terça-feira, 17 de maio de 2016

Sofrimento e Silêncio: uma discussão acerca da saúde mental na contemporaneidade a partir do avanço da Psicofarmacologia (versão preliminar) PARTE 2



Jonatas Ferreira


De acordo com Foucault, a realidade do capitalismo é a mobilização constante da vida biológica, o estímulo diuturno para que falemos, confessemos, ou seja, o investimento constante na construção de interioridades que já nasçam ligadas às dinâmicas econômicas, aos dispositivos de poder disponíveis. Para ele, concebido como tecnologia da subjetivação, o biopoder não faz calar. Pelo contrário, solicita a confissão, o tagarelar constante, o que possibilita a administração dos corpos e das populações. Esse confessar constante diante de psicólogos, educadores, assistentes sociais seria parte do próprio dispositivo mediante os quais se produz interioridade e subjetividade. Além disso, o biopoder seria uma tecnologia de proliferação da vida biológica e, em sua positividade, não possui uma dinâmica marcadamente tanatológica. Giorgio Agamben, a partir do Homo Saccer, como sabemos, ganhou grande atenção nas ciências sociais por contestar este último pressuposto das formulações foucaultianas sobre dinâmicas políticas contemporâneas. Para ele, devemos matizar a ideia de uma positividade das dinâmicas biopolíticas, ou seja, que elas sejam marcadas pela mobilização e proliferação da vida, e perceber também uma dimensão tanatológica que lhe é intrínseca. O campo de concentração, segundo Agamben, é um exemplo limite, não um acidente, do quão necessário é considerarmos essa dimensão.

Em linha com as ponderações agambenianas, acredito que devemos também afirmar que a administração política e econômica da vida biológica requer um tipo particular de silenciamento. Se de fato a comunicação, a tagarelice da sociedade em rede, deve ser compreendida como quintessência de nossos envolvimentos culturais e técnicos, parece que essa perspectiva implica o amesquinhamento de possibilidades linguísticas, existenciais mais amplas. Ali, como nos exemplos que viemos arrolando, não se trata mais de um poder sobre a vida que teria implicações necessariamente subjetivadoras, pois a própria subjetividade entendida como condição mais econômica e eficiente de exercer controle político – mediante um controle de si - é posta em um tipo curioso de suspensão. O recurso constante que as sociedades liberais fazem à responsabilidade subjetiva com relação ao próprio corpo, à própria saúde, por exemplo, parece se chocar com o sentimento de estupor, de impotência que os indivíduos vivenciam ao se confrontarem com os poderosos vetores econômicos e políticos globais. Byung-Chul Han captou bem esse clima cultural ao afirmar que a imunologia se esgotou como campo ao qual recorremos para coletar metáforas que nos ajudem a pensar nos males contra os quais precisamos investir em uma coerência interna - em oposição a ameaças externas, 'virais', 'bacteriológicas'. No mundo descortinado por Foucault, a ideia de subjetividade podia ser pensada nestes termos: como busca de manutenção de uma verdade interna contra as adversidades da alteridade. Porém,
“De um ponto de vista patológico não é o princípio bacteriano nem o viral que caracterizam a entrada no século XXI, mas, sim, o princípio neuronal. Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, o transtorno por défice de atenção e hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações de personalidade – transtorno de personalidade borderline (TPB) ou síndroma de burnout (SB) – descrevem o panorama patológico do século XXI” (Han, 2014, p. 9)[3].
No campo da prática médica, a obsolescência da subjetividade parece também marcante. A anamnese de um paciente que recorre à Psiquiatria contemporânea, para ser catalogado como portador de um transtorno bipolar, de uma fobia ou de uma síndrome de pânico, passa por uma redução comunicacional do seu sofrimento a um conjunto de sintomas que podem ser mapeados com clareza e de forma não ambígua. Essa não ambiguidade, simplificação, a oferta de diagnósticos supostamente objetivos, parece constituir sua força política. Numa sociedade da dissolução e da "aceleração da aceleração", muitas vezes ser enquadrado, catalogado é um conforto, uma âncora contra o vendaval dessa história intensa. Nesse caso, os processos de significação do sofrimento parecem ser ofertados de fora para dentro, e não o resultado de um investimento em si, como comumente ocorre quando analisamos tecnologias disciplinares, e que Foucault julga ser o caso das psicologias em sua totalidade.

