sábado, 26 de julho de 2008

Anotações sobre o individualismo contemporâneo



Bem, como o pessoal desapareceu, ocupo o espaço. Tudo indica que Cynthia perdeu-se na vastidão gelada do Canadá. Caçava bebês focas de forma clandestina, noticiou a política montada. Há cartazes de seu rosto nas ruas de Toronto. É uma foragida.

Jonatas... er... onde estará? Pegou um carro e se pirulitou. Vá saber. Foi visto, pela última vez, atravessando de balsa o Rio Negro. Perdeu o carro numa pororoca.

(...)

Falarei de um assunto maçante. Sei, sei, é de lascar, mas peço a compreensão. Caso queiram, leiam esse post à noite para ter aquele soninho bom e reconfortante. É que venho estudando o individualismo contemporâneo... E tenho aquela pulsão de compartilhamento . É meio tedioso, o artigo; porém, lembrem-se da insônia... Socializo assim algumas anotações (praticamente não coloquei referência, mas utilizo muito as análises de um pensador francês: Alain Ehrenberg):

- Maio de 68 foi a passagem - a matrix. Tentou-se conectar autonomia com independência individual, visando um novo tipo de solidariedade. A inércia do sistema pesou, e o recrudescimento do individualismo voltou à tona. Nunca Nietzsche e Weber foram tão profetas: os novos processos de identificação parecem mimetizar o adágio "pura sucessão, pura diferença", e o politeísmo de valores grassa na sociedade: as antigas referências escafederam-se e as novas são menos referências do que incertezas. Se as mudanças tecnológicas na base material da hiper-modernidade são condicionantes das transformações, as mudanças nas representações sociais também são fundamentais.

- Boa parte do imaginário identitário fresco-moderno (ou pós-moderno, como queiram) formou-se na educação de massas. Educação voltada ao mercado de trabalho, à competição, à qualificação profissional. A profissão é a aspiração de mobilidade social. Seria, também, uma aspiração à autonomia e à independência individual. Encarna uma sensibilidade igualitária baseada no mérito individual ― mas não existe aqui contenção ética, pois estamos diante de uma vocação sem deontologia;

- A pedagogia formatou a radicalização do individualismo através principalmente da valorização da concorrência. Houve no imaginário social uma supervalorização da competição. Um culto à performance. Torna-se uma "obrigação" a visibilidade da subjetividade. Produz-se uma ode ao visível: desde o acting-out até a visibilidade dos excluídos através da violência (torcidas organizadas, gangues de bairro, tribos urbanas...). Num sistema competitivo democrático, o indivíduo precisa mostrar-se, pois somente pode ser julgado tornando transparente a sua performance. Na competição, o indivíduo encontra a justa avaliação. Assim, a pedagogia da concorrência reverteu um antigo tabu: a concorrência não é mais vista como antagônica à justiça. Os "velhos" sistemas de solidariedade precisavam proteger o indivíduo dos efeitos perversos da concorrência, pois se pensava que era fonte de desigualdade; agora, a justiça é produto da concorrência. Ocorre, assim, um deslocamento na sensibilidade igualitária: da solidariedade social ao egoísmo da justa concorrência, da preocupação com o acesso dos mais fracos a uma vida digna ao modelo esportivo do "vença o melhor". Paradoxalmente, mesmo num mundo cheio de incertezas, o risco é valorizado e colocado como o preço da liberdade;

- O pano de fundo de toda essa nova situação: a fragmentação da existência. O indivíduo depende apenas de si mesmo para vencer na vida. Sozinho, produz a construção solitária de sua performance. Tenta cotidianamente construir a si mesmo. Seria um ser sem guia, cada vez mais sem referências externas, julgando o mundo por si e de si mesmo. Um indivíduo avant la lettre que não tem destino, faz o seu destino; que não percebe sentido no mundo, projeta seu sentido. Uma pessoa sem Deus e sem Absoluto guiando sua vida; nada de Fora para lhe dizer o que deve ser e como deve se conduzir. Sua forma de estar-no-mundo passa pela exteriorização da sua interioridade. Ele não é mais um ser - é um ente.

- Por isso, vemos aqui e acolá uma saudade da tradição, quando a identidade era dada pela casta ou pelo estamento. O destino estava traçado. Aqui e acolá, uma saudade das classes sociais, quando a identidade era, pelo menos, condicionada pela solidariedade, mas também pela assimilação. O destino apontava para um futuro melhor -- as últimas sobrevivências de uma postura milenarista? Agora, a identidade é uma construção individual, isto é, uma responsabilidade do indivíduo. O destino é uma construção idiossincrática: não tem raiz no passado, nem aponta para o futuro, firma-se no presente, no aqui e agora. Estranha situação: a identidade é social, mas sua expressão histórica aparece firmemente ancorada na crença de que sua formação depende apenas do desdobrar da individualidade. Ocorre, assim, a desvalorização dos atores coletivos. A busca da felicidade e de uma vida digna é uma tarefa que prescinde de ações coletivas.

- Valorização do sucesso. Novamente, outra quebra de tabu: o sucesso não é mais visto com desconfiança. Não é mais percebido como uma ilusão, virou norma de conduta. O sucesso é individual e prova de reconhecimento, não mais de Deus, como na reforma protestante, mas da sociedade. Seria o sinal mais evidente de que a competição produziu justiça. Cria-se a ideologia do empreendedor, base volitiva do sucesso. A busca da felicidade é um empreendimento. O acesso ao empreendimento é universal. Só é preciso vontade. O "empreendedorismo" é a mais nova forma de voluntarismo na contemporaneidade. Seria a filosofia de vida de uma determinada classe média. Possui uma boa afinidade eletiva com o dito e suposto "neoliberalismo" — lembrar que Hobsbawm definiu o "neoliberalismo" como uma ideologia conservadora, mas também como uma espécie de anarquismo de classe média. A ênfase recai completamente na defesa da independência do indivíduo. Atualmente, no Brasil, Mangabeira Unger é o maior defensor do indivíduo empreendedor — não do grande empreendedor, sejamos justos, mas sim do pequeno e do médio. Com isso, faz-se a defesa política da classe média como a nova classe transformadora da sociedade. Acreditamos piamente que a filosofia política de Mangabeira é uma forma densa, complexa e profunda, para o bem ou para o mal, de americanismo (lembrar de Gramsci, aqui).

- O indivíduo é responsável. Antigamente, admitia-se a responsabilidade, agora exige-se. Todos devem-se comportar como indivíduos responsáveis. Crise de responsabilidade equivale à crise de sentido. Mas o fracasso é individual. Aos poucos, vai tornando-se um handicap, principalmente o fracasso escolar e profissional. Do handicap à neurose, um pulo: a pedagogia transforma-se numa terapêutica do fracasso. A doença do fracasso é a doença da responsabildiade. Ocorre o declínio do conflito no espaço identitário. A histeria, doença do conflito, desaparece de cena e quem domina é a depressão. Da psicanálise ao Prozac, eis a "base material" de nossa sociedade.

- O consumismo torna-se uma moral da felicidade. Seria também uma forma de exercitar a liberdade individual. A poupança deixa seu trono e o Espírito do Capitalismo passa por uma reforma hedonista. Consumir significa também exteriorizar-se, valorizar-se e se tornar visível. O hedonismo é o novo princípio de realidade. Vai modelar principalmente as expressões artísticas e de vanguarda. As identidades não serão mais construídas obrigatoriamente através da repressão sexual. A liberalidade sexual e as descobertas de novas formas identitárias sexuais estão cada vez mais condicionando os processos de identificação. O que está havendo é uma transformação da intimidade (Giddens);

- As representações sociais do corpo também mudam: o corpo e a saúde do corpo são índices de sucesso. O corpo pode ser um bom índice de visibilidade. A saúde torna-se a saúde do corpo perfeito. Malhação, ginásticas, compulsão esportiva, dieta obsessiva, mitomanias médicas: culto do narcisismo.

