Jonatas Ferreira
Gostaria de agradecer a Adrian
Scribano, a Diego Benegas, ao Instituto Gino Germani e à Fundação Barceló pelo
convite e oportunidade de estar nestas “Terceras Jornadas Internacionales de
Emergência y Catástrofe: Cuerpos Expuestos”. É um prazer revisitar Buenos Aires
e apresentar alguns resultados gerais de uma pesquisa que venho fazendo há quatro
anos sobre o tema do sofrimento na contemporaneidade e sobre algumas estratégias
técnicas para lidar com ele. É um privilégio discutir essas ideias em um ambiente acadêmico que respeito e pelo qual tenho apreço. Agradeço sempre ao CNPq pelo financiamento que tem
dado a essa pesquisa.
No ensaio “Saúde: conceito vulgar
e questão filosófica”, Georges Canguilhem propõe a seguinte definição: “A saúde
é a vida no silêncio dos órgãos” (2005, p. 35). A frase, ele nos informa, é de
um “célebre cirurgião” e professor da Faculdade de Medicina de Estrasburgo.
Quem quer que esteja acometido por algum sintoma patológico - febre, dor de
cabeça, apneia, taquicardia - entende e deseja esse silêncio, esse retorno a
uma atitude natural com respeito ao funcionamento de nosso corpo, em outras
palavras, anseia por esse esquecimento de si. O sofrimento, seja ele de ordem
somática ou psicológica, grita-nos, solicita-nos, dirige nossa atenção para uma
parte de nosso corpo, e tudo o que queremos nestes momentos de padecimento é
esquecer essa voz inoportuna, é evitar esse campo gravitacional poderoso que
drena nossa energia vital e atenção. Que a saúde possa ser pensada, pois, como
"a vida no silêncio dos órgãos", a paz da não solicitação, parece bastante
razoável. Eventualmente, e isso é de suma importância, esse silêncio e
esquecimento de si são entendidos não apenas como sinais de saúde, mas como a
saúde em si. Que um conjunto de sintomas possa ser tratado como doença ou que
sua ausência seja concebido como saúde apresenta consequências que não devem
ser negligenciadas.
Isso é especialmente verdadeiro no
campo da saúde mental contemporânea. Existe hoje, nesse terreno, uma concepção
do psiquismo e uma terapêutica a ela associada que partem precisamente desta
redução, ou seja, da sanidade equiparada ao silêncio do corpo ou da mente e da
administração de sintomas como fulcro da prática médica. Se, por exemplo, para
a neurociência contemporânea, a “mente é o que o cérebro faz” (Rose, 2013, p.
3) e se processos mentais, como o reconhecimento de si mesmo (a existência de um
self, para usarmos um termo consagrado), nada mais são que uma estratégia que nosso
cérebro constituiu ao longo de nossa evolução biológica, é natural supormos que, focando na realidade biológica deste cérebro, teríamos a possibilidade de tratar
o sofrimento a partir de suas manifestações sintomatológicas. Por que
haveríamos de nos deter e perder nosso precioso tempo em algo tão intangível
como a significação que realizamos de nosso sofrimento num âmbito mais
subjetivo?
De um modo geral, a medicina nunca
pensou suficientemente a saúde, mas sim a doença, lembra-nos ainda Canguilhem. Como
se sabe, essa constatação teve uma influência significativa na obra de Michel
Foucault, em suas teses sobre a história da loucura, e em diversos autores que
se beneficiaram dessa influência dupla. Vejamos, por exemplo, o que Nikolas
Rose tem a nos dizer sobre a relação entre as ciências psicológicas e a criação
de regimes do self no ocidente: “Colocar o problema dessa maneira é ressaltar a
primazia do patológico em relação ao normal na genealogia da subjetivação – de
maneira geral, nossos vocabulários e técnicas de pessoa não emergiram dentro do
campo da reflexão sobre o indivíduo normal, mas, pelo contrário, a própria
noção de normalidade emergiu a partir da preocupação com tipos de conduta,
pensamento e expressão considerados problemáticos ou perigosos” (2011, p. 44). Tradicionalmente, à medicina cabe empenhar-se em garantir a permanência nesse estado
de quietude, ou seu retorno a ele, ou ainda diminuir os danos provenientes da inquietude. Seu
campo, portanto, seria propriamente o patológico.
Desconsiderando por um momento a
dificuldade de definir o que seja saúde mental, e tendo a Psicologia de base
cognitivista e comportamental e a Psiquiatria de orientação biológica em consideração,
seria possível ainda perguntar: onde os sintomas cessam – ansiedade, tristeza
mórbida, lutos persistentes – a sanidade estaria reestabelecida? De acordo com
ambas as orientações, a superação desses sintomas estaria associada a uma
mudança de padrões sinápticos cristalizados, responsáveis pela sensação
mal-estar, de sofrimento. Sendo esses padrões biologicamente estabelecidos, porém
plásticos, é possível pensar que um investimento em sua reconfiguração química seja possível sem que investimentos psicológicos tradicionais, que focam
a realidade histórica e cultural do indivíduo, entrem propriamente em questão. Muitos
de nós, todavia, hesitaria em estabelecer uma relação tão direta entre
configuração químico-neurológica e sofrimento, entre sintomas e patologia, ou
entre ausência desses e o gozo de saúde. Talvez estejamos arraigados excessivamente
à ilusão da existência de consciências subjetivas e da necessidade de entender processos
de significação cultural mais amplos para aceitar a revisão não apenas
epistemológica que parece advir das neurociências, mas os silêncios que
decorrem de tal revisão.