Avancemos sobre o sentido desse processo. Ao se debruçar nos pressupostos epistemológicos da biologia moderna, Canguilhem (1977), mais uma vez nos oferece subsídios importantes. Permitam-me o que agora parecerá um pequenos excurso. Para Canguilhem, a ideia da vida como máquina que se autorregula é um divisor de águas na história da biologia. O modelo de compreensão da vida pelos biólogos, a partir do século XIX, passa por conceber o organismo vivo como “usina química inteiramente automática”, ou seja, entendê-lo como mecanismo de eficiência virtualmente perfeita. A máquina, por seu turno, passa a ter no organismo autorregulado um ideal de funcionamento. O que determina tal eficiência e perfeição? “Ajuntemos enfim que a superioridade dessas funções orgânicas sobre as funções tecnológicas análogas é reconhecida, senão em sua infalibilidade, ao menos em sua confiabilidade, e na existência de mecanismos de detecção e de retificação disso que os bioquímicos nomeiam os erros e as falhas da reprodução” (Canguilhem, 1977, p. 123; os itálicos aqui são meus).

Interessa a Canguilhem m entender o sentido da existência da ideia de normalidade no corpo teórico da biologia. Parece clara a importância da regulação produzida pela ideia de normalidade biológica, que é transferida da biologia para a medicina e, contemporaneamente, para a Psiquiatria e para a Psicologia de base cognitiva. Mas a metáfora que garante a inteligibilidade do organismo vivo – entendido como máquina confiável, capaz de identificar e retificar bioquimicamente suas falhas – interessa-nos não menos. Trata-se de uma metáfora que antecipa em alguma medida a ideia de organismo cibernético, de um organismo que se debate contra a tendência a desorganização da matéria, e que para tal procura identifica os seus erros, falhas de adaptação em um ambiente dado. Essa coincidência epistemológica tem consequências cruciais, pois permitirá pensar a própria integração e adaptação do organismo vivo aos circuitos técnicos informacionais, com suas exigências por celeridade, intensificação etc. Não seria precisamente essa a lógica que preside ao dispositivo psicofarmacológico? Afinal, não se trata de garantir o funcionamento dos indivíduos num contexto de aceleração constante? Que a Psiquiatria não possa identificar a base fisiológica que determina as patologias mentais com a segurança que o podem fazer outros campos da medicina, parece não ser tão importante quanto a ideia de que nosso psiquismo é algo como uma usina química capaz de se autorregular e corrigir os seus próprios erros de expressão. Quando essa autorregulação não ocorre, caberia à intervenção médica agir de modo a reparar, compensar a falha orgânica. O organicismo dessa concepção é, portanto, extremamente revelador em seu conservadorismo, pois para ela o meio ambiente social é algo dado, algo ao qual teremos necessariamente de nos adaptar.

Em “La formation du concept de régulation biologique aux XVIIIe et XIXe siècles” (1977), Canguilhem nos apresenta outras ideias importantes. De acordo com ele, o diálogo, a mútua influência entre as biociências, por um lado, e a física, a cosmologia, por outro, tem longa data. “O termo [regulação] foi introduzido na psicologia por via de metáforas, em uma época em que as funções que ela designa estavam bem distantes de ter suscitado os estudos comparativos de ondem saíram uma teoria geral das regulações e da homeostase orgânica, apta por seu turno a fornecer metáforas inspiradoras de racionalização rigorosas, de onde deveria nascer um dia a cibernética” (p. 82). Aqui valeria uma pequena nota sobre a lógica que a cibernética, a teoria da informação, a dinâmica técnica que elas aportam à sociedade capitalista como um todo, e a produção de um dispositivo biotecnológico e biopolítico em seu seio. Ouçamos Simondon a esse respeito:

Enfim, no nível dos conjuntos técnicos do século XX, o energetismo termodinâmico é substituído pela teoria da informação, cujo conteúdo é eminentemente regulador e estabilizador: o desenvolvimento das técnicas aparece como uma garantia de estabilidade. A máquina, como elemento do conjunto técnico, torna-se aquilo que aumenta a quantidade de informação, o que faz crescer a neguentropia, o que se se opõe à degradação da energia: a máquina, obra de organização, de informação, é, como a vida e com a vida, o que se opõe à desordem, ao nivelamento de todas as coisas que tendem a privar o universo do poder de mudança (Simondon, 2012, p. 17-18).[4]

A noção de regulação se introduz nas ciências mecânicas e nas ciências da vida mediante uma discussão religiosa acerca de como Deus mantém a ordem em sua criação. Leibniz e Newton apresentam a esse respeito posições polares. O primeiro propõe a existência de um Deus Regulador que atua ao longo do tempo, contornando problemas, reconduzindo o mundo criado recorrentemente para a ordem. O princípio regulador atua, por assim dizer, de modo histórico posto que age sobre a contingência. Newton, por seu turno, acredita num princípio de regulação intrínseco à criação que desobrigaria Deus de uma manutenção histórica do existente. Importante dizer que a medicina dos séculos XVII e XVIII apropriou a mecânica newtoniana a partir deste pressuposto mais geral do pensamento lebniziano - na Teodicéia, Leibniz claramente associa essa discussão à própria possibilidade de entender o sofrimento no mundo, ou seja, o padecimento é proposto como mal menor de um Deus sempre previdente e no controle das coisas. Importante que essa discussão mobilize sempre uma imagem bastante política, nomeadamente, a do monarca às voltas com a implementação infinita de sua potência. É neste sentido que se impõe a história como questão de um poder que regula antecipadamente, ou seja, que estabelece na criação estratégias intrínsecas de autocorreção.

Retornemos. Assim, é possível repetir aqui Canguilhem: “Na medicina, a experiência vivida da doença pelos doentes e a cura parecem sugerir por si própria um poder orgânico de restituição e reintegração” (p. 88). O princípio de regulação e cura é interno ao organismo. Uma das consequências desse tipo de perspectiva científica é fornecida por Joanna Bourke, em Story of pain. Mesmo quando alguns primeiros anestéticos já estavam disponíveis no século XIX, alguns médicos preferiam confiar na sabedoria da regulação natural, preferiam não interferir quimicamente para aliviar o padecimento (Bourke, p. 275-277). Também é curioso o fato de Canguilhem reservar na história do conceito de regulação nas ciências da vida um lugar especial a Auguste Comte, precisamente por, num humor lamackiano, este propor que a vida e o mundo social são regulados pelo meio externo, caso contrário, perecem. A passividade do interno com respeito ao externo é um legado positivista digno de nota. Sobretudo dado o tema que analisamos neste ensaio. Vale a pena citar, neste sentido, Comte mesmo que, aqui, de segunda mão: “Existe loucura quando «o fora não pode regular o dentro» Syst. Pol. Pos., III, 20(2)” (p. 94).

A consequência mais profunda que a aproximação entre ciências da vida e cibernética parece implicar está contida não na ideia de um corpo vivo que deve ser levado à ordem, à normalidade, à homeostase pela intervenção médica, mas na compreensão de que este corpo está em constante risco de adoecimento e que portanto deve ser cronicamente tratado para que tal equilíbrio seja viável. Afinal a cibernética é a ciência do timoneiro, do controle como uma tarefa interminável. O investimento que a indústria farmacêutica faz em remédios que devem ser cronicamente tomados, mesmo que haja apenas o risco de o paciente desenvolver uma doença determinada, para além do sentido financeiro, que faz essa indústria se desinteressar por produzir medicamentos que curem de fato, como vacinas, tem esse sentido cultural mais amplo. A esse respeito convém dar atenção às palavras de Joseph Dumit: “Concluí que o crescimento contínuo e subjacente em drogas, doenças, custos, e insegurança é um entendimento relativamente novo de nós mesmos como sendo inerentemente doentes. A saúde passou a ser definida como a redução do risco” (2012, p. 12). A doença mental, seguindo essa lógica, deve ser entendida amplamente como o risco de não funcionar.