- Ocorre o recuo das grandes referências políticas de classe, e a despolitização torna-se uma forma de se fazer política. Corrijo: novas formas de fazer política não são traduzidas, absorvidas, canalizadas ou, simplesmente, não são entendidas enquanto tal pelo sistema de representação política das democracias liberais. Tais formas de fazer política são, assim, vistas negativamente, inclusive como formas de despolitização.

- A todo momento, a subjetividade separa-se, distingue-se, inscreve-se numa relação assimétrica com a individualidade. A subjetividade parece que virou uma questão coletiva - eis a novidade e a dificuldade (Ehrenberg). O processo de constituição do ego não está mais conectado diretamente ao processo de socialização. Papel social e identidade entram em conflito. A identidade sofre um desmembramento na sua constituição: não há mais uma homologia entre o campo do sentido ― a identidade propriamente dita ― e o campo funcional ― a identidade enquanto papel social. O que eu sou não é mais necessariamente o que eu faço. A conexão entre o sentido e a função, entre a identidade para si e para o outro, entre o íntimo e o manifesto, entre o privado e o público, entre a identidade propriamente dita e o papel social torna-se menos um atributo dado pela socialização do que uma "construção" socialmente encampada pelo sujeito. A construção é um risco, pois pode acontecer ou não. A função pode ficar sem sentido, e o sentido sem função. Pode acontecer o fracasso.

- Ocorre a passagem da denúncia da exploração à acusação da exclusão social. Surge o individualismo dos excluídos: tribalismos, torcidas organizadas, rapismo em que se afirmam, ao mesmo tempo, o individualismo e o comunitarismo. Pululam identidades; surgem as políticas de identidade. Contudo, tanto o neoindividualismo como o comunitarismo não conseguem, aparentemente, suprir a deficiência de integração societária após a crise do modelo republicano ou assistencial do Estado. Provavelmente, os processos de identificação política são devedores do recuo do Estado na sua função de integração e de socialização política. Parece que está ocorrendo uma privatização do espaço público concomitante a uma exposição pública da vida privada.

Parece que estamos lascados...

Artur Perrusi.

sábado, 5 de julho de 2008

O medo primordial



Seqüestrei este texto de Artur do Blog dos Perrusi. Como era o complemento perfeito para os posts sobre a Vênus Hotentote, não dei nem chance de ele se manifestar. Além disso, estou viajando, o que torna improvável uma represália das mais contundentes.
Cynthia

Quando pequeno, era um assassino de lagartixas. Confesso minha crueldade, pois, além de matá-las, antes divertia-me fazendo vivissecções com as coitadas. Procurava sinais de dor de forma compulsiva. As lagartixas não gritam, e tal fato deixava-me maluco. Queria bater no peito e dizer:

_saibam que torturei uma lagartixa, e ela gritava de dor!

Um belo dia, inventei de assá-las lentamente. Foi, nesse momento, que fui pego por minha mãe quando mordiscava uma lagartixa. Ela olhava hipnotizada o rabo do bicho pendente na minha boca. Acho que o rabo ainda mexia, o que era muito engraçado. Ela quase que desmaia quando lhe ofereci, em forma de torresmo, as patas traseiras do bicho (_ali, quase virava infanticida — confessou, muito tempo depois). Minha família ficou escandalizada, seja com minha crueldade, seja com meu gosto culinário. Meu pai, preocupado com o meu destino, levou-me a um psicanalista. Depois de várias sessões, o vatícinio do seguidor de Freud foi a repetição da acusação tradicional:

_o problema é a Mãe!

Bem… er… talvez, esse especialista da alma tenha razão.

Eu me lembro da paixão por minha mãe. Nessa época, tinha entre três a cinco anos de idade e estava, segundo Sigmund, na fase fálica de meu desenvolvimento libidinoso. Em virtude desse sentimento devastador, cujo movimento levava-me à deriva pelos caminhos dos arquétipos primevos, queria cometer o parricídio para livrar-me de meu pai, ser horrendo e rival eterno que barrava-me o caminho à realização de meu desejo incestuoso.

Eu queria minha mãe e a queria falicamente, isto é, meu pênis, antes apenas um objeto assexuado, era agora um objeto fálico. Nessa época, investia no meu pênis-falo um formidável valor narcíseo: tal apêndice era o eixo de minha atividade sexual, o fulcro de meu orgulho egocêntrico e de minha afirmação de onipotência e completitude.

A paixão por minha mãe deixava-me completamente exausto, pois mobilizava todo um elenco de sentimentos horripilantes, oriundos das camadas mais arcaicas do psiquê humano: ciúme, inveja, ódio parricida, culpa, tremor e temor, etc. Além disso, tal situação confundia-me muito, pois sempre acreditara, até então, que só existia um sexo, o masculino. Para mim, todos os humanos eram portadores de um pênis-falo, mas comecei a notar, no processo passional materno, que minha mãe e as meninas não tinham pênis-falo. Como era incapaz de distinguir a diferença sexual entre um homem e uma mulher, simplesmente permaneci fiel à minha teoria de que todos os humanos tinham pênis-falo, mas que alguns, por infelicidade, e para a minha extrema perplexidade, tinham-no perdido.

A angústia — esse estado arcaico, cósmico, que tanto Heidegger valorizou — tomou conta de mim, tirando-me o sono, uma vez que estava possuído dos mais escabrosos pesadelos, todos com apenas uma temática: a perda do pênis-falo. Eu tinha medo de perdê-lo, pois tinha descoberto que o poderia perder. Tal descoberta foi crucial e passou a ser o fundamento da minha vida. Eu vivia na perspectiva aterrorizante de ser castrado, visto ter notado que meu pai não tinha perdido o seu pênis-falo, inclusive, muito maior que o meu, e que, provavelmente, ao saber da minha paixão, infligir-me-ia retaliações terríveis, como a castração.

Depois de tudo isso, eu desisti, é claro, do meu furor passional por minha mãe. Meu pai tinha ganho, mas eu, pelo menos, tinha conseguido preservar intacto o meu pênis-falo. Contudo, toda desistência passional tem o seu preço e o meu foi adquirir um medo do feminino.

Lembro-me bem como era um patinho indefeso, protegido nas asas da pata-mãe. Sentia-me particularmente frágil naqueles dias nos quais ia comprar, por algum motivo materno insondável, roupas novas e era arrastado, dando gritos bestiais, ao cadafalso. Não existe coisa mais terrível, para um menino, do que comprar roupas com a mãe. Ela chega na loja e fica fuxicando com a atendente, olhando pra gente e dando risotas de escárnio, veste-nos mil vezes e nos deixa, horribile dictu, de cueca na frente de todas as mulheres da loja. E quando ensaiava alguma autonomia, mamãe-ganso prontamente assumia o controle, bloqueando-me toda iniciativa semântica e moral.

(Inclusive, passei a usar regularmente cuecas depois de uma dessas idas às compras. A cena é traumática: ao tirar as calças, descobri estarrecido que esquecera as malditas. As mulheres olharam-me com ironia, provavelmente para o meu diminuto pênis-falo, e tive, pela primeira vez, aquela vontade de desaparecer desse mundo velho e enfadado)

Com um passado desses nas costas, imaginem a situação de pânico diante da aproximação sedutora de uma fêmea voraz!

Não causa surpresa, pois, que até os 17 anos desconhecesse os rudimentos básicos de comunicação com leoas famintas. Uma vez, por exemplo, na época do científico, uma menina cobiçadíssima, como que por um milagre, escolheu-me como vítima. Não sabia o que fazer, estava nervoso, pensava humildemente só nuns “amassos” e pronto, retornando glorioso com a minha conquista. Qual o quê! Ela queria muito mais do que uns simples esfregões no canto do muro. Seu desejo transcendia, e muito, as minhas necessidades ingênuas. Ela queria algo que faria Torquemada condená-la à fogueira.

