sábado, 23 de maio de 2009

Notas sobre "futebol e violência" -- III



Pode-se imaginar o seguinte raciocínio: digamos que vivemos numa sociedade ultraviolenta; melhor ainda: digamos que nossa sociedade seja intrinsecamente violenta, seja por atavismo, seja por Destino, seja-lá-por-qual-motivo-for. Sim, digamos tudo isso e, a partir disso, fiquemos um tanto embatucados em saber como nossa sociedade se equilibra ou resolve, de alguma forma, o problema da violência, já que intuitivamente sabemos que ela é um grande perigo para a manutenção da "vida social" -- deixo de lado, por ora, esse mal-estar (ou aporia) básico de uma sociedade naturalmente violenta, tendo que lutar contra sua própria natureza, mas não conseguindo evitar de se manter como tal, isto é, violenta.

Uma das prováveis soluções para a reprodução de uma sociedade intrinsecamente violenta seria a existência de instituições de sublimação, isto é, instituições sociais que sublimem ou purifiquem a violência. Assim, através de um processo de sublimação ou de purificação, a violência seria eliminada ou diminuída, permitindo que a sociedade reproduza-se e controle sua própria "fúria" interna. Tais instituições funcionariam à semelhança da tragédia grega, cuja "função" era "aliviar" a "tensão" social através da encenação dramática de situações terríveis, ou seja, de coisas de nunca mais se ver, mesmo com o tanto de coisas passíveis de nunca serem vistas que tinham lugar na vida e no imaginário gregos; assim, ao trazer à tona os mais entranhados sentimentos e emoções, a tragédia proporcionava ao homem grego antigo uma espécie de purgação e alívio dos mesmos.

Tal interpretação da tragédia grega (pelo menos, uma das interpretações) foi dada por Aristóteles, via sua conhecida teoria da catarse. Podemos imaginar, caso tal interpretação seja correta, o grego antigo como um ser humano atormentado por sentimentos de extrema intensidade e violência, necessitando de uma instituição, como o teatro, que aplacasse ou diminuísse o poder desagregador do seu próprio pathos. Contudo, vale assinalar que Aristóteles considerava também o teatro grego como uma instituição que formava e educava o indivíduo, perfazendo o que se chamava, naquela época, de paidéia.

Pode-se discutir por que os modernos apropriaram-se muito mais do lado estético ou psicológico (por exemplo: teoria da sublimação da violência) da teoria aristotélica da catarse do que do seu lado ético ou pedagógico. Os motivos dessa apropriação unilateral são vários e, infelizmente, não há tempo nem espaço para discutir tal assunto aqui; de todo modo, o que importa nesta discussão é que a teoria da catarse foi identificada a uma teoria de "purificação" ou "sublimação" de algumas potencialidades humanas, como a violência, por exemplo.

Pois bem, se na Grécia Antiga o teatro tinha um papel de sublimação, quais seriam as instituições modernas que cumpririam tal função? Pode-se especular sobre muitas, mas uma das principais certamente seria o esporte e, em particular, o futebol. A prática do futebol e, principalmente, o espetáculo futebolístico representariam no mundo moderno o que a tragédia teria sido na antiga Grécia. A catarse do futebol eliminaria, diminuiria ou purificaria a violência que todo torcedor ou espectador traz, de forma implícita ou explícita, do meio onde vive e trabalha ou mesmo do seu próprio fórum íntimo.

Sendo várias as teorias que se nutrem do paradigma da teoria da catarse, reuni-las-ei, no intuito de simplificar, em dois grupos:

  1. o primeiro diz respeito às teorias "terapêuticas" da catarse -- mesmo que seja redutor colocar a teorização de Elias no grupo das teorias "terapêuticas" da catarse, pois ela é muito mais complexa e abrangente, preferi correr o risco; afinal de contas, o dito "processo de civilização" que refina, sofistica e suaviza, ao longo do tempo, a agressividade primeva dos seres humanos transforma, através do esporte, a violência concreta em violência simbólica, isto é, faz justamente o que apregoam as teorias da catarse (ver Nobert Elias e Eric Dunning, "Sport et Civilisation", Paris, Fayard, 1986);
  2. o segundo, às teorias "perpetuadoras" da catarse (ver, por exemplo, Ingnacio Ramonet, "Le football, c'est la guerre", Manière de voir - Le Monde Diplomatique -, No 39, maio-junho, 1998).

As teorias "terapêuticas" da catarse, no geral, subentendem o seguinte: a catarse oferecida pelo espetáculo futebolístico "purga" a violência potencial ou real do torcedor; nesse sentido, a catarse possui uma função terapêutica, pois aliviaria e "trataria" a violência potencial ou real do indivíduo.