Mas a ideia de risco, que Dumit apropria dos trabalhos de Ulrich Beck e de Elizabeth Beck-Gernsheim, aponta para um componente temporal que leva necessariamente à ansiedade, ao temor com respeito ao que está por vir, como traço cultural da tecno-sociabilidade. Trata-se de um diuturno ocupar-se com o futuro. A vida propriamente dita, para nós, indivíduos imersos no capitalismo hiperacelerado, num mundo da perecibilidade e da vertigem, portanto, ainda haverá de chegar. Por isso estamos sempre envolvidos em aperfeiçoarmos nossos corpos e humores.

Aperfeiçoamento, como suscetibilidade, é orientado para o futuro. Virtualmente qualquer capacidade do corpo e alma humanos – força, resistência, atenção, inteligência e a própria duração da vida – parece potencialmente aberta à melhoria e intervenção tecnológica. Claro, humanos, em quase todos os lugares, tentaram melhorar suas identidades corpóreas […]. O que é novo, então, não é a vontade de melhoria, ou a melhoria em si. Em parte, eu suspeito, o sentimento de novidade e inquietação surge de um sentido que nós estamos mudando, nas palavras de Adele Clark e seus colegas, «da normalização para a personalização [customization]» (Rose, 2007, p. 20)”


Funcionar, em todo caso, é um critério decisivo da necessidade de intervenção terapêutica. Todos sabemos que algumas profissões demandam hoje mais investimento do que a maioria dos indivíduos poderia suportar, sem o auxílio de muletas psicofarmacológicas. A ideia de funcionalidade, é preciso que se diga, apresenta essa significação dupla: funcionar é tanto a necessidade de um sistema em aceleração, como a necessidade do indivíduo capturado em uma dinâmica empobrecedora e veloz. Como critério científico que orienta não apenas as classificações de sofrimentos psíquicos, mas a medicalização desses mesmos sofrimentos, a ambiguidade que a palavra funcionalidade alberga deve ficar na penumbra. O humanismo se escandaliza diante dos cenários abertos pela naturalização deste esquecimento. Julia Kristeva parece traduzir este sentimento quando afirma:
“Dois grandes confrontos, em minha opinião, aguardam a psicanálise de amanhã quanto ao problema de organização e de permanência do psiquismo. O primeiro é sua competição com as neurociências: “o comprimido ou a palavra”, sendo esta desde já a questão do ser ou do não ser. O segundo é a prova à qual a psicanálise é submetida pelo desejo de não saber, que se junta à aparente facilidade oferecida pela farmacologia, e que caracteriza o narcisismo negativo do homem moderno” (Kristeva, 1993, p. 39-40).


Bibliografia

CANGUILHEM, Georges. 2005. Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária.
-------------------------. 1977. Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin.
-------------------------. 2006. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária.

Crary, Jonathan. 2014. 24/17. Le capitalism à l’assault du sommeil. Paris, Zones.


Fédida, Pierre. 2002. Dos Benefícios da Depressão. Elogio da psicoterapia. São Paulo, Editor Escuta.
---------------------. 2003. Depressão. São Paulo, Editor Escuta.

Han, Byng-Chul. 2014. A sociedade do cansaço. Lisboa, Relógio D’Água.

KEHL, Maria Rita. 2010. O tempo e o cão. São Paulo, Boitempo.

KRISTEVA, Julia. 1993. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro, Editra Rocco LTDA.

ROSE, Nikolas; M. Abi-Rached. 2013. Neuro. The new brain sciences and the management of the mind. Princeton and Oxford, Princeton University Press.
-------------------. 2007. The Politics of Life Itself. Biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton and Oxford. Princeton University Press.




