"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sábado, 10 de novembro de 2007
Por uma Epistemologia do Humor
Desde a antiguidade clássica tem-se refletido sobre a natureza do humor e do riso como fenômenos que possibilitam algum tipo de compreensão acerca do mundo social. Filósofos, antropólogos e psicólogos têm produzido uma literatura relativamente extensa sobre o tema que, no entanto, recebeu pouca atenção sistemática por parte de sociólogos. O tema foi solenemente ignorado pelos chamados “pais fundadores” da sociologia e, ainda hoje, percebe-se uma lacuna significativa na produção sociológica, especialmente teórica, do humor.
Embora este não seja necessariamente o caso em relação ao riso, que pode ocorrer por razões estritamente psicológicas ou mesmo neurológicas, o humor é uma ação social cujo significado só pode ser compreendido a partir de uma estrutura social. O humor é relativo a práticas e valores de um grupo, sendo muitas vezes intraduzível e incompreensível sem a referência a contextos de significado específicos. Foi com base neste pressuposto que a antropóloga americana Donna Goldstein, em seu livro Laughter out of Place: Race, Class, Violence and Sexuality in a Rio Shantytown (University of California Press, 2003), dedicou-se a reconstruir os contextos de significado de piadas que, para ela, como estrangeira, não tinham graça nenhuma, a fim de compreender o significado de fenômenos como raça, classe, violência e sexualidade numa favela carioca. O que ela compreendeu como ninguém foi que, em um sentido importante, piadas são como pequenos ensaios antropológicos que possibilitam a revisão e a relativização das categorias de uma cultura ou sub-cultura ao confrontá-las com as de outra. Nas palavras de Henk Driessen (citado em Critchley, Simon. On Humour. Londres e Nova York, 2006: 65):
A antropologia compartilha com o humor a estratégia básica da “desfamiliarização”: o senso comum é rompido, o inesperado é evocado, objetos familiares são situados em contextos não-familiares ou mesmo chocantes a fim de tornar a audiência ou o leitor consciente de seus próprios pressupostos culturais.
Assim como a antropologia, a sociologia relativiza nossas rotinas da vida cotidiana ao submetê-las a um exame minucioso e também compartilha algo com o humor. Todas as coisas que consideramos dadas, nossas idéias, emoções e ações mais corriqueiras são dissecadas, analisadas e interpretadas. Na imagem memorável de Peter Berger, a sociologia nos confronta com uma visão precária da realidade e os sociólogos são como os bobos da corte que, de acordo com a tradição, seguravam um espelho e mostravam às pessoas aquilo que elas realmente eram, sem justificativas ou ideologias pomposas (Zijderveld, Anton. The Sociology of Humour and Laughter. Current Sociology, Vol 31, no. 3, pp. 1-103, 1983).
Diante disto, é curioso que a sociologia do humor tenha sido relativamente negligenciada. Ao se questionar sobre as possíveis causas dessa negligência, Michael Mulkay (On Humor: Its Nature and its Place in Modern Society. Nova York: Basil Blackwell, 1988) sugere que muitos sociólogos confundem o “não-sério” com o “trivial” e, portanto, não digno de investigação. Ao fazê-lo, desconsideram que é justamente a separação simbólica entre humor e a ação “séria” que possibilita que os atores sociais por vezes se utilizem dele para propósitos bastante sérios e que torna o humor uma área essencial de investigação sociológica.
Ao ser definido como exterior ao discurso sério, o humor permite que os atores violem simbolicamente as normas que definem o que é certo, bom, justo, belo (Koller, Michael. Humor and Society: Explorations in the sociology of humor. Houston: Cap and Gown Press, 1988). Não é por acaso que grupos localizados nas “margens” de uma sociedade constituem, com freqüência, o alvo predileto do humor, como é o caso de negros, gays, mulheres, grupos étnicos minoritários etc. De fato, pode-se argumentar que a maior parte do humor produzido é deste tipo. Trata-se, para muitos autores, baseados em Thomas Hobbes, do riso do dominador sobre o dominado, um riso que reafirma sutilmente a hierarquia social ou a superioridade dos próprios valores de uma forma socialmente aceitável. Pode, em casos como estes, ser considerado um sintoma da repressão social cujo efeito visível é, para tomar emprestada uma expressão de Freud, o “retorno do recalcado”.
Além disso, é bem conhecido o uso do humor como forma de expor a relatividade ou mesmo o absurdo das práticas sociais, dos valores e dos esquemas cognitivos aceitos por uma comunidade. Em sua introdução a As Palavras e as Coisas, por exemplo, Michel Foucault afirma que aquele livro nasceu surgiu do riso provocado por um texto de Jorge Luiz Borges que cita
‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde está escrito que ‘os animais se dividem em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães embalsamados, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que nem de longe parecem moscas’.