Já as teorias "perpetuadoras" da catarse julgam o espetáculo futebolístico como reprodutor ou mesmo reforçador da violência latente ou concreta do torcedor; nesse caso, a catarse seria "negativa", mais parecida com um êxtase propagador de um estado potente ou real de um indivíduo.

De todo modo, as teorias "perpetuadoras", assim como as "terapêuticas" afirmam que o espetáculo futebolístico substitui uma violência real e concreta por uma outra simbólica, quase sempre virtual e imaginária. A "função" principal da catarse seria justamente evitar a realização da violência real, substituindo-a por um violência simbólica. Seria tal assertiva que uniria as teorias "terapêuticas" e "perpetuadoras"...

Nesse sentido, as teorias "terapêuticas" seriam otimistas, visto implicarem que o torcedor sairia do espetáculo futebolístico, pelo menos temporariamente, sublimado da violência; já as teorias "perpetuadoras" seriam pessimistas, pois não é garantido que o torcedor saia purificado da violência -- na verdade, o mínimo que se garante é a realização simbólica da violência potencial ou real do torcedor. Tenta-se prevenir, assim, o risco da explosão concreta da violência, que colocaria em perigo o tecido social. Pode-se traduzir pragmaticamente tal visão da seguinte forma: diante do risco de violência concreta, é preferível a violência simbólica. E como se daria a catarse? Em outras palavras: qual seria a "metodologia" da purificação e/ou da perpetuação?

As respostas são variadas...

Talvez as mais comuns - tanto do lado das teorias "terapêuticas quanto do das "perpetuadoras" – sejam aquelas que relacionam o espetáculo futebolístico com o fenômeno da guerra; isto é, o futebol seria uma espécie de "guerra ritual" (Ver, por exemplo, Marc Perelman, "Le stade barbare, la fureur du spectacle sportif", Paris, Éditions Mille e une nuits, 1998). Assim, no espetáculo futebolístico, o torcedor faria parte ou assistiria a uma mimesis simbólica da guerra e, a partir dos rituais desse processo mimético e simbólico, purgaria ou reproduziria a violência social. E, de fato, não é difícil encontrar exemplos da mimesis: gritos de guerra das torcidas; metáforas guerreiras: atacante, ataque, contra-ataque, artilheiro, etc.; investimentos simbólicos em signos, tais como bandeiras, emblemas, insígnias; explosão de sentimentos e emoções de intensa carga agressiva, externados geralmente por expressões e gestos chulos, e por aí vai.

O futebol, desse modo, purgaria ou reproduziria a violência através da reprodução simbólica da atividade mais violenta da espécie humana: a guerra! O fut seria a "guerra realizada por outros meios"! "Terapêuticas" ou "perpetuadoras", as teorias da catarse conectariam organicamente o futebol ao fenômeno da violência. E a "materialidade" dessa mimesis seria principalmente os ritos típicos do jogo de bola -- sistemas de regras e cerimônias que "formatam" o fenômeno futebol.

E não falo de rituais à toa; afinal de contas, as teorias que se nutrem da teoria da catarse, ao tentarem compreender como ela se realiza, utilizam abundantemente conceitos provenientes da sociologia e da antropologia da religião -- parafraseando um etnólogo francês (ver Marc Augé, "Un sport ou un rituel", Manière de voir - Le Monde Diplomatique -, n°39, maio-junho 1998 ): a partida é um rito; a Igreja, o clube; a Cúria, os dirigentes, e os padres, os comentaristas esportivos...

Sendo uma religião profana, pode –se dizer que o futebol assume também a função do mito, no sentido de resolver as tensões, os conflitos e as contradições sociais –- que geram a violência -- no campo do imaginário, da fantasia, da substituição simbólica, já que tais questões não poderiam ser equacionadas na realidade.
O futebol parece ser, assim, uma guerra sem exércitos e uma religião sem Deus. Se boa parte do dito acima é pertinente e tem sua utilidade na análise do futebol, várias dúvidas e questões persistem (pelo menos, no meu espírito) e vale a pena examiná-las criticamente:

  • talvez um dos problemas de se imaginar um processo catártico purificador ou reprodutor seja o de se conceber o mecanismo cognitivo pelo qual se realiza a catarse. O que quero dizer é o seguinte: digamos que, por força do argumento, o futebol seja realmente uma "guerra ritual"; sendo assim, como o indivíduo (neste caso, o torcedor) interioriza tal processo simbólico de substituição? O processo de interiorização é consciente ou inconsciente? O mecanismo cognitivo aparenta-se à sugestão hipnótica?;
  • se sou um indivíduo violento, posso aventar que o futebol, como "guerra ritual", reproduziria ou mesmo estimularia a minha violência; contudo, mesmo sendo violento, a passagem do gesto (as diversas condutas ritualísticas que faço durante a partida de futebol) ao ato (um ato qualquer de violência) não é evidente e imediata -- um filme de ultraviolência tipicamente americano incita à violência? Ora, a discussão não é simples... E, num exemplo contrário, se sou um torcedor pacífico (como a imensa maioria dos torcedores...), o que acontece quando sou alvejado pela violência simbólica? Permaneço pacífico como tal, sublimado pelo espetáculo, ou fico feito uma jaritataca furiosa presa numa gaiola? Considerando as duas opções, o que acontece exatamente em mim? Sou sugestionado? Sou estimulado? Sou manipulado? Sou purificado? Sou alienado? Tudo indica que o processo catártico, segundo tais teorias, é consumado à minha revelia; mas, como todo processo inconsciente, seus mecanismos precisam ser decifrados e conhecidos, e até agora não o foram. Assim, considero as teorias da catarse ainda uma hipótese a ser demonstrada;
  • acredito que considerar o fut uma "guerra ritual" não é pertinente ou, simplesmente, não ajuda a entender o futebol como tal -- inclusive, vale o mesmo raciocínio na consideração do fut como uma religião profana. Não nego que possam existir elementos religiosos ou "guerreiros" no futebol; no entanto, discordo da redução do futebol a tais elementos ou, expressando-me de uma forma mais contundente, não concordo em se subsumir a autonomia do fut, enquanto fato social total, ao campo da guerra ou da religião. Assim como nem todo prazer tem um caráter sexual (como apregoa o pansexualismo freudiano), nem toda paixão ou violência tem um conteúdo religioso ou guerreiro, respectivamente;
  • se o fut é uma "guerra ritual" ou uma violência simbólica que substitui a violência social concreta, cabe uma pergunta relativamente ingênua: a maioria dos torcedores e daqueles que participam do mundo futebolístico têm uma "representação" do fut como uma "guerra ritual" ou uma violência simbólica? Minha hipótese (confesso que é baseada na intuição) é que não. Se tal hipótese é comprovada, invalida a teoria da catarse? Não, já que, aparentemente, o processo catártico seria inconsciente; logo, independente da opinião e das representações do torcedor. Nesse sentido, a representação do torcedor não serve como critério de verificação ou validação da hipótese da catarse, visto que o processo catártico é realizado à revelia do torcedor. Em suma, a opinião do torcedor vale pouca coisa, exceto para mostrar a disparidade entre sua consciência e os processos sociais que moldam sua prática e suas representações de forma inconsciente;
  • tudo bem, muitas vezes a verdade está oculta e vai de encontro às reflexões dos comuns dos mortais. Mas, outras vezes, o profundo está oculto, só que na superfície... Ou, como disse Oscar Wilde, "o verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível". E, se o "visível" aparece através das representações dos indivíduos, talvez seja interessante levar em conta a opinião de indivíduos que estão diretamente relacionados com o fenômeno em questão -- os torcedores e suas opiniões sobre o futebol --, e não considerar tais opiniões como ilusões a priori. Portanto, à revelia de sociólogos e antropólogos, os torcedores e aqueles que participam do mundo futebolístico "sabem", "entendem", "conhecem" e produzem "conhecimento" sobre o futebol;
  • pode-se apresentar inumeráveis exemplos de violência no futebol, e tal fato deve ser considerado; contudo, acho que a pergunta fundamental talvez seja a seguinte: por que a maioria absoluta das partidas de futebol no mundo inteiro terminam pacificamente e não causam distúrbio algum? Por que as conseqüências cotidianas do futebol são apenas esportivas e não políticas, ideológicas, éticas e étnicas? Convenhamos, não é um típico exagero "intelectual" considerar o futebol como uma "guerra feita por outros meios"?!;
  • as teorias que se nutrem do "paradigma" da teoria da catarse apresentam a seguinte premissa antropológica: a violência é um instinto básico do homem. Tal premissa é derivada de um velho mito fundador da modernidade: a violência é fundadora da cultura (sociedade). Tal mito foi canonizado pelos jusnaturalistas, advogados do "direito natural", e principalmente pela filosofia social de Hobbes. Provavelmente, é um mito enraizado noutro mais antigo ainda: a Doutrina do Pecado Original da tradição judaico-cristã. Afinal, a violência como "instinto" faz parte de nossas noturnas entranhas, endemoninhadas após a Queda (falo daquela "queda" primeva, a da maçã, e não da última - a Daquele Muro, que não deixa de ser uma pálida metáfora da primeira).

Considero a Doutrina do Pecado Original como uma das mais profundas "teorias" psicológicas do ser humano, sendo uma tradição de pensamento que vai de Stº Agostinho, Swift, e o escambau, até o maior moralista do século XX: Freud! Seria uma belíssima crítica a todo racionalismo ingênuo que acredita num poder quase divino da Razão, desconhecendo nossas "profundezas", lugar de tantos mistérios e desvios. Como disse um adepto da Doutrina, Pascal: "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Pois é, e a violência seria uma dessas razões misteriosas e refratárias à Razão...