[2] “In America, medication is becoming almost as much a staple of childhood as Disney and McDonald’s. Kids pack their pills for school or college along with their lunch money. Some are taking drugs for depression and anxiety, others for attention deficit hyperactivity disorder (ADHD). The right drugs at the right time can save young people from profound distress and enable them to concentrate in class. But some adolescents, critics say, are given medication to mask the ordinary emotional turmoil of growing up; there is a risk that they will never learn to live without it”. Fonte: http://www.theguardian.com/society/2015/nov/21/children-who-grow-up-on-prescription-drugs-us. Acessado em 27/04/2016.
[3] O que caracteriza esse novo panorama? “Não estamos já perante infeções, mas, sim, enfartes, originados não pela negatividade do outro imunológico, mas, sim, por um excesso de positividade” (Ibid.). Isso não significa que a metáfora da coerência imunológica não tenha adeptos ou apelo, mas que uma nova dinâmica cultural parece se impor. O tipo de sofrimento de que fala Han, pois, é caracterizado por um excesso de positividade, algo de que já nos falava Jean Baudrillard em textos como A transparência do mal ou Cultura e Simulacro.
[4] Aqui talvez valesse a pena observar que a ideia de cibernética que orienta a contribuição teórica de Simondon opõe-se aos teóricos da teoria da informação em dois aspectos: ele considera a ideia de informação de que partem aqueles teóricos como extremamente redutora, a qual resulta na produção do autômato como ideia técnica reguladora, e ao fato de que, para ele, a abertura do aparato técnico cibernético, sua capacidade de emular o próprio ser vivo em sua indeterminação deveria ser tomado como ideal da cibernética.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Sofrimento e Silêncio: uma discussão acerca da saúde mental na contemporaneidade a partir do avanço da Psicofarmacologia (versão preliminar) PARTE 1



Jonatas Ferreira

Gostaria de agradecer a Adrian Scribano, a Diego Benegas, ao Instituto Gino Germani e à Fundação Barceló pelo convite e oportunidade de estar nestas “Terceras Jornadas Internacionales de Emergência y Catástrofe: Cuerpos Expuestos”. É um prazer revisitar Buenos Aires e apresentar alguns resultados gerais de uma pesquisa que venho fazendo há quatro anos sobre o tema do sofrimento na contemporaneidade e sobre algumas estratégias técnicas para lidar com ele. É um privilégio discutir essas ideias em um ambiente acadêmico que respeito e pelo qual tenho apreço. Agradeço sempre ao CNPq pelo financiamento que tem dado a essa pesquisa.

No ensaio “Saúde: conceito vulgar e questão filosófica”, Georges Canguilhem propõe a seguinte definição: “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos” (2005, p. 35). A frase, ele nos informa, é de um “célebre cirurgião” e professor da Faculdade de Medicina de Estrasburgo. Quem quer que esteja acometido por algum sintoma patológico - febre, dor de cabeça, apneia, taquicardia - entende e deseja esse silêncio, esse retorno a uma atitude natural com respeito ao funcionamento de nosso corpo, em outras palavras, anseia por esse esquecimento de si. O sofrimento, seja ele de ordem somática ou psicológica, grita-nos, solicita-nos, dirige nossa atenção para uma parte de nosso corpo, e tudo o que queremos nestes momentos de padecimento é esquecer essa voz inoportuna, é evitar esse campo gravitacional poderoso que drena nossa energia vital e atenção. Que a saúde possa ser pensada, pois, como "a vida no silêncio dos órgãos", a paz da não solicitação, parece bastante razoável. Eventualmente, e isso é de suma importância, esse silêncio e esquecimento de si são entendidos não apenas como sinais de saúde, mas como a saúde em si. Que um conjunto de sintomas possa ser tratado como doença ou que sua ausência seja concebido como saúde apresenta consequências que não devem ser negligenciadas.

