contrapunham à patologização
de suas opções sexuais, tal como podemos ainda ler no DSM-III. Claro que devemos
comemorar o avanço político que, neste ponto, percebemos em versões ulteriores
do DSM com relação àquela postura mais conservadora: a homoafetividade não é um
transtorno psíquico até que o indivíduo a perceba como tal. Interessa, no
entanto, perceber que a patologia neste, como em outros casos, depende de uma
avaliação do quanto o indivíduo pode suportar pressão social. Assim, não parece
fortuito que parte substantiva deste campo esteja pautado por uma atenção
grande ao sintoma, à síndrome, e não à constatação das bases etiológicas de uma
enfermidade qualquer.
Christian Dunker, advogando a necessidade de ter em
mente as condições históricas em que narrativas sobre a saúde mental - tanto na
psicanálise quanto na psiquiatria - estruturam-se no sentido de uma medicina
classificatória que tem a histeria com ponto de partida, afirma a necessidade
de perceber um deslocamento neste campo biopolítico. Para ele, seria necessário
perceber que a “hipótese repressiva”, de que nos fala Foucault até o primeiro
volume da História da Sexualidade,
teria sido substituída por uma “hipótese depressiva”. No primeiro caso, a
contenção e disciplinamento da energia libidinal a serviço de aparelhos
produtivos racionais, previsíveis, seria a base da atuação das narrativas
científicas no campo da saúde mental e de seu foco na histeria. Atualmente, todavia,
uma narrativa em torno da “potência-impotência” passaria a organizar este
campo. Esses polos caracterizam o que Dunker denomina “hipótese depressiva”. Não
seria a interdição do desejo o que fundaria os dispositivos biopolíticos
contemporâneos - interdição diagnosticada, como sabemos, por Freud de modo
claro ao teorizar sobre a mulher histérica -, mas o imperativo e, ao mesmo
tempo, impossibilidade do gozo que nos propõe a sociedade de consumo. A lógica
do consumo não é fundamentalmente repressiva, mas tem na oposição
potência-impotência sua verdade. A cultura do consumo se funda nesta aparente
aporia, ou seja, no imperativo do desejo, pois quem não está apto para o desejo
está deprimido, e em sua impossibilidade. A lógica que funda essa economia
tensa, ambígua, é niilista. A irresolução desse paradoxo nos garante
diuturnamente a posição de desejantes insaciáveis e, assim, de consumidores
vorazes.
O filósofo Peter
Sloterdijk fala-nos dos aspectos niilistas de uma mobilização infinita dos
seres que é promovida pelas tecnologias da velocidade – que constituem,
argumentamos, o fundamento do dispositivo biopsicofarmacológico. “Eis aí o que
nos proporciona a fórmula dos processos de modernização: o progresso é
movimento em direção ao movimento, movimento em direção a mais movimento,
movimento em direção a uma maior aptidão para o movimento” (La mobilisation
infini, p. 35). Nesta mobilização sem sentido de todas as coisas pelo
imperativo da velocidade, nós somos capturados. Hartmut Rosa, de uma
perspectiva mais sociológica, oferece uma análise interessante das tensões e
intensidades entre diferentes âmbitos da aceleração, nomeadamente, no campo
tecnológico, social e individual. “Experimentar a vida em todos os seus altos e
baixos e em sua inteira complexidade se torna a aspiração central do homem
moderno. As opções oferecidas sempre ultrapassam. Mas, ao fim e ao cabo, o
mundo sempre parece ter mais a oferecer do que pode ser experienciado em uma
vida individual”. Zapear é a realidade íntima do “homem moderno”, portanto. Algumas
linhas adiante, Rosa arremata: “A aceleração serve como estratégia para apagar
a diferença entre o tempo do mundo e o tempo de nossa vida. A promessa
eudemonista da aceleração moderna então parece ser um equivalente funcional das
ideias religiosas da eternidade ou vida eterna, e a aceleração do ritmo da vida
representa a resposta moderna ao problema da finitude e da morte” (Rosa, 2009,
p. 91). Buscamos a intensidade do presente, sua aceleração e múltiplas
possibilidades, como há alguns séculos se buscava um futuro, uma vida além da
morte, que nos redimisse de nossa perecibilidade. Essa é no limite a promessa
do psicofármaco.
Quanto à leitura de Christian Dunker, ou seja,
quanto a afirmação de termos sido capturados pela potência-impotência que
subjaz à “hipótese depressiva”, ela é compatível com uma outra que nos oferece,
num humor baudrillardiano, Byung-Chul Han:
“De um
ponto de vista patológico não é o princípio bacteriano em o viral que
caracterizam a entrada no século XXI, mas, sim, o princípio neuronal.
Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, o transtorno por défice
de atenção e hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações de personalidade –
transtorno de personalidade borderline (TPB) ou síndroma de burnout
(SB) – descrevem o panorama patológico do século XXI” (Han, 2014, p. 9).
O que
caracteriza esse novo panorama? “Não estamos já perante infeções, mas, sim,
enfartes, originados não pela negatividade do outro imunológico, mas,
sim, por um excesso de positividade” (Ibid.). Isso não significa que a metáfora
da coerência imunológica não tenha adeptos ou apelo, mas que uma nova dinâmica
discursiva parece se impor. O tipo de sofrimento de que fala Han, pois, é
caracterizado por um excesso de positividade, algo de que já nos falava Jean
Baudrillard em textos como A transparência do mal ou Cultura e
Simulacro.