De fato, o demônio ficava me olhando com aquele sorriso voluptuoso de entrega total, bem como na sua testa aparecia, piscando em neon, a palavra “sexo”. Eu ria - no fundo de pavor - com um sorriso, digamos assim, não muito inteligente. Sempre, de alguma forma, escapulia. Insuflava-me, então, de coragem e dizia para mim mesmo, de forma retumbante: “da próxima vez, sim, claro, da próxima vez, quem sabe!”.

Nunca encostei uma unha nela.

Hoje em dia, a coisa melhorou um pouco, mas continua: tenho medo principalmente das psicanalistas. Tais criaturas pensam o óbvio quando reconhecem os desejos animais como o leitmotiv humano. Racionalizam e se apropriam teoricamente dessas pulsões e não param mais de fornicar. Nem sequer aceitam a possibilidade de, nesta ou naquela noite, não terem vontade de copular. Comumente, gabam-se em público de terem experimentado tudo em termos de sexo: “Já fiz de tudo. Nada do que é genital me é estranho” - dizem. Sem dúvida, são de causar arrepios…

Diante disso e como não acredito muito na psicanálise, procurei um método mais eficaz e, talvez, bem mais selvagem: busquei a ajuda do Reverendo Tsé-Tsé.

Tive uma conversa interessante…

_Reverendo, o senhor acredita que meu medo tem causas psicológicas?
_Que nada, menino, o medo do feminino é um troço de fundo antropológico. Você apenas retoma, de forma pessoal, esse pavor primevo.
_E mulher mete medo mesmo?!
_Sem dúvida, a Mulher mete medo, sim; afinal, é um bicho esquisito, todo mês sangra e, além do mais, possui um catálogo de odores e secreções, líquido amniótico que, convenhamos, deixa qualquer um confuso. Aliás, o Papa, quando era chefe do Santo Ofício, perguntava ao seu guarda-costa grego: “não é do seu arsenal de perfumes lascivos que se utiliza a serpente da corrupção”?
_Não sei… Por que a corrupção? Ele falava de decomposição? E a ligação do feminino com a vida, com a fertilidade?
_O Papa é sabido. Uma vez, ele explicou ao seu guarda-costa marroquino que, apesar de anunciar no seu ventre a luminosidade da vida, ao mesmo tempo a mulher prenuncia, no preço pago à maternidade, a escuridão da morte. Não é à toa que ela é o símbolo da fertilidade, mas também símbolo do fim da existência. O que é a deusa Hela, da mitologia nórdica, rainha do reino dos mortos? O que são os diversos monstros femininos existentes nas crenças antigas, como mães ogras, como Medéia? Se ela representa a terra-mãe, não esqueçamos, contudo, que essa mesma terra é o solo onde enterramos os nossos mortos.
_ A morte é feminina? Exagero!
_Não, não, o negócio é mesmo confuso. O próprio Sigmund reconhecia, quando fumava o seu charuto-falo, que na sexualidade feminina “tudo é obscuro (…) e bastante difícil de estudar de maneira analítica”. Um dia, ele desabafou e confessou que não sabia, afinal, o que as elas queriam. Nunca soube, aliás. A própria Simone de Beauvoir admitia que “o sexo feminino é misterioso para a própria mulher…”.

O Reverendo parou de falar, respirou fundo, procurando alento nalgum lugar da alma, e citou Duby (”A história do medo”):

Tal enigma, para os homens, aparece de forma um tanto ambígua. Nós a veneramos e, ao mesmo tempo, morremos de medo. Karen Horney, por exemplo, sugere como a fonte do nosso terror o fenômeno da Maternidade. Talvez isso seja verdade, visto que a maternidade remete à Natureza e os seus mistérios. A maternidade, assim, seria a fonte de tantos tabus, que ligaria a Mulher ao mundo natural e a informaria dos seus segredos mais recônditos. Tal ligação faria o elemento feminino representante da Natureza, ao contrário do masculino, representante da Cultura. Somos, então, “apolíneo e racional por oposição à Mulher dionisíaca e instintiva“, mais penetrada pela obscuridade, pelo inconsciente e pelo sonho.


_Veja, meu caro, o medo masculino da Mulher não pode ser reduzido, como queria Sigmund, ao temor da castração, pois vai além dele. Pra você ver, estudos antropológicos descobriram mais de trezentas versões do mito da vagina dentata entre os índios da América do Norte. Tudo bem, pode-se dizer que isso é estória de índio; no entanto, na Índia, encontrou-se o mesmo mito, só que numa versão um pouco diferente: a vagina não tem dentes, mas sim pavorosas serpentes.
_Cacetada! — exclamei.

Vaginas dentadas, pensei, não posso sonhar com isso, não posso sonhar com isso, fiquei repetindo para mim mesmo…

_Dá medo mesmo, né?! Depois que conheci Marocas, fiquei com medo é da libido feminina. Confesso a você que tenho pesadelos com a terrível deusa hindu, Kali, mãe do mundo, destruidora e criadora num só tempo, sorvendo minhas energias seminíferas e sacrificando todos os anos litros e litros de minha seiva vital. Já sonhei com uma Amazonas devoradora de carne humana; uma “Parca” cortando o fio da vida; uma “Erínea” assustadora, louca e vingadora, tão terrível que os gregos antigos “não ousavam pronunciar seu nome”.
_Não, não posso sonhar com isso! Tô lascado!
_Sonhou, lascou, meu filho. Seria no sonho que você é pego. Uma vez, quase que morro de tanto sonho erótico. No início, foi bom, depois virou uma maldição. Não aguentava mais. Vivia morto de cansado, acabado, deprimido… Além do mais, Marocas é espantosamente insaciável, “comparável a um fogo que é preciso alimentar incessantemente, devoradora como o louva-deus”. Vou te dizer um segredo: acho que ela foi a inventora do sexo. Não sou ingênuo, pois sei muito bem que “o homem jamais é vencedor no duelo sexual”. Elas são, isto sim, os juizes de nossa sexualidade, impedindo de nós sermos nós mesmos e de encontrarmos a nossa salvação. Resisto bravamente, pois a Mulher é a carcereira do homem. Sou Ulysses, resistindo às seduções, pois sucumbir “ao fascínio de Circe é perder a identidade”.
_Ulysses?!
_Sim, Ulysses. Fiz minha genealogia e descobri que descendo de Penélope!
_É cada uma!
_Pois acredite. Só isso explica minha resistência e minha capacidade em dar conta de Marocas. Mas não tenho ilusão alguma sobre quem manda realmente na cama.

O Reverendo parou, novamente. Pigarreou, baixou a cabeça, puxou-me um pouco para baixo, como se quissesse contar um segredo.

_Uma vez, Zeus e Hera estavam discutindo sobre quem, o homem ou a mulher, tinha mais prazer no coito. Chamaram Tirésias (aquele cujo erro foi flagrar Atena no banho, ficando assim cego), que sabia o segredo de uma Ninfa, e lhe pediram uma resposta. Tirésias prontamente colocou que o prazer tinha dez partes, nove estavam com a mulher e apenas uma respondia pelo homem. Hera ficou fula e quis punir Tirésias, porque isso era o segredo dos segredos, do tipo que os videntes devem menos falar do que custodiar.

Arregalei os olhos. A conversa estava ficando muito estranha.

_Não acredita em mim? A verdade dói? Ora, vamos então comprovar essas teses com a ajuda dos clássicos, fonte de toda a sabedoria! Vejamos o que Ovídio, poeta romano, tinha a dizer sobre esse bicho bizarro, já em 20/10 a.C:

O amor furtivo agrada tanto aos homens como às mulheres; o homem dissimula mal, a mulher esconde o que deseja. Se ficasse combinado que nós não tomássemos a iniciativa, a mulher vencida assumiria aquele papel. Nos verdejantes prados, é a fêmea que relincha chamando o cavalo. Entre nós, o desejo não é tão furioso: o ardor dos homens respeita os limites da lei. (…) Em verdade, será mais fácil os pássaros deixarem de cantar na primavera e as cigarras no verão, será mais fácil o Cão da Menália voltar as costas à lebre, do que a mulher resistir às delicadas insinuações de um jovem.