Ao rir de si próprios, especialmente por meio de um humor autodepreciativo, diversos grupos revelam uma capacidade de auto-reflexão por meio da qual determinados valores e práticas são colocados em questão.
Também é bem conhecido o uso de determinados tipos de humor, como a sátira, por exemplo, em ataques mordazes às estruturas de poder vigentes, numa espécie de desafio da autoridade. Não parece por acaso que acaso que regimes autoritários tenham gerado uma profusão de humoristas e de piadas anti-governo, como foi o caso da ditadura militar no Brasil e do comunismo soviético. Um caso em questão refere-se a um tipo de piada conhecido como “perguntas à rádio Yerevan”, endereçadas a uma estação de rádio imaginária na Armênia. As piadas consistiam num ataque frontal à ideologia comunista (Citado em Berger, Peter. Redeeming Laughter: The comic Dimension of Human Experience. Berlin e Nova York: Walter de Gruyter, 1997: 53):
Pergunta: O que é o capitalismo?
Resposta: A exploração do homem pelo homem.
Pergunta: O que é o comunismo?
Resposta: O inverso.
Violação simbólica e potencial crítico, por um lado; reprodução social, por outro. Eis o caráter paradoxal do humor como algo que pode afirmar negando, reproduzir ao mesmo tempo em que coloca a nu as estruturas de dominação, subverter ao transformar a ação séria em objeto do riso. Seja como forma de crítica social, seja como reforço de normas e padrões sociais estabelecidos, o estudo do humor pode se revelar como uma ferramenta importante para a compreensão de mecanismos sociais relativos à criação, à reprodução ou à mudança em sistemas de classificação social, políticas de identidade, subculturas de grupo, formas de dominação social e um grande número de temas caros à sociologia contemporânea.
Mas o que isso tem que ver com metodologia? Outro dia explico, que agora eu tenho outras coisas para fazer...
Cynthia Hamlin
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13 comentários:
Sem querer fazer um comentário freudiano - ou sem ter capacidade intelectual para isso - vou falar o que me veio à cabeça depois de ler seu texto. Na verdade, foi o que mais gostei, talvez por se tratar de humor.
Estive pensando: o humor é diretamente ligado à perversão. Quando você é meu objeto de riso, Cynthia, como será que você enxerga a agressividade que há no meu ato? Será que há? Creio que meu amigo Freud confirmaria.
E os sonhos? Os sonhos podem ser compostos de elementos cômicos, podem sofrer o mesmo processo de elaboração que tem o humor.
Seria o sonho uma ação do humor?
Seria o humor uma fuga? Uma defesa?
Coitado do humor, Cys. Ele alivia a realidade. Ele NOS alivia da realidade. É terapêutico. Até o humor sem graça funciona, porque nos comove a sua tentativa de fazer rir.
"A junção de dois termos produz efeito cômico." Pense nessa frase das formas mais criativas possíveis. Criatividade e humor estão muito relacionados. Escrevendo, agora, tive idéias para escrever mais coisas. Não quero fazer desse comentário um "quase-post". Até porque, também tenho um blog para dar conta. Você aqui, falando sociologicamente. Eu lá, falando de-sen-fre-a-da-men-te...
Roubo-te as teorias. Quer roubar um pouco do humor? Antes, quero um pouco do teu, lascivo.
Beijos!
Muito bons, post de Cynthia e comentário de Geninha Paiva. Apenas um comentário: acho que analisando as situações em que o humor aparece poderíamos chegar a algo como uma tipologia do humor. Bergson tentou isso, de certo modo, por exemplo. E tentou também uma explicação metafísica para o humor: o cômico é uma explosão de vitalidade diante da perspectiva de mecanização da existência - este seria o fundo comum às diversas formas de humor. Sei que Cynthia estaria mais interessada em uma sociologia do humor que em uma metafísica ou ontologia do humor. A mim, como a SC, interessa a forma como o humor confronta o trágico da existência. Conheci Critchley em uma palestra e, por volta de 1997, ele falava algo mais ou menos assim: "durante séculos a filosofia ocidental foi o lugar do trágico; precisamos falar agora de uma filosfia mínima, de uma filosofia que fale a partir do cômico". Conviver com a ambigüidade da existência - tão boa e tão terrível. O cômico seria o lugar onde o mecânico e o vital podem conviver por alguns instantes(e não apenas uma resposta vitalista à mecanização), sabedoria e tolice, pompa e ridículo, o mais nobre e o mais vil. Evidentemente, por ser precário, ambíguo, o humor também pode ser intolerante, preconceituoso etc. Mas o cômico é como o poético, escapa sempre quando pretendemos explicá-lo. Conclusão que - diante da pretensão de meu comentário - chega a ser patética.
