sábado, 26 de julho de 2008

Anotações sobre o individualismo contemporâneo



Bem, como o pessoal desapareceu, ocupo o espaço. Tudo indica que Cynthia perdeu-se na vastidão gelada do Canadá. Caçava bebês focas de forma clandestina, noticiou a política montada. Há cartazes de seu rosto nas ruas de Toronto. É uma foragida.

Jonatas... er... onde estará? Pegou um carro e se pirulitou. Vá saber. Foi visto, pela última vez, atravessando de balsa o Rio Negro. Perdeu o carro numa pororoca.

(...)

Falarei de um assunto maçante. Sei, sei, é de lascar, mas peço a compreensão. Caso queiram, leiam esse post à noite para ter aquele soninho bom e reconfortante. É que venho estudando o individualismo contemporâneo... E tenho aquela pulsão de compartilhamento . É meio tedioso, o artigo; porém, lembrem-se da insônia... Socializo assim algumas anotações (praticamente não coloquei referência, mas utilizo muito as análises de um pensador francês: Alain Ehrenberg):

- Maio de 68 foi a passagem - a matrix. Tentou-se conectar autonomia com independência individual, visando um novo tipo de solidariedade. A inércia do sistema pesou, e o recrudescimento do individualismo voltou à tona. Nunca Nietzsche e Weber foram tão profetas: os novos processos de identificação parecem mimetizar o adágio "pura sucessão, pura diferença", e o politeísmo de valores grassa na sociedade: as antigas referências escafederam-se e as novas são menos referências do que incertezas. Se as mudanças tecnológicas na base material da hiper-modernidade são condicionantes das transformações, as mudanças nas representações sociais também são fundamentais.

- Boa parte do imaginário identitário fresco-moderno (ou pós-moderno, como queiram) formou-se na educação de massas. Educação voltada ao mercado de trabalho, à competição, à qualificação profissional. A profissão é a aspiração de mobilidade social. Seria, também, uma aspiração à autonomia e à independência individual. Encarna uma sensibilidade igualitária baseada no mérito individual ― mas não existe aqui contenção ética, pois estamos diante de uma vocação sem deontologia;

- A pedagogia formatou a radicalização do individualismo através principalmente da valorização da concorrência. Houve no imaginário social uma supervalorização da competição. Um culto à performance. Torna-se uma "obrigação" a visibilidade da subjetividade. Produz-se uma ode ao visível: desde o acting-out até a visibilidade dos excluídos através da violência (torcidas organizadas, gangues de bairro, tribos urbanas...). Num sistema competitivo democrático, o indivíduo precisa mostrar-se, pois somente pode ser julgado tornando transparente a sua performance. Na competição, o indivíduo encontra a justa avaliação. Assim, a pedagogia da concorrência reverteu um antigo tabu: a concorrência não é mais vista como antagônica à justiça. Os "velhos" sistemas de solidariedade precisavam proteger o indivíduo dos efeitos perversos da concorrência, pois se pensava que era fonte de desigualdade; agora, a justiça é produto da concorrência. Ocorre, assim, um deslocamento na sensibilidade igualitária: da solidariedade social ao egoísmo da justa concorrência, da preocupação com o acesso dos mais fracos a uma vida digna ao modelo esportivo do "vença o melhor". Paradoxalmente, mesmo num mundo cheio de incertezas, o risco é valorizado e colocado como o preço da liberdade;

- O pano de fundo de toda essa nova situação: a fragmentação da existência. O indivíduo depende apenas de si mesmo para vencer na vida. Sozinho, produz a construção solitária de sua performance. Tenta cotidianamente construir a si mesmo. Seria um ser sem guia, cada vez mais sem referências externas, julgando o mundo por si e de si mesmo. Um indivíduo avant la lettre que não tem destino, faz o seu destino; que não percebe sentido no mundo, projeta seu sentido. Uma pessoa sem Deus e sem Absoluto guiando sua vida; nada de Fora para lhe dizer o que deve ser e como deve se conduzir. Sua forma de estar-no-mundo passa pela exteriorização da sua interioridade. Ele não é mais um ser - é um ente.