Quaisquer que sejam nossas
suspeitas acerca de uma prática médica que se atém à administração de sintomas,
o avanço da base científica que a torna possível tem constituído a resposta a
que tem chegado um número cada vez maior de pessoas. A medicalização do
sofrimento, a administração de seus sintomas, a reconfiguração de
comportamentos tidos como desviantes ou que impliquem em sofrimento, constituem
um fenômeno biopolítico, biossocial de importância central num contexto de
aceleração da vida e das tecnologias - ou da "aceleração da aceleração", como entende Hermínio Martins. Neste cenário, silenciar sintomas
desagradáveis é muitas vezes condição para que “funcionemos” adequadamente,
quer como consumidores vorazes de objetos perecíveis, quer como produtores descartáveis
desses mesmos objetos, ou ainda como administradores patéticos da explosão informacional. As estatísticas de agravamento daquilo que são
consideradas doenças mentais, de qualquer modo, são expressivas e indicam um
fenômeno global. E isso pode, tanto indicar a voracidade com a qual a indústria
da saúde tem avançado sobre os ruídos produzidos pela dinâmica de reprodução do
capital na contemporaneidade – tornando patológicas e medicalizáveis reações ao
próprio “empobrecimento da experiência” (categoria que Kehl, 2010 toma
emprestado de Benjamin) ao qual essa dinâmica está associada – , como pode constituir um sinal de
que esses ruídos significam de fato o adoecimento de parcelas significativas da
população. Vejamos, como ilustração, estatísticas estadunidenses neste campo:
“em 1955, havia 355.000
pessoas em hospitais com um diagnóstico psiquiátrico nos Estados Unidos; em
1987, 1,25 milhão de pessoas no país recebia aposentadoria por invalidez por
causa de alguma doença mental; em 2007, eram 4 milhões”[1].
O que quer que ela signifique, a
saúde seria proposta como verdade do corpo desde o final do século XVIII. Adoecer
significaria sair deste campo de verdade. E isso tem implicações diretas para
pensar a saúde mental, como os leitores de Michel Foucault bem o sabem. A ideia
de um corpo são, de acordo com Canguilhem (2005), guardaria em si as duas
acepções que a etimologia da palavra latina sanus
parece indicar, ou seja, “intacto ou bem preservado” e “infalível e seguro”. Contraditoriamente,
sob as condições e exigências dromológicas do capitalismo contemporâneo,
podemos perceber-nos atletas do dia-a-dia, isto é, bem preservados, sem
estarmos tranquilos, “seguros”, com respeito à nossa saúde. Há aqui evidências
de uma mudança na epistemologia médica para qual Canguilhem não pôde estar
atento. Em seu livro Drugs for Life,
Joseph Dumit nos lembra que, integrada à dinâmica da indústria farmacêutica, a medicina
contemporânea já não pretende ter uma ação episódica de recondução do doente à
saúde, mas de tratar como doentes potenciais quem quer que tenha alguma
predisposição biológica ao adoecimento, o que significa 100% dos seres vivos. Mais ainda, segundo Dumit, à indústria farmacêutica não interessa curar, mas tratar indefinidamente doenças
reais ou virtuais. Propensões ao desenvolvimento de diabetes ou doenças
coronarianas são um filão comercial na medida em que doentes potenciais ou
efetivos possam ser tratados cronicamente com Insulina ou Estatinas. Isso
também vale, evidentemente, para pacientes psiquiátricos (neuróticos ou
psicóticos) e sua demanda crônica por medicamentos como Clonazepam, Fluoxetina,
hipnóticos e antidepressivos em geral. Afirmemos, então, com todas as letras: a verdade do corpo aqui é a doença; e a
saúde, apenas um ideal normativo.
Ademais, é necessário perguntar: tendo
em vista não apenas os interesses da indústria da saúde, mas a própria
tendência à intensificação, aceleração e extenuação da vida sob o regime
biopolítico em que vivemos, o que significaria “uma posse máxima de meios
físicos” (Canguilhem) em um ambiente onde o máximo já não é suficiente? Diríamos
que esse processo implica inevitavelmente na penetração acelerada de aparatos biotécnicos
– como os psicofármacos de última geração – na administração da vida
biológica. O fim último desta intermediação técnica é exercer um controle dos
ruídos existenciais, reflexivos que impliquem num retardo qualquer com respeito
à intensificação dos ritmos de reprodução do capital. Na sociedade da tagarelice
informacional, existe a necessidade desse silenciamento.