_Meu Deus, o Cão da Menália — disse, desconsolado…
_Presta atenção. Ovídio é ingênuo ao pensar que a Mulher é passiva, ao ponto de esperar a nosso abiscoitamento para, então, tomar a iniciativa. Na verdade, a Mulher dissimula e finge passividade, pois como disse o nosso poeta, ela esconde o que deseja. Assim, Bernard Shaw via a passividade feminina na da aranha, que ocupa toda a rota do mosquito com a teia e espera que o mesmo caia e “insinue” que possa devorá-lo.
_Rapaz…
_Pois é… Creio, assim, que o teu medo do feminino é bem fundamentado.
_Realmente, é pra ter medo mesmo…

O Reverendo fechou os olhos. Abriu a boca lentamente. Queria dizer algo? Pegou na garganta, como se quissesse puxar as palavras de dentro. Fitou-me bem sério e sussurou, olhando os lados:

_Eu nunca entendi a necessidade da sexualidade. É muito estranho. A nossa reprodução é feita por um órgão que só existe pela metade, fazendo-nos gastar muita energia e tempo à procura da outra metade. Por que é necessário juntar dois para gerar um terceiro e não apenas um gerando dois? Pergunta primordial.

Balançou a cabeça e eu, sem querer, balancei a minha mais ainda. Aumentou o tom da voz:

_Pense bem, a sexualidade não é uma condição necessária à vida. Existem numerosos organismos que não tem sexo e que, contudo, parecem bastante felizes. Reproduzem-se por cissiparidade ou gemulação. E por que não sucede o mesmo conosco? E por que dois sexos e não três? Imagine um mundo onde houvesse a necessidade de três indivíduos para a produção de um ser humano. Imagine as conseqüências de tal situação nos roteiros de cinema, na clínica psiquiátrica e para os juristas! Mas, talvez fosse demasiado; talvez não agüentássemos tantas delícias e tormentos.

Comecei a rir. Os psiquiatras ficariam ricos!

_Não ria. Isso é sério. Estive estudando alguns mitos e descobri que alguns consideravam a dualidade sexual como um fenômeno secundário. O que foi criado era um; somente depois se tornou dois. Mas quem quebrou então a unidade original? Para os Upanishads é o Deus que, querendo fugir à sua solidão, transforma-se em duas metades, dando origem à Humanidade. Em Zaratustra, Yima, o ser criado pelo demiurgo, representa uma espécie de monstro bissexual, que é cindido em dois. Aristófanes, no Banquete de Platão, descreve uma humanidade ainda no estado de androginia. Ah, era um tempo que só existia putaria entre os deuses e as deusas no Olimpo - profundos conhecedores do sexo! Nós éramos organismos esféricos e tínhamos uma cabeça de duas caras, quatro pés, quatro mãos, quatro orelhas e uma dose dupla de “partes vergonhosas”. Zeus, diante de tão descabidos seres, resolveu cortá-los em dois — “como se corta um ovo com uma crina”, precisaria, depois, Platão. Apolo foi encarregado da cirurgia estética, deixando-nos mais modestos, mas não menos apresentáveis.

Os olhos do Reverendo estavam rútilos. Já esbravejava. Ficou em pé. Apontou o dedo na minha direção e disse:

_Leia, seu ateuzinho, seu ímpio, o Velho Testamento. Tá tudo lá! O culpado da perdição de Adão, que era feliz apenas como um, mas infelizmente se tornou dois, foi a Serpente, que através de sua persuasão feminina, induziu Deus, esse pobre eunuco, a retirar Eva do nosso valoroso antepassado. O que é a vileza rastejante senão a personificação profana e terrestre da Mulher? A Serpente, que há muito tempo dominava Deus, queria dominar o Homem, criatura ainda indomável à maldade; assim, transmudou-se em Mulher e, desde então, o homem é apenas um reles animal servil. A Mulher e a Serpente são a expressão de uma mesma natureza e seu poder advém do sexo.

Houve um momento de silêncio. As palavras do Reverendo causavam tempestades na minha alma. Não quero sonhar, não quero sonhar, repetia, repetia… Quando parecia que o Reverendo retomaria o fôlego e, para o bem ou para o mal, a conversa, não mais do que de repente, Marocas entra na sala. Pensei que o pior aconteceria naquele momento. Tudo indicava que o Reverendo jogaria o Velho Testamento na cabeça de Marocas e a chamaria de Serpente vil e rastejante; mas, qual o quê, para minha surpresa, o Reverendo deu um sorriso quase celestial, seu rosto iluminou-se e disse meio encabulado:

_Môzinho, você chegou! Que bom! Tava com saudade! Você quer que eu faça um cafezinho, quer?!

(…)

Já de noite, escovava os dentes e olhava o espelho do banheiro. Pensava muito, o que é contraproducente quando se escova os dentes. Não queria dormir. Não queria sonhar com vaginas dentadas.

_Os homens são covardes…

Foi meu último pensamento inteligível, antes de ser devorado por gigantescas vulvas de caninos afiados.

Artur Perrusi

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A FÉ E A MONTANHA: notas sobre a idéia de ressocialização penal



Este texto é a versão escrita, e portanto mais elaborada, de minha intervenção oral no painel Violência e Sistema Prisional realizado na Universidade Católica de Pernambuco em 29/05/08. Sou grato à professora Valéria Cavalcanti Lins, coordenadora do evento, pelo convite para participar do mesmo; bem como à minha “pibiquiana”, Camila Albuquerque, pelo suporte bibliográfico. Acho que ambas não esperavam que o resultado de sua generosidade fosse tão desencantado...

Uma velha mensagem bíblica diz que a fé remove montanhas. Trata-se de uma afirmação que o filósofo Karl Popper chamaria de não-científica, na medida em que não pode ser ─ utilizando ainda os seus termos ─ “falsificada”. O que vem a ser isso? É simples. A afirmação: “a maçã cai sempre para baixo”, que segundo a anedota permitiu a Sir Isaac Newton formular a lei da gravidade, é científica, na medida em que se um dia a maçã “cair” para cima, a teoria newtoniana terá sido “falsificada”, e então teremos de revê-la. Pois bem: voltando às Santas Escrituras, a afirmação sobre as montanhas que podem mudar de lugar por força da nossa fé não se presta a esse exercício, pois o crente sempre poderá dizer que a fé não foi bastante para fazê-la mudar de lugar!

Essa reflexão pouco ortodoxa ocorre-me às vezes quando participo de discussões acadêmicas envolvendo pessoas com perfil militante e elas, ao terem de encarar repetidas vezes a frustração de não verem seus objetivos realizados, em vez de se debruçarem sobre a hipótese da irrazoabilidade dos objetivos ou dos caminhos para atingi-los, reafirmam nos mesmos termos objetivos e caminhos, e se põem a tarefa de persegui-los com mais ardor ainda ─ nos termos da metáfora, com mais fé... Pois bem: ao ser convidado para participar de uma mesa-redonda sobre violência prisional, onde falaria sobre a questão da ressocialização dos presos, a reflexão herética ocorreu-me mais uma vez, e me pus a refletir de maneira provocadora sobre a seguinte interpelação que faço em primeiro lugar a mim mesmo: e se deixássemos de pensar nisso? ─ na idéia de ressocialização? O que se segue é o resultado do que li dos outros, mas também do que pensei por contra própria.

