Jonatas Ferreira
De acordo com Foucault, a
realidade do capitalismo é a mobilização constante da vida biológica, o
estímulo diuturno para que falemos, confessemos, ou seja, o investimento constante na
construção de interioridades que já nasçam ligadas às dinâmicas econômicas, aos
dispositivos de poder disponíveis. Para ele, concebido como tecnologia da
subjetivação, o biopoder não faz calar. Pelo contrário, solicita a confissão, o
tagarelar constante, o que possibilita a administração dos corpos e das
populações. Esse confessar constante diante de psicólogos, educadores,
assistentes sociais seria parte do próprio dispositivo mediante os quais se produz
interioridade e subjetividade. Além disso, o biopoder seria uma
tecnologia de proliferação da vida biológica e, em sua positividade, não possui
uma dinâmica marcadamente tanatológica. Giorgio Agamben, a partir do Homo Saccer, como sabemos, ganhou grande
atenção nas ciências sociais por contestar este último pressuposto das
formulações foucaultianas sobre dinâmicas políticas contemporâneas. Para ele,
devemos matizar a ideia de uma positividade das dinâmicas biopolíticas, ou
seja, que elas sejam marcadas pela mobilização e proliferação da vida, e perceber
também uma dimensão tanatológica que lhe é intrínseca. O campo de concentração,
segundo Agamben, é um exemplo limite, não um acidente, do quão necessário é considerarmos essa dimensão.
Em linha com as ponderações
agambenianas, acredito que devemos também afirmar que a administração política
e econômica da vida biológica requer um tipo particular de silenciamento. Se de
fato a comunicação, a tagarelice da sociedade em rede, deve ser compreendida
como quintessência de nossos envolvimentos culturais e técnicos, parece que
essa perspectiva implica o amesquinhamento de possibilidades linguísticas,
existenciais mais amplas. Ali, como nos exemplos que viemos arrolando, não se
trata mais de um poder sobre a vida que teria implicações necessariamente
subjetivadoras, pois a própria subjetividade entendida como condição mais
econômica e eficiente de exercer controle político – mediante um controle de si
- é posta em um tipo curioso de suspensão. O recurso constante que as sociedades
liberais fazem à responsabilidade subjetiva com relação ao próprio corpo, à
própria saúde, por exemplo, parece se chocar com o sentimento de estupor, de
impotência que os indivíduos vivenciam ao se confrontarem com os poderosos
vetores econômicos e políticos globais. Byung-Chul
Han captou bem esse clima cultural ao afirmar que a imunologia se esgotou como
campo ao qual recorremos para coletar metáforas que nos ajudem a pensar nos
males contra os quais precisamos investir em uma coerência interna - em oposição a ameaças externas, 'virais', 'bacteriológicas'.
No mundo descortinado por Foucault, a ideia de subjetividade podia ser pensada nestes termos: como
busca de manutenção de uma verdade interna contra as adversidades da
alteridade. Porém,
“De um ponto de vista patológico não é o princípio bacteriano nem o
viral que caracterizam a entrada no século XXI, mas, sim, o princípio neuronal.
Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, o transtorno por défice
de atenção e hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações de personalidade –
transtorno de personalidade borderline (TPB) ou síndroma de burnout
(SB) – descrevem o panorama patológico do século XXI” (Han, 2014, p. 9)[3].
No campo da prática médica, a
obsolescência da subjetividade parece também marcante. A anamnese de um
paciente que recorre à Psiquiatria contemporânea, para ser catalogado como
portador de um transtorno bipolar, de uma fobia ou de uma síndrome de pânico,
passa por uma redução comunicacional do seu sofrimento a um conjunto de
sintomas que podem ser mapeados com clareza e de forma não ambígua. Essa não
ambiguidade, simplificação, a oferta de diagnósticos supostamente objetivos,
parece constituir sua força política. Numa sociedade da dissolução e da "aceleração
da aceleração", muitas vezes ser enquadrado, catalogado é um conforto, uma
âncora contra o vendaval dessa história intensa. Nesse caso, os processos de
significação do sofrimento parecem ser ofertados de fora para dentro, e não o
resultado de um investimento em si, como comumente ocorre quando analisamos
tecnologias disciplinares, e que Foucault julga ser o caso das psicologias em sua totalidade.