Neste ponto, talvez devêssemos
repetir a indagação que o psicanalista de orientação existencialista Pierre
Fédida propôs há algum tempo: diante de condições desumanas de existência,
da necessidade de responder imediata e satisfatoriamente, em tempo real, às
demandas de um capitalismo que opera a partir da lógica 24/7 (Crary, 2014), ou
seja, sem repouso, o deprimido mostra em sua desaceleração, em seu
questionamento radical do sentido das coisas, um sinal de saúde ou um sintoma
patológico (2002, 2003)? Da perspectiva mais ampla da sociologia, talvez
devêssemos enfatizar a pertinência dessa forma de questionar nossos
envolvimentos sociotécnicos que encontramos nos textos de Fédida. Para ele, o
deprimido, em seu minimalismo existencial, opõe-se à aceleração da vida e ao
empobrecimento da experiência que daí decorre. Porém o indivíduo,
evidentemente, sofre para além da racionalização sociológica, ou psicanalítica,
e reivindica alívios imediatos. O que quer que pensemos sobre soluções ou
paliativos farmoquímicos, a confluência de sentidos entre saúde e segurança,
saúde e infalibilidade, saúde e poder, coloca-nos desafios tremendos num contexto
de envolvimentos técnicos e sociais cada dia mais intensos. Diante desse cenário,
parece não espantar que em pesquisa realizada com profissionais da saúde mental
nas cidades de Lisboa, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, entre os anos de
2014 e 2015, ao perguntarmos sobre um critério para aferir a saúde mental dos
indivíduos, alguns desses profissionais teriam respondido categoricamente: “se
esses indivíduos funcionam, estão saudáveis”. A psicologia de Fedida parece, em
oposição a essa tese de orientação evolucionista, por outro lado, identificar
em certos comportamentos disfuncionais um sinal profundo de saúde que não deve
ser negligenciado. (E a evolução, bem sabemos, também se beneficia dos erros....)
Funcionar, neste sentido, deve ser
entendido como mais uma dimensão daquele silenciamento ao qual a sanidade
parece de há muito associada, ou seja, a uma dimensão social desta aparente
harmonização e deste esquecimento. Uma ilustração de uma prática da saúde
mental baseada no sintoma e no acesso direto à base neuroquímica do sofrimento é
oferecido por profissionais da saúde mental que tratam a angústia e a tensão
gerados por problemas sociais, econômicos, como objeto de intervenção
psicofarmacológica[2]. Esse
é o caso que nos apresenta Isabela Cribari, no documentário De profundis (2014), acerca de como
problemas sociais e econômicos negligenciados no processo de transposição da
pequena cidade de Itacuruba – das margens do rio São Francisco para uma região inóspita – implicaram no
adoecimento de uma população. Essa intervenção pública gerou uma população de
deprimidos e consumidores de psicofármacos. A distância que se existe entre a
“velha” e a “nova” Itacuburuba, segundo os depoimentos de seus cidadãos e
cidadãs, é a que se coloca entre o território e o abismo, entre a vida
significativa e o seguir vivendo. A vida social reduzida à nudez biológica, parar
usarmos a expressão de Giorgio Agamben, necessita ser constantemente medicalizada.
Não admira o alto índice de uso de medicamentos psicofarmacológicos e de
tentativas de suicídios naquela cidade.
O profissional que atua no campo
da saúde mental – seja ele um psiquiatra ou um clínico geral – é muitas vezes
confrontado com a demanda para aliviar quadros de sofrimento resultantes de
problemas não necessariamente, ou em primeira instância, psicológicos. Um
paciente que requer de seu médico hipnóticos para poder dormir, diante da
impossibilidade de fazê-lo por conta de vizinhos barulhentos e antissociais,
ruídos resultantes do tráfego urbano, ou algo desta natureza, pode valer-se de
uma solução química para conviver melhor com seu problema, mas este não é
necessariamente um problema médico nem é de se esperar que ele seja resolvido
por esse meio. Funcionar, neste sentido, e a partir da racionalização que aqui
se impõe, significaria tratar sintomas diante da impotência de lidar
politicamente com problemas econômicos e culturais mais amplos. O fármaco,
neste caso, constitui uma tecnologia de esquecimento de si, de silenciamento e
de esperança de adequação, de funcionamento.
[1] Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/05/ciencia/1454701470_718224.html?id_externo_rsoc=fb_CM; acessado em 27/04/2016.
[2] “In America, medication
is becoming almost as much a staple of childhood as Disney and McDonald’s. Kids
pack their pills for school or college along with their lunch money. Some are
taking drugs for depression and anxiety, others for attention deficit
hyperactivity disorder (ADHD). The right drugs at the right time can save young
people from profound distress and enable them to concentrate in class. But some
adolescents, critics say, are given medication to mask the ordinary emotional
turmoil of growing up; there is a risk that they will never learn to live
without it”. Fonte: http://www.theguardian.com/society/2015/nov/21/children-who-grow-up-on-prescription-drugs-us.
Acessado em 27/04/2016.
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