Mas o problema não é o fato de se reconhecer a natureza misteriosa e irracional de nossas entranhas; o problema é outro: se a violência é fundadora da cultura ou da sociedade, ela seria anterior ao mundo propriamente humano; ela seria natural. A naturalização da violência é uma conseqüência direta do seu papel de fundadora da cultura humana -- sendo natural, é impossível mudar a natureza violenta do homem, exceto talvez através da... engenharia genética. Por isso a necessidade de instituições sublimatórias da violência; por isso a consideração do esporte e, em particular, o futebol, como uma dessas instituições; por isso a busca obsessiva de demonstrar que o fut é violento.

Prefiro enveredar por outro caminho: considero a violência como um fato cultural por excelência. Faz parte da vida social humana, não lhe sendo anterior. Seria uma potencialidade tipicamente humana, existindo virtualmente e em exemplos individuais - caso de uma sociedade baseada em valores pacíficos -, ou como determinação social fundamental - caso de uma sociedade como a da Alemanha Nazista. A violência não está inscrita na biologia humana e sim na sua cultura. Ela não é natural. Um leão ou outro mamífero superior não é violento; ele pode ser agressivo. A conexão da violência com a natureza biológica do homem dá-se justamente através do fenômeno natural da agressividade. A violência não deve ser confundida com a agressividade. Para existir violência, seria necessária a existência de uma sociedade humana, isto é, seria preciso a existência da linguagem, da cultura, da vida social e do... desejo. Sim, desejo. A violência é o desejo, explícito ou tácito, de destruição (ver a defesa da violência como desejo de destruição no livro de ensaios de Jurandir Freire Costa, "Violência e Psicanálise", Rio de Janeiro, Graal, 1984). O desejo, por mais que os sociobiólogos esperneiem, não existe no mundo não humano, nem como tal nas sociedades primatas. Chita jamais desejou, nem mesmo a Tarzan...

Assim, não concebo a priori o fut violento, embora este possa, dependendo do contexto, tornar-se assim; contudo, creio que um futebol indefinidamente violento definharia, pois sua contínua violência entraria em profundo conflito com suas regras que são explicitamente contra atos violentos. O futebol pode ser considerado agressivo, pois é um esporte de "contato", muitas vezes ríspido. Um zagueiro, quando comete uma falta, não é necessariamente violento. A falta é parte inevitável do jogo. Mas, se um técnico manda fazer as famosas faltas de contenção no meio do campo ou manda quebrar o craque do time adversário, tais faltas são violentas, pois houve premeditação, intenção e desejo de violência.

Quem torna o fut violento não seriam nossos instintos, e sim nós mesmos, inconscientemente ou conscientemente, aqui não importa, como agentes sociais de sentido e de desejo. Não herdamos a violência e sim a "construímos". Um dos primeiros passos para prevenir a violência seria assumi-la como potencialidade do humano. O apelo para que se acabe com a violência - no caso aqui, do futebol - é o apelo para que se acabe com uma situação que necessita de violência. Como todo valor da humanidade, a violência é indestrutível; pois, mesmo não "existindo" numa determinada realidade, sempre "habitará" os mundos da probabilidade e da possibilidade - como disse Gramsci, "a possibilidade não é a realidade, mas não deixa de ser uma realidade". A violência pode ser evitada ou mesmo protelada, sendo um preço a pagar exigido pelo "processo de civilização". A grande questão talvez seja, assim, lutar pelo adiamento desse pagamento.

Já, já continuo...


Notas sobre "futebol e violência" -- II

Notas sobre "futebol e violência" -- I


Artur Perrusi

4 comentários:

Anônimo disse...

O texo, mesmo longo pro meu gosto em blogue, é interessante.

Já a foto, é montagem, duma montagem dum garoto ingles num jogo.

Vejamos o restante.

Debalde e voltarei. (Y Juca Pirama)


Inté,
Murilo

Artur disse...

Grande Murilo, concordo contigo, para um blog, o texto é longo. Mas, como é um blog acadêmico, apostei que cabia um texto comprido (aliás, já tive que dividi-lo em três partes, dado seu tamanho). De todo modo, o que importa é que vc achou interessante.

Cacetada, não sabia que a foto era montagem. Achei curiosa a foto, mas não desconfiei de nada... Valeu pela informação.

Cynthia disse...

Tem mais, Arture? E o espírito de porco, ainda te perseguindo? RAR! Ou será Grr?

bj

Artur disse...

Tenho um medo medonho do Grr, viu?! Pensa o quê? Bjus. E tem mais, sim...