Antes de qualquer dedução antecipada, deixe-me alertar para o fato de que a sugestão de deixar de lado a idéia de ressocialização não implica de modo algum a sugestão de que abandonemos de vez os presos brasileiros à sua própria sorte, vivendo a vida de bichos que levam nas nossas cadeias! Ao contrário, na sua origem está a disposição de levar a sério e assumir todas as conseqüências de uma constatação que é antiga e conhecida de todo mundo, faltando-nos apenas a coragem de dizer publicamente o que reconhecemos todos na hora do cafezinho: a prisão é um mal irremediável. Certamente necessária em alguns casos e para certas pessoas, mas nem por isso deixando de ser um mal que só produz exatamente o que a sua essência secreta: males! Falarei mais longamente disso adiante. Por ora apenas concluo a advertência com que iniciei este parágrafo: se é assim, não faz nenhum sentido continuarmos reafirmando o artigo de fé segundo o qual ela pode uma dia recuperar delinqüentes, desde que funcione como nossa idéia iluminista de uma cadeia pedagógica diz que ela deveria funcionar ─ o que nunca se viu. Nesse caso, a reafirmação do discurso só legitima uma instituição que simplesmente não presta, cuja única função “positiva” ─ se posso assim falar ─ é apenas pôr fora de circulação alguns indivíduos socialmente nocivos. Isso dito, desenvolvo o argumento.

O senso comum, pródigo em produzir equívocos, em alguns casos parece estar certo. Quando, por exemplo, nomeia as prisões como “universidades do crime”, que todos aceitamos como uma evidência. Segundo esse princípio, elas seriam cursos de especialização em bandidagem: o sujeito entra na prisão por ter cometido um furto, e sai disposto a praticar um roubo; ou entra por ter cometido um roubo, e sai disposto a praticar um latrocínio. Seja dito que o princípio, rigorosamente falando, precisaria de demonstração empírica para se sustentar. Para isso seriam necessários estudos reiterados com os reincidentes, mostrando como a segunda condenação é ─ ou pelo menos tende a ser ─ por um crime mais grave do que o primeiro. Desconheço se tais estudos existem. Na verdade, como lembra Fernando Salla, “faltam estudos consistentes sobre as taxas de reincidência criminal no Brasil”. Não obstante, ele mesmo informa que “todos os levantamentos parciais feitos pela polícia, pelo poder judiciário ou pelo sistema penitenciário apontam que elas estão sempre acima de 50%” (Salla, 2003: 427). Trata-se, muito provavelmente, de uma taxa subestimada, porque o “teste crucial de ressocialização” que existe no Brasil é “a taxa de reincidência” (Paixão, 1991: 69), que representa apenas aqueles que reincidiram e foram pegos, não a totalidade dos que voltaram a delinqüir, fenômeno idêntico ao que também ocorre com a taxa geral de crimes, onde a população carcerária não reflete a população de criminosos, mas apenas aquela parte que foi pega ─ e que é sempre inferior àquela.

Ora, se faltam informações mais confiáveis sobre os números da reincidência, o seu conteúdo é também nebuloso. Na verdade, para ter informações mais precisas sobre essa realidade, seria necessária uma espécie de follow up dos que deixaram a prisão, para saber que rumo deram à sua vida. E, ainda assim, seria bastante discutível se o que operou no caso dos que não reincidiram foi efetivamente um processo de ressocialização. O que estou sugerindo, ao menos como hipótese de trabalho, é que isso se deve principalmente não ao que a prisão operou neles, mas à natureza do crime que cometeram e à vida ─ familiar, ocupacional, social etc. ─ que já tinham antes da prisão, e que bem ou mal puderam retomar depois que de lá saíram. Ou seja: é bastante razoável supor que não existe uma taxa geral de reincidência aplicável aos criminosos independentemente do crime que cometeram. O autor ocasional de um homicídio, por exemplo, é um caso bem diferente de um assaltante cuja ação se insere numa carreira criminosa ─ cuja estada na prisão é apenas um acidente num percurso que começou bem antes e que muito provavelmente continuará depois de sua saída. Dando exemplos bem simples: um homicida passional não é um serial killer. Vejam-se casos famosos como os de Doca Street, Lindomar Castilho etc. Depois de cumprir pena ─ e malgrado ela, ousaria dizer ─, nenhum dos dois voltou a matar. Nesse caso, estariam ambos ressocializados.

Como quer que seja, excepcionando-se casos como esses, “uma das principais atribuições legais do sistema, que é a reinserção do indivíduo na sociedade, não está sendo cumprida”, conclui Salla (2003: 427). Ou, sendo muito generoso, o sistema carcerário ressocializa apenas um pequeno percentual dos que por ele passaram. Voltando ao senso comum, vê-se assim que é sustentável ─ é verdade que com as nuances e ajustes acima ─ o lugar-comum da prisão como “universidade do crime”. Pois bem, se assim é, torna-se insensato um outro lugar-comum de livre curso na mídia e na opinião pública de um modo geral: “lugar de bandido é na cadeia!”. Dos apresentadores dos nefastos “programas policiais” que poluem a paisagem áudio-visual brasileira, aos engravatados comentaristas da Rede Globo e GloboNews, o refrão aparece aplicável a todo tido de malfeitor e de malfeitoria. As duas coisas são incompatíveis. (Quem primeiro me chamou a atenção para essa incongruência foi a pesquisadora Ronidalva de Andrade Melo, da Fundação Joaquim Nabuco). Afinal, como podemos pretender, sem zonzear o bom senso, que bandidos sejam enviados a um lugar onde farão pós-graduação em bandidagem? Não faz sentido. A menos que a prisão não fosse o que é! É aqui onde entra a perspectiva voluntarista dos bem intencionados militantes da ressocialização, criticando o horror que ela é, mas mantendo intacta a fé em que ela pode ser diferente ─ um lugar que produza o bem da ressocialização. O problema é que, malgrado essa fé, que já dura 200 anos, a montanha continua no mesmo lugar! É tempo de começar a demoli-la.

Experiências históricas reiteradas, mesmo sem fundamento, tendem a se “naturalizar”. As mulheres como seres inferiores, o homossexualismo como doença etc. sempre pareceram, nas sociedades patriarcais, evidências que ninguém discutia ou punha em xeque. Hoje já não se sustentam. O famoso “lugar de bandido é na cadeia” é também uma dessas verdades sólidas, indiscutíveis ─ até que saltemos o muro de giz da inércia e perguntemos: por quê? Quem se faz essa pergunta a sério constata que a prisão, pelo menos como lugar de ressocialização, é uma idéia às voltas com uma incongruência fundamental: como seria possível reinserir alguém na sociedade segregando-o dela? Há algum sentido nessa idéia aparentemente sem pé nem cabeça? No começo, sim, parecia haver. É bom lembrar que a idéia de confinamento como método de redenção é de origem eclesiástica, “tendo sempre sentido de penitência, meditação e oração, a fim de provocar o arrependimento e a emenda” (Ribeiro, 2006: 56). Penitenciária, é bom sempre prestar atenção às palavras, designa um lugar de penitência... Em 1779, isso foi dito com todas as letras por um dos fundadores da prisão como pena, o filantropo inglês John Howard, para quem as prisões seriam “regiões de culpa, sofrimento e remorso”. O trabalho, a disciplina monástica, o silêncio e o isolamento seriam os seus instrumentos. Como bom puritano, a sua receita não continha nenhuma doçura: “acrescentar o peso da monotonia ao terror da solidão” (citado em Coelho, 2005: 30-31). A prescrição nunca funcionou. Compreende-se. Trata-se, afinal, de uma típica idéia fora de lugar. E como! Uma coisa é um pecador, no mundo medieval ─ onde a Igreja é a maior autoridade e a salvação da alma o maior bem ─, ser confinado em nome de valores que, muito provavelmente, são legítimos junto à sua própria consciência; outra, bem diferente, é um criminoso numa sociedade moderna, dentro da qual as autoridades tradicionais esgarçaram-se e onde o maior bem é o consumo, ser encarcerado por uma justiça que ele odeia e despreza. Isso não quer dizer que a idéia, por mais estapafúrdia que seja, não tenha produzido resultados ─ no caso, o oposto de qualquer idéia de ressocialização. É, aliás, o que indicam estudos contemporâneos sobre os efeitos deletérios de longos períodos de confinamento total em presídios de segurança máxima, para onde vão, nos Estados Unidos, serial killers e, entre nós, chefões do crime organizado submetidos ao Regime Disciplinar Diferenciado: alucinação e até mesmo loucura (Nogueira, 2006).

