quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Sobre a Nobreza da Motivação na Produção Acadêmica


O motivo deste post é simples: Cynthia já escreveu três na minha frente e eu já não apareço mais na tela. Sou um cara vaidoso e acho isso intolerável, quero dizer, o fato de a professora Hamlin ser mais produtiva que eu. Sendo assim, vejamos se posso justificar de um modo mais nobre essas linhas.

Pois vejam, este será o terceiro post sobre romantismo.

Que diabos eu vejo de tão interessante nessa estória toda? A primeira coisa é que, para mim, o romantismo alemão tem se revelado extremamente fecundo para estudar os assuntos sobre os quais venho me debruçando nos últimos 5 anos. Os assuntos são todos relacionados às novas tecnologias da vida, à manipulação da natureza, à transformação, higienização dos corpos humanos. Geralmente os estudiosos deste campo partem da modernização do conceito de vida, natureza e corpo para discutir o significado cultural, político e existencial das biotecnologias nas sociedades industriais e pós-industriais.

Um exemplo: foi preciso que, a partir do século XVIII, o corpo fosse dissecado, reduzido a suas funções básicas, entendido como conjunto de engrenagens, antes que a medicina contemporânea pudesse se tornar uma questão de Estado. Sem as tecnologias da vida, a medicina, a psiquiatria, que entenderam o corpo de forma mecânica, não teria existido uma saúde pública, a conversão da sanidade dos indivíduos e das populações em questão de Estado. Do mesmo modo, apenas uma compreensão mecânica da natureza possibilitou ao capitalismo transformar a produção agrícola, a pecuária um negócio racional, previsível, rentável.

Hoje em dia, no entanto, a vida, a natureza passaram a ser compreendidas a partir de um novo paradigma: a cibernética e as tecnologias de informação e comunicação que lhe consubstanciam. Vida, natureza e corpo continuam a ser uma questão de Estado, naturalmente. Foucault acredita que esta seja a marca distintiva da política moderna. Um exemplo? Dou dois: a controvérsia em torno da pesquisa com células-tronco embrionárias, a liberação de seres transgênicos no meio ambiente. Nos dois casos, a questão já não é apenas dominar a mecânica da natureza, mas discutir as implicações que decorrem de uma compreensão informacional da vida. Os corpos, por exemplo, já não são pensados como totalidade que a medicina terá de tornar funcional, mas como possibilidade não definível de performances técnicas. Explico mais: hoje já não falamos apenas de ser saudável ou funcional, mas nosso corpo deve ser constantemente “atualizado” (do mesmo modo como um computador está uptodate) de acordo com as oportunidades disponíveis pela inovação tecnológica constante. O que é desejável depende do que tenhamos à nossa disposição nas farmácias. É claro que isso é uma realidade para poucos, assim como cirurgias plásticas também não podem ser pagas por muitas pessoas. Mas essa é a tendência da grande medicina.

Onde entra o romantismo nisso? O romantismo alemão é um importante esboço crítico da maneira como a ciência moderna passou a pensar a relação entre o ser humano e a natureza (poderia dizer, num sentido amplo, "a sua natureza"). Para pensadores como Schiller, Herder, a relação entre o humano e o natural não deve ser apenas uma relação de controle. Schiller fala da necessidade de aprendermos uma lição moral com a natureza. O que acho importante é como essas idéias definem certas possibilidades que temos atualmente para pensar criticamente o processo de comodificação da vida, ou de transformação da política em questão de administração econômica de corpos, vidas, natureza.

Um estudo do romantismo me dá pistas de algumas encruzilhadas importantes com as quais o pensamento crítico se depara ao pensar uma sociedade tecnológica. Que pistas são essas? Vocês terão de esperar os próximos posts, ou a publicação de um ensaio (monografia?) que estou escrevendo. Digo apenas o seguinte: um dos problemas mais sérios que as novas tecnologias da vida nos trazem é pensar aquilo que tem sido tão complicado de pensar na cultura ocidental: a relação do ser humano com a natureza.

(Por editar.)
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Jonatas Ferreira

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Humor e Modernidade ou: O Nascimento do Humor Moderno




Como parte das minhas reflexões acerca da relação entre humor e (anti?) epistemologia, gostaria de introduzir algumas questões que me permitirão “limpar o terreno” para mim mesma. Peço, portanto, paciência por parte de meus eventuais leitores e leitoras...

A separação entre um discurso sério e um discurso não-sério assumiu características distintivas na modernidade. De fato, pode-se pensar no humor, tal como o conhecemos hoje, como um fenômeno essencialmente moderno (o que, obviamente, não significa dizer que não existisse humor antes disso, apenas que ele tinha outras características). Até o século XVII, “humor” era um termo utilizado para se referir a uma disposição mental ou a um tipo específico de temperamento, segundo a doutrina médica dos gregos antigos que classificava os quatro tipos de humor que constituíam e regulavam o corpo: o sangue (alegria, glutonia, otimismo), a fleuma (indolência e apatia), a bile amarela (cólera e irritabilidade) e a bile negra (a melancolia).