Avancemos sobre o sentido desse
processo. Ao se debruçar nos pressupostos epistemológicos da biologia moderna,
Canguilhem (1977), mais uma vez nos oferece subsídios importantes. Permitam-me o que agora parecerá um pequenos excurso. Para Canguilhem, a ideia da
vida como máquina que se autorregula é um divisor de águas na história da biologia. O modelo de compreensão
da vida pelos biólogos, a partir do século XIX, passa por conceber o organismo
vivo como “usina química inteiramente automática”, ou seja, entendê-lo como
mecanismo de eficiência virtualmente perfeita. A máquina, por seu turno, passa
a ter no organismo autorregulado um ideal de funcionamento. O que
determina tal eficiência e perfeição? “Ajuntemos enfim que a superioridade
dessas funções orgânicas sobre as funções tecnológicas análogas é reconhecida,
senão em sua infalibilidade, ao menos em sua confiabilidade, e na existência de
mecanismos de detecção e de retificação disso que os bioquímicos nomeiam os
erros e as falhas da reprodução” (Canguilhem, 1977, p. 123; os itálicos aqui são meus).
Interessa a Canguilhem m entender o sentido da existência da ideia de normalidade no corpo
teórico da biologia. Parece clara a importância da regulação produzida pela
ideia de normalidade biológica, que é transferida da biologia para a medicina
e, contemporaneamente, para a Psiquiatria e para a Psicologia de base
cognitiva. Mas a metáfora que garante a inteligibilidade do organismo vivo –
entendido como máquina confiável, capaz de identificar e retificar
bioquimicamente suas falhas – interessa-nos não menos. Trata-se de uma metáfora que antecipa em alguma medida a ideia de organismo cibernético, de um organismo
que se debate contra a tendência a desorganização da matéria, e que para tal
procura identifica os seus erros, falhas de adaptação em um ambiente dado. Essa
coincidência epistemológica tem consequências cruciais, pois permitirá pensar
a própria integração e adaptação do organismo vivo aos circuitos técnicos
informacionais, com suas exigências por celeridade, intensificação etc. Não seria precisamente essa a lógica que preside ao dispositivo psicofarmacológico? Afinal,
não se trata de garantir o funcionamento dos indivíduos num contexto de
aceleração constante? Que a Psiquiatria não possa identificar a base
fisiológica que determina as patologias mentais com a segurança que o podem fazer
outros campos da medicina, parece não ser tão importante quanto a ideia de que nosso psiquismo é algo como uma
usina química capaz de se autorregular e corrigir os seus próprios erros de
expressão. Quando essa autorregulação não ocorre, caberia à intervenção médica
agir de modo a reparar, compensar a falha orgânica. O organicismo dessa
concepção é, portanto, extremamente revelador em seu conservadorismo, pois para
ela o meio ambiente social é algo dado, algo ao qual teremos necessariamente de
nos adaptar.
Em “La formation du concept de régulation biologique aux XVIIIe et XIXe siècles”
(1977), Canguilhem nos apresenta outras ideias importantes. De acordo com ele,
o diálogo, a mútua influência entre as biociências, por um lado, e a física, a
cosmologia, por outro, tem longa data. “O termo [regulação] foi introduzido na psicologia por via de metáforas, em
uma época em que as funções que ela designa estavam bem distantes de ter
suscitado os estudos comparativos de ondem saíram uma teoria geral das
regulações e da homeostase orgânica, apta por seu turno a fornecer metáforas
inspiradoras de racionalização rigorosas, de onde deveria nascer um dia a
cibernética” (p. 82). Aqui valeria uma pequena nota sobre a lógica que a
cibernética, a teoria da informação, a dinâmica técnica que elas aportam
à sociedade capitalista como um todo, e a produção de um dispositivo
biotecnológico e biopolítico em seu seio. Ouçamos Simondon a esse respeito:
Enfim,
no nível dos conjuntos técnicos do século XX, o energetismo termodinâmico é
substituído pela teoria da informação, cujo conteúdo é eminentemente regulador
e estabilizador: o desenvolvimento das técnicas aparece como uma garantia de
estabilidade. A máquina, como elemento do conjunto técnico, torna-se aquilo que
aumenta a quantidade de informação, o que faz crescer a neguentropia, o que se
se opõe à degradação da energia: a máquina, obra de organização, de informação,
é, como a vida e com a vida, o que se opõe à desordem, ao nivelamento de todas
as coisas que tendem a privar o universo do poder de mudança (Simondon, 2012,
p. 17-18).[4]
A noção de regulação se introduz
nas ciências mecânicas e nas ciências da vida mediante uma discussão religiosa
acerca de como Deus mantém a ordem em sua criação. Leibniz e Newton apresentam
a esse respeito posições polares. O primeiro propõe a existência de um Deus Regulador
que atua ao longo do tempo, contornando problemas, reconduzindo o mundo criado
recorrentemente para a ordem. O princípio regulador atua, por assim dizer, de
modo histórico posto que age sobre a contingência. Newton, por seu turno,
acredita num princípio de regulação intrínseco à criação que desobrigaria Deus
de uma manutenção histórica do existente. Importante dizer que a medicina dos
séculos XVII e XVIII apropriou a mecânica newtoniana a partir deste pressuposto
mais geral do pensamento lebniziano - na Teodicéia,
Leibniz claramente associa essa discussão à própria possibilidade de entender o
sofrimento no mundo, ou seja, o padecimento é proposto como mal menor de um
Deus sempre previdente e no controle das coisas. Importante que essa discussão
mobilize sempre uma imagem bastante política, nomeadamente, a do monarca às voltas com a implementação infinita de sua potência. É neste sentido que se impõe a história como questão de um poder que regula antecipadamente, ou seja, que estabelece na criação estratégias intrínsecas de autocorreção.