- Por isso, vemos aqui e acolá uma saudade da tradição, quando a identidade era dada pela casta ou pelo estamento. O destino estava traçado. Aqui e acolá, uma saudade das classes sociais, quando a identidade era, pelo menos, condicionada pela solidariedade, mas também pela assimilação. O destino apontava para um futuro melhor -- as últimas sobrevivências de uma postura milenarista? Agora, a identidade é uma construção individual, isto é, uma responsabilidade do indivíduo. O destino é uma construção idiossincrática: não tem raiz no passado, nem aponta para o futuro, firma-se no presente, no aqui e agora. Estranha situação: a identidade é social, mas sua expressão histórica aparece firmemente ancorada na crença de que sua formação depende apenas do desdobrar da individualidade. Ocorre, assim, a desvalorização dos atores coletivos. A busca da felicidade e de uma vida digna é uma tarefa que prescinde de ações coletivas.

- Valorização do sucesso. Novamente, outra quebra de tabu: o sucesso não é mais visto com desconfiança. Não é mais percebido como uma ilusão, virou norma de conduta. O sucesso é individual e prova de reconhecimento, não mais de Deus, como na reforma protestante, mas da sociedade. Seria o sinal mais evidente de que a competição produziu justiça. Cria-se a ideologia do empreendedor, base volitiva do sucesso. A busca da felicidade é um empreendimento. O acesso ao empreendimento é universal. Só é preciso vontade. O "empreendedorismo" é a mais nova forma de voluntarismo na contemporaneidade. Seria a filosofia de vida de uma determinada classe média. Possui uma boa afinidade eletiva com o dito e suposto "neoliberalismo" — lembrar que Hobsbawm definiu o "neoliberalismo" como uma ideologia conservadora, mas também como uma espécie de anarquismo de classe média. A ênfase recai completamente na defesa da independência do indivíduo. Atualmente, no Brasil, Mangabeira Unger é o maior defensor do indivíduo empreendedor — não do grande empreendedor, sejamos justos, mas sim do pequeno e do médio. Com isso, faz-se a defesa política da classe média como a nova classe transformadora da sociedade. Acreditamos piamente que a filosofia política de Mangabeira é uma forma densa, complexa e profunda, para o bem ou para o mal, de americanismo (lembrar de Gramsci, aqui).

- O indivíduo é responsável. Antigamente, admitia-se a responsabilidade, agora exige-se. Todos devem-se comportar como indivíduos responsáveis. Crise de responsabilidade equivale à crise de sentido. Mas o fracasso é individual. Aos poucos, vai tornando-se um handicap, principalmente o fracasso escolar e profissional. Do handicap à neurose, um pulo: a pedagogia transforma-se numa terapêutica do fracasso. A doença do fracasso é a doença da responsabildiade. Ocorre o declínio do conflito no espaço identitário. A histeria, doença do conflito, desaparece de cena e quem domina é a depressão. Da psicanálise ao Prozac, eis a "base material" de nossa sociedade.

- O consumismo torna-se uma moral da felicidade. Seria também uma forma de exercitar a liberdade individual. A poupança deixa seu trono e o Espírito do Capitalismo passa por uma reforma hedonista. Consumir significa também exteriorizar-se, valorizar-se e se tornar visível. O hedonismo é o novo princípio de realidade. Vai modelar principalmente as expressões artísticas e de vanguarda. As identidades não serão mais construídas obrigatoriamente através da repressão sexual. A liberalidade sexual e as descobertas de novas formas identitárias sexuais estão cada vez mais condicionando os processos de identificação. O que está havendo é uma transformação da intimidade (Giddens);

- As representações sociais do corpo também mudam: o corpo e a saúde do corpo são índices de sucesso. O corpo pode ser um bom índice de visibilidade. A saúde torna-se a saúde do corpo perfeito. Malhação, ginásticas, compulsão esportiva, dieta obsessiva, mitomanias médicas: culto do narcisismo.

- Ocorre o recuo das grandes referências políticas de classe, e a despolitização torna-se uma forma de se fazer política. Corrijo: novas formas de fazer política não são traduzidas, absorvidas, canalizadas ou, simplesmente, não são entendidas enquanto tal pelo sistema de representação política das democracias liberais. Tais formas de fazer política são, assim, vistas negativamente, inclusive como formas de despolitização.