Isso é especialmente verdadeiro no campo da saúde mental contemporânea. Existe hoje, nesse terreno, uma concepção do psiquismo e uma terapêutica a ela associada que partem precisamente desta redução, ou seja, da sanidade equiparada ao silêncio do corpo ou da mente e da administração de sintomas como fulcro da prática médica. Se, por exemplo, para a neurociência contemporânea, a “mente é o que o cérebro faz” (Rose, 2013, p. 3) e se processos mentais, como o reconhecimento de si mesmo (a existência de um self, para usarmos um termo consagrado), nada mais são que uma estratégia que nosso cérebro constituiu ao longo de nossa evolução biológica, é natural supormos que, focando na realidade biológica deste cérebro, teríamos a possibilidade de tratar o sofrimento a partir de suas manifestações sintomatológicas. Por que haveríamos de nos deter e perder nosso precioso tempo em algo tão intangível como a significação que realizamos de nosso sofrimento num âmbito mais subjetivo?

De um modo geral, a medicina nunca pensou suficientemente a saúde, mas sim a doença, lembra-nos ainda Canguilhem. Como se sabe, essa constatação teve uma influência significativa na obra de Michel Foucault, em suas teses sobre a história da loucura, e em diversos autores que se beneficiaram dessa influência dupla. Vejamos, por exemplo, o que Nikolas Rose tem a nos dizer sobre a relação entre as ciências psicológicas e a criação de regimes do self no ocidente: “Colocar o problema dessa maneira é ressaltar a primazia do patológico em relação ao normal na genealogia da subjetivação – de maneira geral, nossos vocabulários e técnicas de pessoa não emergiram dentro do campo da reflexão sobre o indivíduo normal, mas, pelo contrário, a própria noção de normalidade emergiu a partir da preocupação com tipos de conduta, pensamento e expressão considerados problemáticos ou perigosos” (2011, p. 44). Tradicionalmente, à medicina cabe empenhar-se em garantir a permanência nesse estado de quietude, ou seu retorno a ele, ou ainda diminuir os danos provenientes da inquietude. Seu campo, portanto, seria propriamente o patológico.

Desconsiderando por um momento a dificuldade de definir o que seja saúde mental, e tendo a Psicologia de base cognitivista e comportamental e a Psiquiatria de orientação biológica em consideração, seria possível ainda perguntar: onde os sintomas cessam – ansiedade, tristeza mórbida, lutos persistentes – a sanidade estaria reestabelecida? De acordo com ambas as orientações, a superação desses sintomas estaria associada a uma mudança de padrões sinápticos cristalizados, responsáveis pela sensação mal-estar, de sofrimento. Sendo esses padrões biologicamente estabelecidos, porém plásticos, é possível pensar que um investimento em sua reconfiguração química seja possível sem que investimentos psicológicos tradicionais, que focam a realidade histórica e cultural do indivíduo, entrem propriamente em questão. Muitos de nós, todavia, hesitaria em estabelecer uma relação tão direta entre configuração químico-neurológica e sofrimento, entre sintomas e patologia, ou entre ausência desses e o gozo de saúde. Talvez estejamos arraigados excessivamente à ilusão da existência de consciências subjetivas e da necessidade de entender processos de significação cultural mais amplos para aceitar a revisão não apenas epistemológica que parece advir das neurociências, mas os silêncios que decorrem de tal revisão.

Quaisquer que sejam nossas suspeitas acerca de uma prática médica que se atém à administração de sintomas, o avanço da base científica que a torna possível tem constituído a resposta a que tem chegado um número cada vez maior de pessoas. A medicalização do sofrimento, a administração de seus sintomas, a reconfiguração de comportamentos tidos como desviantes ou que impliquem em sofrimento, constituem um fenômeno biopolítico, biossocial de importância central num contexto de aceleração da vida e das tecnologias - ou da "aceleração da aceleração", como entende Hermínio Martins. Neste cenário, silenciar sintomas desagradáveis é muitas vezes condição para que “funcionemos” adequadamente, quer como consumidores vorazes de objetos perecíveis, quer como produtores descartáveis desses mesmos objetos, ou ainda como administradores patéticos da explosão informacional. As estatísticas de agravamento daquilo que são consideradas doenças mentais, de qualquer modo, são expressivas e indicam um fenômeno global. E isso pode, tanto indicar a voracidade com a qual a indústria da saúde tem avançado sobre os ruídos produzidos pela dinâmica de reprodução do capital na contemporaneidade – tornando patológicas e medicalizáveis reações ao próprio “empobrecimento da experiência” (categoria que Kehl, 2010 toma emprestado de Benjamin) ao qual essa dinâmica está associada  , como pode constituir um sinal de que esses ruídos significam de fato o adoecimento de parcelas significativas da população. Vejamos, como ilustração, estatísticas estadunidenses neste campo:
“em 1955, havia 355.000 pessoas em hospitais com um diagnóstico psiquiátrico nos Estados Unidos; em 1987, 1,25 milhão de pessoas no país recebia aposentadoria por invalidez por causa de alguma doença mental; em 2007, eram 4 milhões”[1].