Retornemos. Assim, é
possível repetir aqui Canguilhem: “Na medicina, a experiência vivida da doença
pelos doentes e a cura parecem sugerir por si própria um poder orgânico de restituição
e reintegração” (p. 88). O princípio de regulação e cura é interno ao
organismo. Uma das consequências desse tipo de perspectiva científica é
fornecida por Joanna Bourke, em Story of
pain. Mesmo quando alguns primeiros anestéticos já estavam disponíveis no
século XIX, alguns médicos preferiam confiar na sabedoria da regulação natural,
preferiam não interferir quimicamente para aliviar o padecimento (Bourke, p.
275-277). Também é curioso o fato de Canguilhem reservar na história do
conceito de regulação nas ciências da vida um lugar especial a Auguste Comte,
precisamente por, num humor lamackiano, este propor que a vida e o mundo social
são regulados pelo meio externo, caso contrário, perecem. A passividade do
interno com respeito ao externo é um legado positivista digno de nota.
Sobretudo dado o tema que analisamos neste ensaio. Vale a pena citar, neste
sentido, Comte mesmo que, aqui, de segunda mão: “Existe loucura quando «o fora
não pode regular o dentro» Syst. Pol. Pos., III, 20(2)” (p. 94).
A consequência mais profunda que a
aproximação entre ciências da vida e cibernética parece implicar está contida
não na ideia de um corpo vivo que deve ser levado à ordem, à normalidade, à
homeostase pela intervenção médica, mas na compreensão de que este corpo está
em constante risco de adoecimento e que portanto deve ser cronicamente tratado
para que tal equilíbrio seja viável. Afinal a cibernética é a ciência do
timoneiro, do controle como uma tarefa interminável. O investimento que a
indústria farmacêutica faz em remédios que devem ser cronicamente tomados,
mesmo que haja apenas o risco de o paciente desenvolver uma doença determinada,
para além do sentido financeiro, que faz essa indústria se desinteressar por
produzir medicamentos que curem de fato, como vacinas, tem esse sentido
cultural mais amplo. A esse respeito convém dar atenção às palavras de Joseph
Dumit: “Concluí que o crescimento contínuo e subjacente em drogas, doenças,
custos, e insegurança é um entendimento relativamente novo de nós mesmos como
sendo inerentemente doentes. A saúde passou a ser definida como a redução do
risco” (2012, p. 12). A doença mental, seguindo essa lógica, deve ser entendida
amplamente como o risco de não funcionar.
Mas a ideia de risco, que Dumit
apropria dos trabalhos de Ulrich Beck e de Elizabeth Beck-Gernsheim, aponta
para um componente temporal que leva necessariamente à ansiedade, ao temor com
respeito ao que está por vir, como traço cultural da tecno-sociabilidade.
Trata-se de um diuturno ocupar-se com o futuro. A vida propriamente dita, para
nós, indivíduos imersos no capitalismo hiperacelerado, num mundo da
perecibilidade e da vertigem, portanto, ainda haverá de chegar. Por isso
estamos sempre envolvidos em aperfeiçoarmos nossos corpos e humores.