- A todo momento, a subjetividade separa-se, distingue-se, inscreve-se numa relação assimétrica com a individualidade. A subjetividade parece que virou uma questão coletiva - eis a novidade e a dificuldade (Ehrenberg). O processo de constituição do ego não está mais conectado diretamente ao processo de socialização. Papel social e identidade entram em conflito. A identidade sofre um desmembramento na sua constituição: não há mais uma homologia entre o campo do sentido ― a identidade propriamente dita ― e o campo funcional ― a identidade enquanto papel social. O que eu sou não é mais necessariamente o que eu faço. A conexão entre o sentido e a função, entre a identidade para si e para o outro, entre o íntimo e o manifesto, entre o privado e o público, entre a identidade propriamente dita e o papel social torna-se menos um atributo dado pela socialização do que uma "construção" socialmente encampada pelo sujeito. A construção é um risco, pois pode acontecer ou não. A função pode ficar sem sentido, e o sentido sem função. Pode acontecer o fracasso.

- Ocorre a passagem da denúncia da exploração à acusação da exclusão social. Surge o individualismo dos excluídos: tribalismos, torcidas organizadas, rapismo em que se afirmam, ao mesmo tempo, o individualismo e o comunitarismo. Pululam identidades; surgem as políticas de identidade. Contudo, tanto o neoindividualismo como o comunitarismo não conseguem, aparentemente, suprir a deficiência de integração societária após a crise do modelo republicano ou assistencial do Estado. Provavelmente, os processos de identificação política são devedores do recuo do Estado na sua função de integração e de socialização política. Parece que está ocorrendo uma privatização do espaço público concomitante a uma exposição pública da vida privada.

Parece que estamos lascados...

Artur Perrusi.

3 comentários:

Anônimo disse...

Arture,

Infelizmente os bebes focas nao tem se adaptado ao verao de 30 graus de Toronto e resolveram se mudar mais para o norte. Os cartazes nas ruas de Toronto se devem as minhas atividades com representantes de movimentos sociais pela liberacao da Palestina. Alias, vou ver se consigo postar aqui uma entrevista com um deles num futuro nao muito distante.

Ao que interessa. O mais estranho em relacao a essas novas formas de individualismo e que, como dizia John Cleese em sua "carta de revogacao da independencia", publicada apos a eleicao de G.W. Bush, os americanos (o caso paradigmatico de hiper-individualismo) nao conseguem resolver nada sozinhos, sem a ajuda de um revolver, um advogado ou um terapeuta.

Segue uma copia do que considero um dos documentos mais sensatos dos ultimos anos.

To the citizens of the United States of America, in the light of your failure to elect a competent President of the USA and thus to govern yourselves, we hereby give notice of the revocation of your independence, effective today.

Her Sovereign Majesty Queen Elizabeth II will resume monarchical duties over all states, commonwealths and other territories. Except Utah, which she does not fancy. Your new prime minister (The Right Honourable Tony Blair, MP for the 97.85% of you who have until now been unaware that there is a world outside your borders) will appoint a minister for America without the need for further elections. Congress and the Senate will be disbanded. A questionnaire will be circulated next year to determine whether any of you noticed. To aid in the transition to a British Crown Dependency, the following rules are introduced with immediate effect:

1. You should look up revocation in the Oxford English Dictionary. Then look up aluminium. Check the pronunciation guide. You will be amazed at just how wrongly you have been pronouncing it. The letter 'U' will be reinstated in words such as 'favour' and 'neighbour', skipping the letter 'U' is nothing more than laziness on your part. Likewise, you will learn to spell 'doughnut' without skipping half the letters. You will end your love affair with the letter 'Z' (pronounced 'zed' not 'zee') and the suffix ize will be replaced by the suffix ise. You will learn that the suffix 'burgh' is pronounced 'burra' e.g. Edinburgh. You are welcome to respell Pittsburgh as 'Pittsberg' if you can't cope with correct pronunciation.

Generally, you should raise your vocabulary to acceptable levels. Look up vocabulary. Using the same twenty seven words interspersed with filler noises such as "like" and "you know" is an unacceptable and inefficient form of communication. Look up interspersed. There will be no more 'bleeps' in the Jerry Springer show. If you're not old enough to cope with bad language then you shouldn't have chat shows. When you learn to develop your vocabulary then you won't have to use bad language as often.

2. There is no such thing as "US English". We will let Microsoft know on your behalf. The Microsoft spell-checker will be adjusted to take account of the reinstated letter 'u' and the elimination of -ize.