A prisão é, assim, o lugar onde naufragam as boas intenções (algumas bem cruéis...) dos reformadores penais. Sempre foi. Michel Foucault, um autor lidíssimo no Brasil ─ mas que talvez deva ser lido com mais atenção ─, lembra no famoso Vigiar e Punir que a crítica à instituição veio praticamente junto à sua fundação, “pois logo a seguir a prisão, em sua realidade e seus efeitos visíveis, foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal.” Ele mesmo lembra que essa crítica “se fixa num certo número de formulações que ─ a não ser pelos números ─ se repetem hoje sem quase mudança nenhuma”: as prisões não diminuem as taxas de criminalidade, provocam a reincidência, favorecem a organização de um meio delinqüente, penaliza a família dos presos etc. (Foucault, 1977: 234-36). E isso já dura quase duzentos anos! Já não será o momento de termos coragem de nada de grandioso esperar dela?

À sua incongruência fundamental ─ ressocializar alguém retirando-o da sociedade ─ junta-se uma outra questão incontornável e que chega a ser uma ironia: a prisão termina por constituir, inevitavelmente, uma nova forma de sociedade! ─ a chamada “sociedade dos cativos” (Coelho, 2005: 86). E aqui o paradoxo é total: “como pode pretender a prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio da sociedade e o incapacita, por essa forma, para as práticas da sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social quando é a própria prisão que o impele para a ‘sociedade dos cativos’, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna respeitável para a massa carcerária?” (Ibid.). Apesar de toda a torrente de críticas, antigas e reiteradas, a prisão permanece. Por quê? É também uma pergunta inúmeras vezes feitas. Conhece-se a resposta de Foucault: ela permitiria gerir a ilegalidade, criando um meio delinqüente fechado e útil, seja em termos policiais ─ porque nele a polícia recrutaria seus alcagüetes ─, seja em termos políticos ─ porque a existência de um “meio delinqüente” serve de álibi para a manutenção e incremento da repressão que mantém o sistema em funcionamento. A resposta, tipicamente funcionalista (ainda que “de esquerda”...) é brilhante. Mas talvez seja muito especiosa. Talvez, como lembra com bom senso Antonio Luiz Paixão, a prisão permaneça simplesmente por sua função mais óbvia ─ “e, talvez por isso mesmo, menos enfatizada nos relatos convencionais”: a de retirar criminosos de circulação (Paixão, 1991: 20). Fico com ele.

Resumindo e assumindo as conseqüências lógicas de tudo o que foi dito, acho que é mais do que tempo de abandonar os discursos legitimadores da prisão, salvo no que diz respeito a essa utilidade bem tangível, ainda assim a ser utilizada com moderação ─ mas efetivamente! O que só será possível se promovermos uma reviravolta no princípio do “lugar de bandido é na cadeia”, irresponsavelmente divulgado pela mídia a propósito de tudo, e encararmos a realidade com um mínimo de serenidade que os números proporcionam. Em 2005 havia mais de 360 mil pessoas cumprindo pena no Brasil (Adorno, s/d: 46). Em sua grande parte, nas condições endêmicas de superpopulação e desumanidade que todos conhecemos. Mas já dois anos antes, em 2003, havia, segundo dados do Ministério da Justiça, cerca de 300 mandados de prisão sem serem cumpridos (Salla, 2003: 426). O impacto do mero cumprimento da lei, nessas condições, é simplesmente impensável. Haverá ainda alguém suficientemente inocente para acreditar que num país com os déficits em educação e saúde que são os nossos, socialmente mais “legítimos” dos que os déficits em direitos humanos dos presos, algum governo vai investir no sistema prisional recursos, pessoal e meios capazes de torná-lo apto a cumprir pelo menos a “obrigação moral” (Paixão, 1991: 85). de garantir a existência do prisioneiro em condições humanamente dignas? Pensar assim significa resignar-se e concluir que não há nada a fazer? Não. Há muito o que fazer.

A primeira tarefa, porque ela é condição de todas as outras, é promover uma mudança drástica na nossa cultura punitiva, destronando o encarceramento da condição de rainha das penas. Esse, aliás, já é um trabalho em curso. Atualmente, mesmo operadores jurídicos não se sentem mais inibidos em reconhecer que a ressocialização através da prisão é uma idéia em “decadência”; que as prisões aparecem hoje “como o que efetivamente sempre foram: aberrantes instituições de repressão” (Ribeiro, 2006: 163). Quanto a serem instituições repressivas, não há nisso nada de escandaloso. Não há sociedade sem interditos, sem infrações a eles e, portanto, sem castigo. É a tese da normalidade do crime, tão cara a Durkheim, e, ipso facto ─ embora com freqüência nos esqueçamos disso ─, da normalidade da repressão. O problema é o seu lado aberrante. Isso, independentemente de conveniências sociológicas, nunca deverá ser eticamente aceito como normal.

Definitivamente, só deve ir para a prisão o criminoso violento e perigoso, cuja liberdade seja uma ameaça à vida e à integridade física das pessoas. Obviamente que em alguns casos, mesmo esse perigo não se apresentando como uma virtualidade real ─ como são em geral os casos de homicídio por motivos pessoais, por exemplo ─, a “consciência coletiva”, como diria ainda Durkheim, não se satisfaria em ver o assassino flanando por aí e prestando serviços comunitários ─ de ralo controle, aliás ─ à guisa de pena. Tirante esses casos, entretanto, boa parte ─ senão a grande maioria ─ dos que estão no sistema carcerário poderia ser apenada com medidas que evitem o confinamento. A cultura das penas alternativas, ainda balbuciante e já um tanto desmoralizada por falta das condições institucionais e materiais de verificação ─ hoje, aliás, em boa parte já pervertidas pela jurisprudência fácil das condenações ao mero pagamento de “cestas básicas” ─, precisa ser levada a sério e seriamente investida. Em termos utilitários, o único argumento realmente válido para justificar a prisão ─ o de que ela, pelo confinamento, controla o comportamento de criminosos ─, compreensível até pouco tempo atrás, já não se sustenta com tanta força num mundo em que, pelas tecnologias disponíveis, é possível ao proprietário de um carro roubado, graças a um minúsculo chip, saber onde o seu veículo se encontra. Se isso é possível com o produto do roubo, também é possível com o ladrão!

Não disponho de informações e dados mais precisos ─ noutros termos: suficiente competência empírica ─ para aprofundar e sustentar melhor esses argumentos. De toda forma, minha intenção foi simplesmente a de animar um debate que precisa ser encarado sem a boa consciência do voluntarismo que nada pode contra montanhas reais. Mas há montanhas e montanhas. As simbólicas, por exemplo. A idéia de prisão como local de ressocialização de infratores é uma delas, e dessa podemos nos livrar.

Referências

ADORNO Sérgio, “Crimen, Punición y Prisiones en Brasil: um retrato sin retoques”, in Quorum, 16.
COELHO Edmundo Campos, A Oficina do Diabo e Outros Estudos, Rio de Janeiro / São Paulo, Editora Record, 2005.
FOUCAULT Michel, Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1977.
NOGUEIRA Rogério, “Confinamento – O castigo que vai ao fundo da alma”, in Ciência Criminal, agosto de 2006.
PAIXÃO, Antônio Luiz, Recuperar ou Punir?, São Paulo, Editora Cortez / Autores Associados, 1991.
RIBEIRO Cláudio Luiz Frazão, O Mito da Função Ressocializadora da Pena, São Luís, AMPEM Editora, 2006.
SALLA, Fernando, “Os Impasses da Democracia Brasileira – O balanço de uma década de políticas para as prisões no Brasil”, in Lusotopie, 2003.