Jonatas
Minha cara Geninha, meu caro Jonfer,
Obrigada pelos comentários. É enlouquecedor como podemos olhar para essas questões por todos esses ângulos que vocês sugerem e, ainda assim, ver sentido em todos eles. Tenho horror a essa sensação de fragmentação e fluidez, embora não consiga fugir dela. Desconfio que a culpa é de Heraldo. Peste! Vou perguntar a Eduarda como ela lida com isso...
Mas, voltando ao que interessa, a posição de Freud em relação ao humor e ao riso é fascinante. De fato, ele parece ter duas posições distintas mas que, percebidas a partir da evolução de sua obra, consistem num todo coerente. O ensaio dele sobre a piada (ou o chiste) deriva de tentativa de estabelecer a existência do inconsciente. Em termos metodológicos, trata-se de estabelecer a existência de um objeto não diretamente acessível à observação empírica (o inconsciente) a partir dos seus efeitos observáveis (a piada). Neste sentido, creio que existe um paralelo importante entre as piadas e os sonhos. E dado que (surpresa!) as piadas são consideradas a partir de uma etiologia sexual (portanto, de desejos reprimidos), não é surpreendente que ele perceba algo como o riso causado por uma piada homofóbica como uma agressão (inconsciente) ao objeto de nosso desejo (também inconsciente, dado que reprimido). É por isso que a piada e o riso são interpretadas, no ensaio sobre o chiste, como uma forma de agressão...
Mas o mais interessante dele é o artigo, de 1928, sobre o humor. Diferentemente da piada, o humor é percebido como fonte de criatividade e, o que é mais importante de um ponto de vista psicanalítico, como uma percepção do superego como uma instância não apenas repressora, mas criadora e também alentadora. Renato Mezan tem um artigo muito interessante sobre isso, embora me falte a referência porque um amigo meu (e da onça) seqüestrou meu livro... Mas, para resumir um longo argumento, uma das fontes importantes para esta idéia é o artigo de Freud sobre o narcismo, onde ele fala da melancolia como uma perda do objeto (como na morte), mas quando ninguém foi perdido. O que, então, se perdeu na melancolia? A que perda ela é uma resposta? Parece-me que à perda do próprio ego, que se torna um objeto (portanto passível de ser perdido) com a diferenciação entre ego e superego.
E onde entra o humor, dado que a questão é a melancolia? Na possibilidade de o ego se tornar objeto do superego, entendido agora como uma espécie de parte "madura" e benevolente de nós próprios quando nos capacita a rirmos de nós mesmos - especialmente com o humor auto-depreciativo (e Woody Allen é o representante máximo dessa tradição).
Este tipo de humor é investigado no artigo mencionado e lembra muito as histórias compiladas por André Breton em sua Antologia do Humor Negro: Na manhã em que seria executado, um prisioneiro olha para o céu e exclama: "A semana está começando otimamente". Trata-se do superego olhando para o ego e rindo dele ao afirmar algo como "Veja! Aí está o mundo, que parece tão perigoso! Ele é apenas uma brincadeira de criança, bem passível de se fazer graça dele". De certa forma, um alívio da dura realidade...
Quanto a Bergson, acho a perspectiva dele excessivamente funcionalista. Mas isso são outros quinhentos... E termino com uma citação de Nietzche, roubada do livro do Simon Critchley:
"Talvez eu saiba melhor porque apenas o homem [sic] ri: apenas ele sofre tão profundamente a ponto de ter tido que inventar o riso. O animal mais infeliz e mais melancólico é, como convém, o mais alegre."
Taí um bom ponto de partida, oferecido pelo teórico da tragédia, para uma filosofia do cômico...
Cynthia
Ah, Jonfer!
Thomas Leithäuser tá chegando aqui no fim do mês e, a pedido meu, vai discutir comigo os artigos de Freud, os de Helmuth Plessner e a terceira crítica de Kant (a propósito, sua mula teimosa, a teoria do riso de Kant está na terceira crítica, sim!). Que tal a gente pedir para ele apresentar um seminário na pós-graduação sobre a relação entre estética e epistemologia em Kant, usando o humor como exemplo? Acho que pode cair como uma luva para as suas reflexões sobre o romantismo.