O que quer que ela signifique, a saúde seria proposta como verdade do corpo desde o final do século XVIII. Adoecer significaria sair deste campo de verdade. E isso tem implicações diretas para pensar a saúde mental, como os leitores de Michel Foucault bem o sabem. A ideia de um corpo são, de acordo com Canguilhem (2005), guardaria em si as duas acepções que a etimologia da palavra latina sanus parece indicar, ou seja, “intacto ou bem preservado” e “infalível e seguro”. Contraditoriamente, sob as condições e exigências dromológicas do capitalismo contemporâneo, podemos perceber-nos atletas do dia-a-dia, isto é, bem preservados, sem estarmos tranquilos, “seguros”, com respeito à nossa saúde. Há aqui evidências de uma mudança na epistemologia médica para qual Canguilhem não pôde estar atento. Em seu livro Drugs for Life, Joseph Dumit nos lembra que, integrada à dinâmica da indústria farmacêutica, a medicina contemporânea já não pretende ter uma ação episódica de recondução do doente à saúde, mas de tratar como doentes potenciais quem quer que tenha alguma predisposição biológica ao adoecimento, o que significa 100% dos seres vivos. Mais ainda, segundo Dumit, à indústria farmacêutica não interessa curar, mas tratar indefinidamente doenças reais ou virtuais. Propensões ao desenvolvimento de diabetes ou doenças coronarianas são um filão comercial na medida em que doentes potenciais ou efetivos possam ser tratados cronicamente com Insulina ou Estatinas. Isso também vale, evidentemente, para pacientes psiquiátricos (neuróticos ou psicóticos) e sua demanda crônica por medicamentos como Clonazepam, Fluoxetina, hipnóticos e antidepressivos em geral. Afirmemos, então, com todas as letras: a verdade do corpo aqui é a doença; e a saúde, apenas um ideal normativo.

Ademais, é necessário perguntar: tendo em vista não apenas os interesses da indústria da saúde, mas a própria tendência à intensificação, aceleração e extenuação da vida sob o regime biopolítico em que vivemos, o que significaria “uma posse máxima de meios físicos” (Canguilhem) em um ambiente onde o máximo já não é suficiente? Diríamos que esse processo implica inevitavelmente na penetração acelerada de aparatos biotécnicos – como os psicofármacos de última geração – ­na administração da vida biológica. O fim último desta intermediação técnica é exercer um controle dos ruídos existenciais, reflexivos que impliquem num retardo qualquer com respeito à intensificação dos ritmos de reprodução do capital. Na sociedade da tagarelice informacional, existe a necessidade desse silenciamento.