A associação do humor com o cômico e o engraçado teve data e local de nascimento: o ano de 1682 na Inglaterra, quando, segundo o Oxford Dictionary, o termo foi utilizado pela primeira vez neste sentido específico. Embora tomado de empréstimo do francês (humeur), diversos autores franceses, de enciclopedistas como Diderot a romancistas como Victor Hugo, referem-se ao humor como algo especificamente inglês, cujo principal paradigma é, ironicamente, hoje associado a um irlandês: Jonathan Swift. A sátira de Swift, Uma Proposta Modesta, de 1729, representa uma crítica feroz e mordaz ao tratamento dispensado pelo governo inglês aos irlandeses ao sugerir que os ingleses comam as crianças irlandesas acompanhadas de couve-flor. De maneira geral, entretanto, o humor inglês é considerado a uma forma de ironia ao mesmo tempo séria e agradável, sentimental e satírica (Critchley, 2006: 72).

Não nos parece acaso que o primeiro registro do termo date de mais ou menos a mesma época do estabelecimento dos Estados nacionais e da afirmação da Inglaterra como uma nação comercial e colonial: é justamente aí que questões relativas a identidade e alteridade, com a conseqüente identificação e exclusão do outro, surgem com toda a força, como já demonstra Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo. É também neste período que a civilização passa a ser crescentemente associada com um controle cada vez mais estrito do corpo e dos sentimentos. Autores como Peter Burke e Norbert Elias argumentaram extensivamente sobre como as elites ascendentes da Renascença construíram sua identidade em torno da idéia de uma classe refinada capaz de disciplinar seus corpos, atribuindo grande valor à razão e classificando aquelas atividades relacionadas ao cômico como encarnações do caos e da desordem (Kotthoff, 2003). O humor está, portanto, estreitamente relacionado à emergência da consciência moderna.

Juntamente com as teses racialistas que servirão, um pouco mais tarde, de justificativa ao imperialismo, criam-se uma série de estereótipos raciais e étnicos que servirão de combustível para o riso moderno. Mais uma vez, percebe-se a ambigüidade e a ambivalência do humor e do riso: da crítica social de um Swift, que questionava os valores da nova civilização, ao etnocentrismo patente dos circos dos horrores, populares na Inglaterra e na França nos séculos XVII e XVIII, nos quais corpos deformados, negros e povos indígenas eram exibidos como aberrações da natureza, como monstruosos, incivilizados, ridículos (e risíveis).

Não surpreende, portanto, que, ao enfatizar a irracionalidade, mecanização dos corpos (Bergson, 1993 [1900]), a distorção das faces, o feio e o ridículo (Aristóteles, 1959), o cômico tenha sido cuidadosamente interditado a categorias sociais nas quais se valoriza o controle e a racionalidade, o belo e a modéstia, como é o caso de alguns grupos profissionais, no primeiro caso, e das mulheres, freqüentemente objetos e raramente sujeitos do humor. Mas as coisas têm mudado... no próximo post falarei acerca de algumas dessas mudanças. Paciência!

Cynthia

PS. Cansei dessas referências no meio do texto. Agora, vai comme il fault:

BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre o significado do cômico. Lisboa: Guimarães Editora, 1993 [1900].
CRITCHLEY, Simon. On Humour. Londres e Nova York: Routledge, 2006.
KOTTHOFF, Helga. Gender and Humor: An introduction. Journal of Pragmatics. Special Issue: Humor. Vol 37, no. 9, 2003.

sábado, 10 de novembro de 2007

Por uma Epistemologia do Humor




Desde a antiguidade clássica tem-se refletido sobre a natureza do humor e do riso como fenômenos que possibilitam algum tipo de compreensão acerca do mundo social. Filósofos, antropólogos e psicólogos têm produzido uma literatura relativamente extensa sobre o tema que, no entanto, recebeu pouca atenção sistemática por parte de sociólogos. O tema foi solenemente ignorado pelos chamados “pais fundadores” da sociologia e, ainda hoje, percebe-se uma lacuna significativa na produção sociológica, especialmente teórica, do humor.

Embora este não seja necessariamente o caso em relação ao riso, que pode ocorrer por razões estritamente psicológicas ou mesmo neurológicas, o humor é uma ação social cujo significado só pode ser compreendido a partir de uma estrutura social. O humor é relativo a práticas e valores de um grupo, sendo muitas vezes intraduzível e incompreensível sem a referência a contextos de significado específicos. Foi com base neste pressuposto que a antropóloga americana Donna Goldstein, em seu livro Laughter out of Place: Race, Class, Violence and Sexuality in a Rio Shantytown (University of California Press, 2003), dedicou-se a reconstruir os contextos de significado de piadas que, para ela, como estrangeira, não tinham graça nenhuma, a fim de compreender o significado de fenômenos como raça, classe, violência e sexualidade numa favela carioca. O que ela compreendeu como ninguém foi que, em um sentido importante, piadas são como pequenos ensaios antropológicos que possibilitam a revisão e a relativização das categorias de uma cultura ou sub-cultura ao confrontá-las com as de outra. Nas palavras de Henk Driessen (citado em Critchley, Simon. On Humour. Londres e Nova York, 2006: 65):

A antropologia compartilha com o humor a estratégia básica da “desfamiliarização”: o senso comum é rompido, o inesperado é evocado, objetos familiares são situados em contextos não-familiares ou mesmo chocantes a fim de tornar a audiência ou o leitor consciente de seus próprios pressupostos culturais.