E, ao contrário do que você pensa, meu interesse por esse tema está justamente nesta fronteira, e não em uma sociologia do humor...
E então, topas? A gente pode chamar Dirceu para contribuir com o material empírico...
C.
Cynthia,
Apenas acho que sua resposta deveria ser promovida a post. Pensei em fazer isso por minha conta, mas não ousei. Quanto ao humor na terceira crítica, ainda é para mim um profundo mistério. Se Thomas topar, com certeza aprenderei um bocado. Noves fora: como já falei mais de uma vez, tenho um amigo que está trabalhando o humor na psicanálise - terminando um doutorado com Joel Birman. Acho que você poderia trocar umas duas palavras com ele. Jonatas
Jonfer,
Parágrafo 54 da Crítica da Faculdade do Juízo ("Observação"). Pelo que entendi, o riso (assim como a música!) significa entendimento zero. O limite inferior da estética: ligado ao afeto e ao corpo, não ao pensamento. Agora danou-se...
Fiquei matutando se não dá para fazer uma relação com a "vontade de poder"... Preciso de umas aulas, beibi.
Cynthia
Cynthia,
Perdeu ontem a palestra de Roberto Machado sobre "os romãnticos alemães" e a tragédia na modernidade. Foi muito legal.
ei, to gostando mto do blog de vcs! até da trilha sonora. são vcs q escolheram essa musica dos sapatos? muuuuito boa. e o pato coelho tbm me foi assaz curioso... um abraço nos 3
ah, a proposíto esse "anonimo" sou eu, veridiana. a palestra sobre o trágico na modernidade foi mto bacana, mesmo sem q eu saiba porra nenhuma de schiller...
Pois é, Veri, já ouvi diversos comentários sobre esta palestra do Roberto Machado e parece que foi mesmo muito boa. O jeito agora é me contentar com os textos dele, pelo menos até ele aparecer por aqui de novo...
E parabéns pelo resultado da primeira fase da seleção do mestrado. Boa sorte nas provas!
Cynthia
sou estudiosa do humor e sinto a ausência de Pirandello nas suas referências, sobretudo a noção de estranhamento. Para pensar a condição agressiva do humor, a meu ver nada mais pertinente que as reflexões de Peter Gay e Le Goff. Aliás, enquanto a sociologia passou despercebido a condição política do humor, para nós historiadores, este já vem sendo objeto de estudo e deleite há um bom tempo. Pra finalizar, mas juro que não ou me estender, discordo da assertiva de que o humor é moderno. Talvez Bakhtin, Peter Burke e Minois, já tenham apresentado material suficiente para que essa questão seja repensada. Pode-se falar numa definição social do humor a partir da modernidade, mas sua função social antecede a modernidade.
É isso. adelante!
Conceição,
Muito obrigada pelos seus comentários e espero poder contar com a sua ajuda de vez em quando. Como posso conseguir um contato seu?
Quanto aos autores que você cita, conheço um pouco Pirandello e gostei muito do que li. O seu Um, Nenhum, Cem Mil está na minha lista bibliográfica para este trabalho. Não sabia que a idéia de estranhamento era um "conceito", embora tenha sido justamente isto o que me chamou atenção neste livro (a marca no nariz) e que me permite fazer uma ligação com a epistemologia. Existe algo mais dele que eu devesse ler? Algum lugar onde esta noção seja desenvolvida? Peter Gay, outro autor de quem gosto muito, também está sendo devidamente "dissecado", embora me pareça que a sua perspectiva enfatise o primeiro artigo de Freud e não dê conta do texto de 1928, estou errada?
Quanto a Minois, Peter Burke e Bakhtin, embora concorde que seus trabalhos sejam importantíssimos (também já foram devidamente lidos e anotados - com a exceção de Burke, que ainda não tive acesso), acho que a perspectiva deles se aplica mais à idéia do riso do que ao que estou tentando chamar de humor. O que, claro, me leva à sua crítica em relação a esta noção como algo moderno. Bem, esta é uma hipótese de trabalho que, acredito, pode ser sustentada. Na minha visão, a noção de carnavalização, por exemplo, é muito diferente da noção de humor (moderno, se eu quiser ser redundante). Creio que a equivalência entre humor e riso pode ser mantida apenas numa perspectiva funcionalista, que estou tentando evitar por uma série de razões sobre as quais podemos conversar, se você quiser.
De qualquer forma, fico grata pelos seus comentários e espero poder contar com eles no futuro. Deixo o meu contato para o caso de você se dispor a me contactar:
cynthiahamlin@globo.com
Abraço,
Cynthia
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