Aperfeiçoamento,
como suscetibilidade, é orientado para o futuro. Virtualmente qualquer
capacidade do corpo e alma humanos – força, resistência, atenção, inteligência
e a própria duração da vida – parece potencialmente aberta à melhoria e
intervenção tecnológica. Claro, humanos, em quase todos os lugares, tentaram
melhorar suas identidades corpóreas […]. O que é novo, então, não é a vontade
de melhoria, ou a melhoria em si. Em parte, eu suspeito, o sentimento de
novidade e inquietação surge de um sentido que nós estamos mudando, nas
palavras de Adele Clark e seus colegas, «da normalização para a personalização
[customization]»
(Rose, 2007, p. 20)”
Funcionar, em todo caso, é um critério decisivo da
necessidade de intervenção terapêutica. Todos sabemos que algumas profissões
demandam hoje mais investimento do que a maioria dos indivíduos poderia
suportar, sem o auxílio de muletas psicofarmacológicas. A ideia de
funcionalidade, é preciso que se diga, apresenta essa significação dupla: funcionar
é tanto a necessidade de um sistema em aceleração, como a necessidade do
indivíduo capturado em uma dinâmica empobrecedora e veloz. Como critério
científico que orienta não apenas as classificações de sofrimentos psíquicos,
mas a medicalização desses mesmos sofrimentos, a ambiguidade que a palavra
funcionalidade alberga deve ficar na penumbra. O humanismo se escandaliza
diante dos cenários abertos pela naturalização deste esquecimento. Julia
Kristeva parece traduzir este sentimento quando afirma:
“Dois grandes
confrontos, em minha opinião, aguardam a psicanálise de amanhã quanto ao
problema de organização e de permanência do psiquismo. O primeiro é sua
competição com as neurociências: “o comprimido ou a palavra”, sendo esta desde
já a questão do ser ou do não ser. O segundo é a prova à qual a psicanálise é
submetida pelo desejo de não saber, que se junta à aparente facilidade
oferecida pela farmacologia, e que caracteriza o narcisismo negativo do homem
moderno” (Kristeva, 1993, p. 39-40).
Bibliografia
CANGUILHEM, Georges. 2005. Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro, Editora Forense
Universitária.
-------------------------. 1977. Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie.
Paris, Librarie Philosophique J. Vrin.
-------------------------. 2006. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Editora Forense
Universitária.
Crary,
Jonathan. 2014. 24/17. Le capitalism à l’assault du sommeil. Paris,
Zones.
Fédida, Pierre. 2002. Dos Benefícios da Depressão. Elogio da psicoterapia.
São Paulo, Editor Escuta.
---------------------.
2003. Depressão. São Paulo, Editor Escuta.
Han, Byng-Chul. 2014. A
sociedade do cansaço. Lisboa, Relógio D’Água.
KEHL, Maria Rita. 2010.
O tempo e o cão. São Paulo, Boitempo.
KRISTEVA, Julia. 1993. As
novas doenças da alma. Rio de Janeiro, Editra Rocco LTDA.
ROSE, Nikolas; M. Abi-Rached.
2013. Neuro. The new brain sciences
and the management of the mind. Princeton and Oxford, Princeton University
Press.
-------------------. 2007. The Politics of Life Itself.
Biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton and
Oxford. Princeton University Press.
[1] Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/05/ciencia/1454701470_718224.html?id_externo_rsoc=fb_CM; acessado em 27/04/2016.
[2] “In America, medication
is becoming almost as much a staple of childhood as Disney and McDonald’s. Kids
pack their pills for school or college along with their lunch money. Some are
taking drugs for depression and anxiety, others for attention deficit
hyperactivity disorder (ADHD). The right drugs at the right time can save young
people from profound distress and enable them to concentrate in class. But some
adolescents, critics say, are given medication to mask the ordinary emotional turmoil
of growing up; there is a risk that they will never learn to live without it”. Fonte: http://www.theguardian.com/society/2015/nov/21/children-who-grow-up-on-prescription-drugs-us.
Acessado em 27/04/2016.
[3] O que caracteriza esse novo
panorama? “Não estamos já perante infeções, mas, sim, enfartes, originados não
pela negatividade do outro imunológico, mas, sim, por um excesso de
positividade” (Ibid.). Isso não significa que a metáfora da coerência
imunológica não tenha adeptos ou apelo, mas que uma nova dinâmica cultural
parece se impor. O tipo de sofrimento de que fala Han, pois, é caracterizado
por um excesso de positividade, algo de que já nos falava Jean Baudrillard em
textos como A transparência do mal ou Cultura e Simulacro.
[4]
Aqui talvez valesse a pena observar que a ideia de cibernética que orienta a
contribuição teórica de Simondon opõe-se aos teóricos da teoria da informação
em dois aspectos: ele considera a ideia de informação de que partem aqueles
teóricos como extremamente redutora, a qual resulta na produção do autômato
como ideia técnica reguladora, e ao fato de que, para ele, a abertura do
aparato técnico cibernético, sua capacidade de emular o próprio ser vivo em sua
indeterminação deveria ser tomado como ideal da cibernética.