Luciano Oliveira
Professor do Deptº de Ciências Sociais da UFPE
E-mail: jlgo@hotlink.com.br

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Campanha pela descriminalização do aborto



À Câmara dos Deputados
Resposta da sociedade brasileira ao parecer do relator Eduardo Cunha

A Comissão de Constituição e Justiça convocou audiências públicas para os dias 02 e 03 de julho de 2008, visando o aprofundamento do debate sobre o Projeto de Lei 1.135/91, que regulamenta a descriminalização do aborto no país. Contudo, mesmo antes da realização das audiências públicas, que se pensava poderiam contribuir para subsidiar a decisão dos eminentes membros da Comissão, o relator, Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) apresentou seu parecer sobre o Projeto. Surpreende a postura do relator, na medida em que se antecipa ao debate, desconsiderando, portanto, os saberes dos especialistas que haviam sido chamados a prestar esclarecimentos sobre o projeto de lei, diga-se dos mais importantes que já tramitaram no Congresso Nacional em toda a sua existência.

A antecipação do parecer é reveladora de como o processo vem sendo conduzido pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça. O papel das audiências públicas não é o de emprestar uma “aparência de democracia” a um processo cujas regras já estão pré-definidas. Antecipando sua posição, sem colher os necessários esclarecimentos sobre o tema, o relator incorreu numa série de raciocínios equivocados e, em conseqüência, emitiu parecer pela inconstitucionalidade de um projeto que se harmoniza não apenas ao texto constitucional, como também aos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional.
Dito isso, passa-se ao enfrentamento dos argumentos lançados no parecer do relator, com a finalidade de informar a sociedade brasileira sobre a falta de argumentos razoáveis para a conclusão a que chegou o Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) em sua manifestação, a qual, se acolhida por seus pares na Comissão de Constituição e Justiça resultará em uma violação de garantias constitucionais, tais como a liberdade de pensamento, a autonomia da vontade e o direito à saúde:

1. Afirma o relator que: “O Constituinte de 1988 não esclareceu se garante o direito à vida humana desde a concepção ou somente após o nascimento com vida”.
Afirmar que a Constituição Federal não estabelece textualmente quando começa a vida humana, deixando de considerar que a Constituição poderia tê-lo feito, é revelar a falta de compreensão sobre o fenômeno do Poder Constituinte Originário outorgado pelo povo brasileiro aos constituintes. Isso porque, no curso dos debates ocorridos durante a construção da Constituição Cidadã, os constituintes tiveram oportunidade de debater o tema, rechaçando a proposta de que o texto constitucional abrigasse a proteção da vida desde a concepção.

Conforme está documentado no Diário da Assembléia Nacional Constituinte, no curso dos trabalhos, o Senador Meira Filho propôs a seus pares que a redação do seu atual artigo 5º estabelecesse a proteção da vida desde a concepção. Essa proposta foi submetida à apreciação dos Constituintes, foi analisada, votada e rejeitada. Na condução dos debates, o Senador José Fogaça explicitou as razões pelas quais o texto constitucional não deveria recepcionar o princípio da proteção da vida desde a concepção: “Esta matéria foi exaustivamente debatida nas diversas instâncias anteriores e foi consenso repetido e assentado o de que este tema deveria ser tratado na legislação ordinária” (Diário da Assembléia Nacional Constituinte, p. 7.220).

Assim, ao contrário do que afirma o Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) em seu relatório, os constituintes não se omitiram quanto à proteção constitucional da vida desde a concepção. A Assembléia Nacional Constituinte não incorporou a noção de que o direito à vida existe desde a concepção. Os constituintes enfrentaram essa questão e decidiram não adotar uma redação que houvesse claramente adotado esse princípio. O legislador constituinte decidiu não assegurar proteção constitucional ao feto, remetendo o tema para ser regulamentado pelo legislador ordinário.

Assim agindo, concederam plena liberdade ao Congresso Nacional para regulamentar a matéria através de lei ordinária, seja em um ou em outro sentido, sem que qualquer das hipóteses conflite com a Constituição Federal, justamente porque o legislador constituinte delegou a apreciação do tema ao legislador ordinário. Conseqüentemente, o parecer do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) padece de falácia de petição de princípio, ao referir a inconstitucionalidade do projeto nº 1.135/91, pois foram os próprios constituintes que propuseram que a regulamentação dessa matéria se desse através de lei ordinária.

2. Referências a leis ordinárias: Artigo 2º do Código Civil e Artigo 7º do ECA.
A fragilidade argumentativa do parecer apresentado pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) fica evidenciada quando o mesmo, para fundamentar a pretensa inconstitucionalidade do projeto 1.135, recorre a dispositivos de leis ordinárias, como são o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sem que haja necessidade de examinar aqui o quanto é equivocada a leitura do relator relativamente aos efeitos jurídicos de ambos os textos legais, é preciso destacar que justamente por se tratarem de leis ordinárias, eventual conflito que houvesse entre o projeto 1.135 e quaisquer desses textos, não configuraria inconstitucionalidade do projeto 1.135, pois se tratam de textos infraconstitucionais. De fato, a argumentação empregada no parecer revela a confusão do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sobre qual seja o objetivo da análise do projeto pela Comissão de Constituição e Justiça. Confusão que pode ser desfeita, bastando que se examine o projeto à luz da Constituição Federal e não leis ordinárias.

3. O relatório destaca que o Supremo Tribunal Federal em momento algum adentrou no mérito do aborto.

O Supremo Tribunal Federal, em recente decisão histórica, rechaçou a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, que propunha uma definição de início da vida como válida para o ordenamento jurídico. O STF, capitaneado pelo voto do Ministro Carlos Ayres Britto, explicitamente rejeitou a tese da proteção jurídica da vida desde a concepção, decidindo que ao feto se confere apenas proteção infraconstitucional, como bem ilustra o seguinte trecho do acórdão prolatado na ADI 3.510-0:

“Não que a vedação do aborto signifique o reconhecimento legal de que em toda gravidez humana já esteja pressuposta a presença de pelo menos duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação. Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do art. 128 do Código Penal seriam inconstitucionais. (...) O que traduz essa vedação do aborto não é outra coisa senão o Direito Penal brasileiro a reconhecer que, apesar de nenhuma realidade ou forma de vida pré-natal ser uma pessoa física ou natural, ainda assim faz-se portadora de uma dignidade que importa reconhecer e proteger.

Reconhecer e proteger, aclare-se, nas condições e limites da legislação ordinária mesma, devido ao mutismo da Constituição quanto ao início da vida humana. Mas um mutismo hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária ou usual, até porque, segundo recorda Sérgio da Silva Mendes, houve tentativa de se embutir na Lei Maior da República a proteção do ser humano desde a sua concepção.

Com o que se tem a seguinte e ainda provisória definição jurídica: vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte” (STF - ADI 3.510-0, relator Ministro Carlos Ayres Britto).

Essa é a interpretação constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal, a qual refutou a “tese da proteção da vida desde a concepção”. Infelizmente, o alcance jurídico da decisão do STF não foi considerada pelo parecer do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). É dizer, ao reconhecer que a proteção ao feto tem natureza infraconstitucional, o STF assegura a constitucionalidade de projeto de lei que proponha a descriminalização do aborto no Brasil, deixando a cargo do legislador ordinário regulamentar a matéria.