Em consonância com o que mais acima denominamos, a
partir de Dunker, “hipótese depressiva”, é possível dizer que o sofrimento
contemporâneo, pensado a partir da oposição potência-impotência, pode ser
traduzido no que se tem convencionado chamar crise da subjetividade. Neste
sentido, poderíamos dizer que o dispositivo psicofarmacológico atua
precisamente no terreno desta ambiguidade, reproduzindo, ampliando-a. A prótese
química, mas não apenas ela, como propomos ao longo desta comunicação, atua no
sentido de garantir um certo bem-estar ao indivíduo tensionado entre o
compromisso de garantir autodeterminação em suas ações, responsabilidade sobre
sua saúde, estar apto a responder às demandas do capitalismo contemporâneo
etc., por um lado, e impossibilidade de realizar essas condições elementares,
capturado que está este indivíduo em fluxos sociais amplos, globais. A
substituição do Estado de Bem-Estar Social por políticas neoliberais teve como
efeito uma responsabilização do indivíduo por sua saúde. Isso significa o
recurso a seguros privados neste campo, com certeza, mas todo um discurso em
que o indivíduo – através de programas televisivos, de dicas de bem-estar, do
que comer e o que não comer, de terapias alternativas de como ter boa saúde
mental etc. que grassam nas mídias sociais, por exemplo – é educado no sentido
da autodeterminação. Por tudo o que dissemos acima, no campo da saúde mental,
todavia, essa autodeterminação é irrealizável se tivermos em conta a forma como
o Complexo Médico-Industrial da Saúde Mental estrutura as opções consideradas
racionais, viáveis de se obter bem-estar. Num sentido político mais amplo, é
possível dizer que o indivíduo é convocado para a democracia – convocado por um
apelo à sua responsabilidade cívica, à sua subjetividade – ao mesmo tempo em
que a racionalidade das decisões políticas nos ensina o pragmatismo de entender
que essas decisões transcendem a escala local, ao que podemos fazer como
indivíduos ou comunidade.
Uma conclusão parece apontar para uma
crise na própria ideia de subjetividade mediante a qual a modernidade formulou
diversas e importantes estratégias biopolíticas. Foucault, por exemplo, nos
falava que o Panótico de Bentham era
o paradigma de constituição desta subjetividade. Creio que é preciso entender,
entretanto, que o discurso da subjetividade sempre foi um discurso de crise –
talvez com a exceção do pensamento utilitarista que verdadeiramente acreditava
num sujeito autocentrado. É mediante a crise, e a aporia da
potência-impotência, precisamente, que a subjetividade, empobrecida e
diuturnamente convocada pelo consumo e pela aceleração, resiste como ideia-chave
do atual dispositivo psicofarmacológico.
[1]
Talvez seja útil lembrar que a proposição segundo a qual o capitalismo leva à
animalização pode ser encontrada já nas teses que Marx oferece acerca do processo
de automatização promovido pela industrialização. Apenas uma vida animalizada, reduzida ao mero
funcionar biológico, isto é, a vida do proletário, pode ser automatizada convertida em procedimentos
mecânicos, exteriorizada e interiorizada sob a forma de um automatismo. Os Manuscritos Econômicos-filosóficos estão
repletos de considerações que reforçam essa interpretação.
[2] Fonte: http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/estado/2014/08/18/no-brasil-mortes-por-depressao-crescem-705-em-16-anos.htm; acessado em 11/09/2015.
[3] Kroenke et al. Fonte: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1495268/; acessado em 26/02/2014.
2 comentários:
Jonatas,
Não sei se estudiosos desses temas recebem bem o uso da noção foucaultiana de dispositivo para articular o turbocapitalismo à indústria psicofarmacológica, mas a mim sua argumentação é convincente. E gostei particularmente de um ponto en passant de seu texto: o de que apenas no utilitarismo se verifica uma crença na subjetividade autocentrada. Penso que o ideal impossível de sujeito que vivemos com essas articulações se encontra no utilitarismo. Mas como ainda não é muito aceitável a defesa desse sujeito utilitarista, tenho visto muito discurso deformando a noção de subjetividade do pragmatismo para justificar sua submissão à aporética orientação potência-impotência de que você fala. Fez-me lembrar da resposta de um dirigente do Vale do Silício (que também é filósofo) a um filósofo francês que critica o neoliberalismo por considerá-lo contraditório com o princípio concorrencial capitalista. Disse o transhumanista do Vale: “o capitalismo não é concorrencial; e nisto estou com Marx: o capitalismo funciona sob modo oligopólico”. Para mim, o que percebo como cinismo absoluto do cara do Vale do Silício pode ser interpretado como elegia à noção utilitarista da subjetividade. Acho que esse seu texto merecia ser desenvolvido em livro, para que cada dimensão que você trabalha fosse apresentada com mais detalhes. O que acha?
Oi, Tâmara. Obrigado pelo comentário e incentivo. Ainda não sei quanto ao livro, mas pretendo desenvolver esses pontos em um artigo mais extenso. Abraço.
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