Como parte das minhas reflexões acerca da relação entre humor e (anti?) epistemologia, gostaria de introduzir algumas questões que me permitirão “limpar o terreno” para mim mesma. Peço, portanto, paciência por parte de meus eventuais leitores e leitoras...
A separação entre um discurso sério e um discurso não-sério assumiu características distintivas na modernidade. De fato, pode-se pensar no humor, tal como o conhecemos hoje, como um fenômeno essencialmente moderno (o que, obviamente, não significa dizer que não existisse humor antes disso, apenas que ele tinha outras características). Até o século XVII, “humor” era um termo utilizado para se referir a uma disposição mental ou a um tipo específico de temperamento, segundo a doutrina médica dos gregos antigos que classificava os quatro tipos de humor que constituíam e regulavam o corpo: o sangue (alegria, glutonia, otimismo), a fleuma (indolência e apatia), a bile amarela (cólera e irritabilidade) e a bile negra (a melancolia).
A associação do humor com o cômico e o engraçado teve data e local de nascimento: o ano de 1682 na Inglaterra, quando, segundo o Oxford Dictionary, o termo foi utilizado pela primeira vez neste sentido específico. Embora tomado de empréstimo do francês (humeur), diversos autores franceses, de enciclopedistas como Diderot a romancistas como Victor Hugo, referem-se ao humor como algo especificamente inglês, cujo principal paradigma é, ironicamente, hoje associado a um irlandês: Jonathan Swift. A sátira de Swift, Uma Proposta Modesta, de 1729, representa uma crítica feroz e mordaz ao tratamento dispensado pelo governo inglês aos irlandeses ao sugerir que os ingleses comam as crianças irlandesas acompanhadas de couve-flor. De maneira geral, entretanto, o humor inglês é considerado a uma forma de ironia ao mesmo tempo séria e agradável, sentimental e satírica (Critchley, 2006: 72).
Não nos parece acaso que o primeiro registro do termo date de mais ou menos a mesma época do estabelecimento dos Estados nacionais e da afirmação da Inglaterra como uma nação comercial e colonial: é justamente aí que questões relativas a identidade e alteridade, com a conseqüente identificação e exclusão do outro, surgem com toda a força, como já demonstra Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo. É também neste período que a civilização passa a ser crescentemente associada com um controle cada vez mais estrito do corpo e dos sentimentos. Autores como Peter Burke e Norbert Elias argumentaram extensivamente sobre como as elites ascendentes da Renascença construíram sua identidade em torno da idéia de uma classe refinada capaz de disciplinar seus corpos, atribuindo grande valor à razão e classificando aquelas atividades relacionadas ao cômico como encarnações do caos e da desordem (Kotthoff, 2003). O humor está, portanto, estreitamente relacionado à emergência da consciência moderna.
Juntamente com as teses racialistas que servirão, um pouco mais tarde, de justificativa ao imperialismo, criam-se uma série de estereótipos raciais e étnicos que servirão de combustível para o riso moderno. Mais uma vez, percebe-se a ambigüidade e a ambivalência do humor e do riso: da crítica social de um Swift, que questionava os valores da nova civilização, ao etnocentrismo patente dos circos dos horrores, populares na Inglaterra e na França nos séculos XVII e XVIII, nos quais corpos deformados, negros e povos indígenas eram exibidos como aberrações da natureza, como monstruosos, incivilizados, ridículos (e risíveis).
Não surpreende, portanto, que, ao enfatizar a irracionalidade, mecanização dos corpos (Bergson, 1993 [1900]), a distorção das faces, o feio e o ridículo (Aristóteles, 1959), o cômico tenha sido cuidadosamente interditado a categorias sociais nas quais se valoriza o controle e a racionalidade, o belo e a modéstia, como é o caso de alguns grupos profissionais, no primeiro caso, e das mulheres, freqüentemente objetos e raramente sujeitos do humor. Mas as coisas têm mudado... no próximo post falarei acerca de algumas dessas mudanças. Paciência!
Cynthia
PS. Cansei dessas referências no meio do texto. Agora, vai comme il fault:
BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre o significado do cômico. Lisboa: Guimarães Editora, 1993 [1900].
CRITCHLEY, Simon. On Humour. Londres e Nova York: Routledge, 2006.