4. Referência ao Pacto da Costa Rica.

Nossa Constituição de 1988 está sintonizada com os textos internacionais que são referência na proteção aos direitos humanos, em cuja redação também não se inclui a proteção integral da vida desde a concepção. Tanto a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) não contemplam a proteção integral da vida desde a concepção.
O artigo 1º da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na Conferência realizada em Bogotá, em 1948, estabelece que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e segurança de sua pessoa”. Essa redação suscitou grande polêmica sobre se o aborto violaria o direito à vida enunciado o artigo 1º dessa Declaração.

Provocada a decidir se o direito ao aborto viola o direito à vida assegurado nessa Declaração, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Resolução 23/81, decidiu que o direito ao aborto não viola a Declaração, posto que o texto não explicita a proteção da vida desde a concepção.

Na fundamentação da Resolução 23/81, embora os Estados Unidos não fossem signatários do Pacto de São José da Costa Rica, a Comissão fez questão de também enfrentar a redação dessa Convenção (1969), cujo artigo 4º refere a proteção da vida “em geral” desde a concepção, pois alguns juristas sustentavam que esse dispositivo do Pacto de São José da Costa Rica se constituía em obstáculo à descriminalização do aborto. Esta foi uma ressalva, inclusive, explicitada pelo Ministro Celso de Mello durante o julgamento da ADI de células-tronco no STF.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu que essa interpretação é incorreta, pois a expressão “em geral” não significa a intenção de modificar o conceito de direito à vida que prevaleceu da Declaração aprovada em Bogotá (1948), salientando que as implicações jurídicas da cláusula “em geral, desde o momento da concepção” são substancialmente diferentes da cláusula mais curta “desde o momento da concepção”. O “em geral” remete exatamente às leis nacionais, ou seja, novamente reconhecendo ao legislador o papel de enfrentar essa matéria.

A Resolução 23/81, por ser anterior à Constituição Federal de 1988, reforça a conclusão de que se o objetivo dos Constituintes fosse proteger a vida desde a concepção, certamente não adotariam a atual redação, similar à empregada naquela Declaração, a qual sabidamente não alcança a proteção da vida nos moldes em que pretendido pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Mas não é só por essa razão que o Pacto de São José da Costa Rica não obstaculiza a descriminalização do aborto no país. Por ocasião da Conferência da Costa Rica, ficou consignado que “Brasil e EUA interpretam o texto do artigo 4º, inciso I, no sentido de que deixa à discricionariedade dos Estados Parte o conteúdo da legislação à luz do seu próprio desenvolvimento social” (Ata da Segunda Sessão Plenária, OEA Ser. K/XVI/1.2).

A posição consignada pelo Estado brasileiro não deixa margem à dúvida quanto à possibilidade de o legislador ordinário regulamentar o tema do aborto. A ressalva consignada em 1969 tem exatamente essa função: assegurar que o Brasil possa avançar em termos de proteção aos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Tanto assim que o Brasil é signatário da Conferência do Cairo (1994), cujo artigo 8.25 assegura às mulheres a autonomia sobre sua fecundidade, passando o aborto a ser considerado como um grave problema de saúde pública; e também da Conferência de Beijing (1995) na qual, através do parágrafo 106k, o Estado brasileiro se compromete a revisar sua legislação punitiva em relação ao aborto.

A Câmara dos Deputados, por seu turno, não está alheia aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. Em 25/04/1996 o plenário da Câmara apreciou a proposta (do Deputado Severino Cavalcante) de emendar a Constituição para incluir “a proteção da vida desde a concepção”. O resultado da votação foi uma expressiva conquista no que tange à proteção dos Direitos Humanos: 16 abstenções, 33 votos favoráveis e 351 votos contrários à proposta.

Vê-se, portanto, que o Estado brasileiro está firme no propósito de honrar os compromissos assumidos perante a comunidade internacional, objetivando retirar nosso país de uma vergonhosa 128ª posição no ranking da proteção aos direitos humanos, relativamente ao acesso ao aborto legal e seguro.

5. No relatório consta “revela-se injurídica a edição de lei ordinária tendente a abolir direitos fundamentais”.

Argumenta o relator, Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que o Projeto de Lei 1.135 estaria a abolir direitos fundamentais. Trata-se de mais um equívoco do relatório. Basta que se leia atentamente o artigo 5º, da Constituição Federal, para verificar que é a demora na aprovação do projeto 1.135 que está a causar incessante violação de direito fundamental assegurado no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal.
Isso porque, o texto constitucional assegura a “inviolabilidade de consciência e de crença”, trazendo como conseqüência que nenhuma convicção religiosa pode ser imposta à população através de lei. Ademais, é do próprio interesse das associações religiosas que a doutrina não seja imposta por lei. Nesse sentido, já se manifestava o libertador Simón Bolívar ao afirmar que “A religião é a lei da consciência. Toda lei sobre ela se anula porque impondo a necessidade do dever, retira o mérito da fé, que é a base da religião”.

Em sociedades democráticas, não é papel do Estado fomentar doutrinas religiosas. Quanto ao aborto, seguir ou não a orientação de determinadas confissões religiosas é decisão que cada brasileira tomará ao enfrentar a decisão de interromper uma gravidez indesejada. A laicidade do Estado impõe que a decisão seja acolhida pelo Ministério da Saúde, garantindo-se tanto um pré-natal quanto o acesso a um aborto legal e seguro. O fato de vivermos em um Estado laico é que garante às brasileiras o acesso a informações sobre métodos contraceptivos e relações sexuais protegidas por preservativos.

Essas informações permitem que a mulher, livre e informada, tome suas próprias decisões. Se uma mulher por razões de moral privada não quiser usar métodos contraceptivos ou de barreira, não está obrigada a fazê-lo. O Estado laico respeita sua decisão, mas ela não perde sua liberdade para mudar de idéia quando quiser. O Estado verdadeiramente laico não parte da diversidade religiosa de sua população para representá-la em seu ordenamento básico. O raciocínio é inverso: o Estado laico assume a neutralidade confessional como forma de garantir a liberdade de pensamento dos cidadãos. e cidadãs.

Uma lei de aborto não deve ter pretensões de representar um consenso moral ou religioso. Sua ambição deve ser garantir a neutralidade moral do Estado laico e proteger a diversidade de pensamento. Como resultado, nas sociedades democráticas, as mulheres não são obrigadas a abortar, pois gozam de autonomia reprodutiva. Pelo mesmo fundamento, não são obrigadas a levar a termo a gravidez indesejada. A recente descriminalização do aborto pela sociedade da capital mexicana (88% de católicos) traz bom ensinamento. O fato de a maioria ser católica não impediu que se respeitassem as minorias. Ser religioso não impede que se seja laico, isto é, que se aceite que existem pessoas que pensam diferente e que também essas pessoas devem ter seus direitos garantidos pelo Estado. Situação semelhante ocorreu recentemente na República Islâmica do Irã, um país confessional, que autoriza o aborto.
Tomando-se o Estado Democrático de Direito como um regime democrático onde as políticas públicas não são ditadas por doutrinas religiosas, pode-se afirmar que o parecer do Deputado. Eduardo Cunha (PMDB-RJ) viola a laicidade do Estado, porquanto não apresenta qualquer argumento capaz de convencer quem já não estivesse previamente convencido a votar contrariamente ao projeto 1.135. Essa realidade fica evidenciada na medida em que os argumentos utilizados pelo relator não resistem a uma análise jurídica.

Recentemente o Presidente da República reafirmou a separação Estado-igrejas, recusando-se a assinar uma concordata com o Vaticano. Nesse mesmo patamar soberano, o Supremo Tribunal Federal emancipou a população brasileira de uma concepção religiosa sobre quando começa a vida. Nesse momento histórico, impõe-se que o projeto que descriminaliza o aborto no Brasil seja submetido ao crivo do plenário da Câmara dos Deputados, para que possamos, a exemplo do que aconteceu com a aprovação do divórcio em 1977, voltar a celebrar a democracia no Congresso Nacional.

Para Assinar a petição: http://www.petitiononline.com/CCJ1135/petition.html