3. You should learn to distinguish the English and Australian accents. It really isn't that hard. English accents are not limited to cockney,upper-class twit or Mancunian (Daphne in Frasier). You will also have to learn how to understand regional accents - Scottish dramas such as Taggart will no longer be broadcast with subtitles. While we're talking about regions, you must learn that there is no such place as Devonshire in England. The name of the county is Devon. If you persist in calling it Devonshire, all American States will become shires e.g. Texasshire, Floridashire, Louisianashire.

4. Hollywood will be required occasionally to cast English actors as the good guys. Hollywood will be required to cast English actors to play English characters. British sit-coms such as Men Behaving Badly or Red Dwarf will not be re-cast and watered down for a wishy-washy American audience who can't cope with the humour of occasional political incorrectness.

5. You should relearn your original national anthem, God Save The Queen but only after fully carrying out task 1. We would not want you to get confused and give up half way through.

6. You should stop playing American football. There is only one kind of football. What you refer to as American football is not a very good game. The 2.15% of you who are aware that there is a world outside your borders may have noticed that no one else plays American football. You will no longer be allowed to play it, and should instead play proper football. Initially, it would be best if you played with the girls. It is a difficult game. Those of you brave enough will, in time, be allowed to play rugby (which is similar to American "football", but does not involve stopping for a rest every twenty seconds or wearing full kevlar body armour like nancies). We are hoping to get together at least a US Rugby sevens side by 2005. You should stop playing baseball. It is not reasonable to host an event called the 'World Series' for a game which is not played outside of America. Since only 2.15% of you are aware that there is a world beyond your borders,your error is understandable. Instead of baseball, you will be allowed to play a girls' game called rounders, which is baseball without fancy team strip, oversized gloves, collector cards or hotdogs.

7. You will no longer be allowed to own or carry guns. You will no longer be allowed to own or carry anything more dangerous in public than a vegetable peeler. Because we don't believe you are sensible enough to handle potentially dangerous items, you will require a permit if you wish to carry a vegetable peeler in public.

8. July 4th is no longer a public holiday. November 2nd will be a new national holiday, but only in England. It will be called Indecisive Day.

9. All American cars are hereby banned. They are crap and it is for your own good. When we show you German cars, you will understand what we mean. All road intersections will be replaced with roundabouts. You will start driving on the left with immediate effect. At the same time,you will go metric with immediate effect and conversion tables. Roundabouts and metrication will help you understand the British sense of humour.

10. You will learn to make real chips. Those things you call French fries are not real chips. Fries aren't even French, they are Belgian though 97.85% of you (including the guy who discovered fries while in Europe) are not aware of a country called Belgium. Those things you insist on calling potato chips are properly called crisps. Real chips are thick cut and fried in animal fat. The traditional accompaniment to chips is beer which should be served warm and flat. Waitresses will be trained to be more aggressive with customers.

11. As a sign of penance 5 grams of sea salt per cup will be added to all tea made within the Commonwealth of Massachusetts, this quantity to be doubled for tea made within the city of Boston itself.

12. The cold tasteless stuff you insist on calling beer is not actually beer at all, it is lager. From November 1st only proper British Bitter will be referred to as beer,and European brews of known and accepted provenance will be referred to as Lager. The substances formerly known as American Beer will henceforth be referred to as Near-Frozen Knat's Urine,with the exception of the product of the American Budweiser company whose product will be referred to as Weak Near-Frozen Knat's Urine. This will allow true Budweiser (as manufactured for the last 1000 years in Pilsen,Czech Republic) to be sold without risk of confusion.

13. From November 10th the UK will harmonise petrol (or Gasoline, as you will be permitted to keep calling it until April 1st 2005) prices with the former USA. The UK will harmonise its prices to those of the former USA and the Former USA will, in return, adopt UK petrol prices (roughly $6/US gallon- get used to it).

14. You will learn to resolve personal issues without using guns, lawyers or therapists. The fact that you need so many lawyers and therapists shows that you're not adult enough to be independent. Guns should only be handled by adults. If you're not adult enough to sort things out without suing someone or speaking to a therapist then you're not grown up enough to handle a gun.

15. Please tell us who killed JFK. It's been driving us crazy.

16. Tax collectors from Her Majesty's Government will be with you shortly to ensure the acquisition of all revenues due (backdated to 1776).

Thank you for your co-operation and have a great day.

John Cleese

Anônimo disse...

É melhor ou menos pior...o Prozac

Anônimo disse...

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