Neste ponto, talvez devêssemos repetir a indagação que o psicanalista de orientação existencialista Pierre Fédida propôs há algum tempo: diante de condições desumanas de existência, da necessidade de responder imediata e satisfatoriamente, em tempo real, às demandas de um capitalismo que opera a partir da lógica 24/7 (Crary, 2014), ou seja, sem repouso, o deprimido mostra em sua desaceleração, em seu questionamento radical do sentido das coisas, um sinal de saúde ou um sintoma patológico (2002, 2003)? Da perspectiva mais ampla da sociologia, talvez devêssemos enfatizar a pertinência dessa forma de questionar nossos envolvimentos sociotécnicos que encontramos nos textos de Fédida. Para ele, o deprimido, em seu minimalismo existencial, opõe-se à aceleração da vida e ao empobrecimento da experiência que daí decorre. Porém o indivíduo, evidentemente, sofre para além da racionalização sociológica, ou psicanalítica, e reivindica alívios imediatos. O que quer que pensemos sobre soluções ou paliativos farmoquímicos, a confluência de sentidos entre saúde e segurança, saúde e infalibilidade, saúde e poder, coloca-nos desafios tremendos num contexto de envolvimentos técnicos e sociais cada dia mais intensos. Diante desse cenário, parece não espantar que em pesquisa realizada com profissionais da saúde mental nas cidades de Lisboa, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, entre os anos de 2014 e 2015, ao perguntarmos sobre um critério para aferir a saúde mental dos indivíduos, alguns desses profissionais teriam respondido categoricamente: “se esses indivíduos funcionam, estão saudáveis”. A psicologia de Fedida parece, em oposição a essa tese de orientação evolucionista, por outro lado, identificar em certos comportamentos disfuncionais um sinal profundo de saúde que não deve ser negligenciado. (E a evolução, bem sabemos, também se beneficia dos erros....)

Funcionar, neste sentido, deve ser entendido como mais uma dimensão daquele silenciamento ao qual a sanidade parece de há muito associada, ou seja, a uma dimensão social desta aparente harmonização e deste esquecimento. Uma ilustração de uma prática da saúde mental baseada no sintoma e no acesso direto à base neuroquímica do sofrimento é oferecido por profissionais da saúde mental que tratam a angústia e a tensão gerados por problemas sociais, econômicos, como objeto de intervenção psicofarmacológica[2]. Esse é o caso que nos apresenta Isabela Cribari, no documentário De profundis (2014), acerca de como problemas sociais e econômicos negligenciados no processo de transposição da pequena cidade de Itacuruba   das margens do rio São Francisco para uma região inóspita  implicaram no adoecimento de uma população. Essa intervenção pública gerou uma população de deprimidos e consumidores de psicofármacos. A distância que se existe entre a “velha” e a “nova” Itacuburuba, segundo os depoimentos de seus cidadãos e cidadãs, é a que se coloca entre o território e o abismo, entre a vida significativa e o seguir vivendo. A vida social reduzida à nudez biológica, parar usarmos a expressão de Giorgio Agamben, necessita ser constantemente medicalizada. Não admira o alto índice de uso de medicamentos psicofarmacológicos e de tentativas de suicídios naquela cidade.

O profissional que atua no campo da saúde mental  seja ele um psiquiatra ou um clínico geral – é muitas vezes confrontado com a demanda para aliviar quadros de sofrimento resultantes de problemas não necessariamente, ou em primeira instância, psicológicos. Um paciente que requer de seu médico hipnóticos para poder dormir, diante da impossibilidade de fazê-lo por conta de vizinhos barulhentos e antissociais, ruídos resultantes do tráfego urbano, ou algo desta natureza, pode valer-se de uma solução química para conviver melhor com seu problema, mas este não é necessariamente um problema médico nem é de se esperar que ele seja resolvido por esse meio. Funcionar, neste sentido, e a partir da racionalização que aqui se impõe, significaria tratar sintomas diante da impotência de lidar politicamente com problemas econômicos e culturais mais amplos. O fármaco, neste caso, constitui uma tecnologia de esquecimento de si, de silenciamento e de esperança de adequação, de funcionamento.




[2] “In America, medication is becoming almost as much a staple of childhood as Disney and McDonald’s. Kids pack their pills for school or college along with their lunch money. Some are taking drugs for depression and anxiety, others for attention deficit hyperactivity disorder (ADHD). The right drugs at the right time can save young people from profound distress and enable them to concentrate in class. But some adolescents, critics say, are given medication to mask the ordinary emotional turmoil of growing up; there is a risk that they will never learn to live without it”. Fonte: http://www.theguardian.com/society/2015/nov/21/children-who-grow-up-on-prescription-drugs-us. Acessado em 27/04/2016.