KOTTHOFF, Helga. Gender and Humor: An introduction. Journal of Pragmatics. Special Issue: Humor. Vol 37, no. 9, 2003.
9 comentários:
Que pés feios da gota serena!Nem o fato de eles serem tão sorridentem (belo sorriso)os salva. Jonatas
Muito legal o Blog!
Adorei todos os posts!
queria fazer uma perguntinha. Nada sobre humor, é que estou pensando em comprar um bom dicionario de sociologia e não sei qual escolher...
Pedro
Prezado Pedro,
Obrigada pelo comentário.
Eu gosto muito do Dicionário do Pensamento Social do Século XX, de William Outhwaite e Tom Bottomore. Embora não seja um dicionário muito introdutório, é para a vida toda.
Cynthia
ha ha ha! Isso porque Jonatas não reparou no pé de junto, o coadjuvante da foto que, além de feio, é enrugado. ha ha ha!
Tudo bem, parou de brincadeira...
Gostei do texto, Cys. Queria ver um texto seu, sem academicismos ou referências teóricas. O escrever por escrever, bem anárquico. (Tudo bem, sei que esse blog é profissional... Mas vc poderia abrir uma exceção.)
Ou então, ma chérie, já que estamos falando sobre humor, poderia escrever sobre Chaplin.
Humor em Psi daria uma boa TCC, não? Ai, que vida complicada...
Beijos!
Geninha,
Ma che cazzo dicei?!! O cazzo é um blog sério! Textos anárquicos, só os comentários de Jonatas.
E parem de fazer referências pouco elogiosas aos pés da foto: são pés recém-nascidos, ainda não formados...
Beijo,
C.
Cynthia,
Sei que o blog é sério. Mas, com esses pés dantescos, quem imagina que seja, não é? E eles não são recém-nascidos, beibi. Meus pés eram lindos bolinhos de carne rosa quando nasci.
(juro que foi a última piadinha a respeito dos seus queridos pés, digo, dos pés da imagem, digo, ahhhh! Isso aqui está muito dúbio)
tchau!
Besos,
G.
Gostei da foto dos pés, principalmente do enrugadinho(belos sorrisos), representam bem o humor, só não gostei muito do texto=(, pelo tema a ser abordado ele deveria ser menos academicista e mais humorístico=).
Cynthia seu texto é muito bom, claro, bem escrito.
Na Grécia antiga já se denegria a alteridade e reafirmava a identidade do grupo dos que proferia o humor. Ainda não havia estado moderno... Havia totalitarismos e estados "civilizados" e "bárbaros".
Não creio que o humor provoque uma anti epistemologia. Talvez uma epsitemologia indireta, negativa, expressando um objeto pelo que ele não é... Como inicia-se geralmente um processo educativo... Sei o que isso não é...
Na Roma antiga num enterro iam na frente as carpideiras chorando as honras do morto, no meio iam os amigos, familiares e conhecidos. No final iam os comediantes debochando do morto, falando da sua avareza, sua feiúra e vaidade vã.
Os povos "primitivos" (ver Campbell), nos atos religiosos faziam atos de comicidade. Isso fazia parte da "epistemologia" religiosa. O mensageiro dos deuses gregos e yorubás eram humoristas, digo comedianets, respectivamente Hermes e Exu.
Por que métodos indiretos pra dizer que tipo de verdade? A verdade das sombras, do secreto, onde os acordos sociais são engendrados?
E as províncias finitas de significado?
Sei que ao teu lado existe uma abóbada de cristal invisível, a música, a ficção, o humor, conseguem nos transportar para dentro dela e lá operam "outras" leis "epistemologicas". Creio que esta é a epistemologia que em parte é necessária para a elite educar os homens de bronze.
E por fim minha interrogação por que o jornal moderno ao lado dos sérios editoriais, gasta tanto esforço em editar charges humoradas. Que significado se institui com o uso dos editoriais com as charges?
Queria contar uma piada ilustrativa, mas tenho sono e ela são longas...
O "galo pelveusso e o galo bom"... Outro dia eu conto. "O melhor soldado do mundo é o brasileiro". Outro dia, juro.
Dirceu Tavares um ex-primitivo
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