Assim como a antropologia, a sociologia relativiza nossas rotinas da vida cotidiana ao submetê-las a um exame minucioso e também compartilha algo com o humor. Todas as coisas que consideramos dadas, nossas idéias, emoções e ações mais corriqueiras são dissecadas, analisadas e interpretadas. Na imagem memorável de Peter Berger, a sociologia nos confronta com uma visão precária da realidade e os sociólogos são como os bobos da corte que, de acordo com a tradição, seguravam um espelho e mostravam às pessoas aquilo que elas realmente eram, sem justificativas ou ideologias pomposas (Zijderveld, Anton. The Sociology of Humour and Laughter. Current Sociology, Vol 31, no. 3, pp. 1-103, 1983).

Diante disto, é curioso que a sociologia do humor tenha sido relativamente negligenciada. Ao se questionar sobre as possíveis causas dessa negligência, Michael Mulkay (On Humor: Its Nature and its Place in Modern Society. Nova York: Basil Blackwell, 1988) sugere que muitos sociólogos confundem o “não-sério” com o “trivial” e, portanto, não digno de investigação. Ao fazê-lo, desconsideram que é justamente a separação simbólica entre humor e a ação “séria” que possibilita que os atores sociais por vezes se utilizem dele para propósitos bastante sérios e que torna o humor uma área essencial de investigação sociológica.

Ao ser definido como exterior ao discurso sério, o humor permite que os atores violem simbolicamente as normas que definem o que é certo, bom, justo, belo (Koller, Michael. Humor and Society: Explorations in the sociology of humor. Houston: Cap and Gown Press, 1988). Não é por acaso que grupos localizados nas “margens” de uma sociedade constituem, com freqüência, o alvo predileto do humor, como é o caso de negros, gays, mulheres, grupos étnicos minoritários etc. De fato, pode-se argumentar que a maior parte do humor produzido é deste tipo. Trata-se, para muitos autores, baseados em Thomas Hobbes, do riso do dominador sobre o dominado, um riso que reafirma sutilmente a hierarquia social ou a superioridade dos próprios valores de uma forma socialmente aceitável. Pode, em casos como estes, ser considerado um sintoma da repressão social cujo efeito visível é, para tomar emprestada uma expressão de Freud, o “retorno do recalcado”.

Além disso, é bem conhecido o uso do humor como forma de expor a relatividade ou mesmo o absurdo das práticas sociais, dos valores e dos esquemas cognitivos aceitos por uma comunidade. Em sua introdução a As Palavras e as Coisas, por exemplo, Michel Foucault afirma que aquele livro nasceu surgiu do riso provocado por um texto de Jorge Luiz Borges que cita

‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde está escrito que ‘os animais se dividem em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães embalsamados, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que nem de longe parecem moscas’.


Ao rir de si próprios, especialmente por meio de um humor autodepreciativo, diversos grupos revelam uma capacidade de auto-reflexão por meio da qual determinados valores e práticas são colocados em questão.

Também é bem conhecido o uso de determinados tipos de humor, como a sátira, por exemplo, em ataques mordazes às estruturas de poder vigentes, numa espécie de desafio da autoridade. Não parece por acaso que acaso que regimes autoritários tenham gerado uma profusão de humoristas e de piadas anti-governo, como foi o caso da ditadura militar no Brasil e do comunismo soviético. Um caso em questão refere-se a um tipo de piada conhecido como “perguntas à rádio Yerevan”, endereçadas a uma estação de rádio imaginária na Armênia. As piadas consistiam num ataque frontal à ideologia comunista (Citado em Berger, Peter. Redeeming Laughter: The comic Dimension of Human Experience. Berlin e Nova York: Walter de Gruyter, 1997: 53):

Pergunta: O que é o capitalismo?
Resposta: A exploração do homem pelo homem.
Pergunta: O que é o comunismo?
Resposta: O inverso.

Violação simbólica e potencial crítico, por um lado; reprodução social, por outro. Eis o caráter paradoxal do humor como algo que pode afirmar negando, reproduzir ao mesmo tempo em que coloca a nu as estruturas de dominação, subverter ao transformar a ação séria em objeto do riso. Seja como forma de crítica social, seja como reforço de normas e padrões sociais estabelecidos, o estudo do humor pode se revelar como uma ferramenta importante para a compreensão de mecanismos sociais relativos à criação, à reprodução ou à mudança em sistemas de classificação social, políticas de identidade, subculturas de grupo, formas de dominação social e um grande número de temas caros à sociologia contemporânea.

Mas o que isso tem que ver com metodologia? Outro dia explico, que agora eu tenho outras coisas para fazer...

Cynthia Hamlin