domingo, 13 de abril de 2008

Borges não joga dados com o universo: uma crítica anti-pós da ironia vazia (parte II)



Os processos anteriormente descritos apontam para uma mudança importante na forma como o humor é socialmente percebido e utilizado. O uso do humor em áreas que tradicionalmente se pretendem sérias e a representação de atores anteriormente excluídos desta prática podem sugerir um processo de reflexividade social segundo o qual valores tradicionais ligados à ética, à estética, ao conhecimento e à própria lógica da produção capitalista são questionados e modificados. Para alguns autores, esta maior tolerância tem relação com mudanças culturais mais amplas que vêm tomando forma desde os anos de 1970 e que têm possibilitado a hegemonia de um tipo específico de humor: a ironia. De maneira geral, a ironia pode ser caracterizada como um tipo de discurso cuja implicação intencional é o oposto do sentido literal das palavras ou, dizendo de maneira mais simples, um discurso no qual se profere justamente o oposto do que se quer dizer (Rappoport, 2005: 68).

Como todo discurso a ironia não se reduz ao discurso verbal: a arte pop de um Andy Warhol ou de um Roy Lichtenstein podem ser interpretadas como afirmações extremamente irônicas sobre o significado da arte e da “alta cultura” em geral; a anti-epistemologia de Richard Rorty é definida por ele próprio como uma forma de ironia que coloca em evidência o caráter supostamente pragmático (e utilitário) do conhecimento.

A genialidade de um ironista como Borges reside justamente em sua capacidade de arrancar gargalhadas de pensadores como Foucault e, dessas gargalhadas, dar à luz obras como As Palavras e as Coisas. Ao servir de espelho aos nossos pressupostos, a ironia de Borges reflete significados que escapam à irreflexão do observador. Mas, além da reflexão por parte de quem observa, é preciso ser capaz de gerar a imagem, o que nem sempre é fácil. Isto porque a ironia é um tipo de humor cerebral, plena de jogos de linguagens. Por ser cerebral, uma de suas condições de possibilidade está intimamente ligada à existência de um cérebro (funcional), o que, convenhamos, nem sempre é o caso. Segundo, e dada a existência do cérebro, é preciso ter a capacidade de sair do próprio jogo de linguagem e refletir outras formas de vida.

Mas há esperança! A teoria da modernização reflexiva, desenvolvida por autores como Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Beck (1994), radicaliza as conseqüências da modernidade ao estender para a esfera cotidiana o questionamento acerca dos fundamentos da modernidade. Este tipo de reflexividade, inicialmente institucional, é acompanhado por uma reflexividade individual que deriva da própria diminuição das restrições culturais impostas pela religião, pela tradição e pela moral convencional, e das restrições estruturais relativas a classe, status, nação, gênero etc. Em outros termos, à medida que as formas de vida tradicionais perdem parte de sua força, os indivíduos podem, em princípio pelo menos, refletir sobre a vida que gostariam de levar e tomar uma série de decisões (Vandenberghe, 2005). Nada de decisões com base num lance de dados, portanto: a modernização reflexiva é a imagem perfeita de Borges segurando o espelho para Foucault.

Mas o espelho de Borges nos mostra outras incongruências. Entre a reflexividade e a cegueira, existem diversas formas de ironia (e também de ceticismo) geradas pela erosão da credibilidade e da autoridade de instituições tradicionais como é o caso da ciência, da medicina, da arte, da religião etc. Este fenômeno é central àquilo que muitos autores denominam de pós-modernidade e que, segundo Fredric Jameson (1993: 27), refere-se a:

um conceito periodizante cuja função é correlacionar a emergência de novos aspectos formais da cultura com a emergência de um novo de tipo de vida social e com uma nova ordem econômica – aquilo que muitas vezes se chama, eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou de consumo, sociedade da mídia ou dos espetáculos, ou de capitalismo multinacional.

Para Jameson, este período perdeu seu senso de humor porque, no pastiche, sua forma cultural dominante, impera uma espécie de “ironia vazia” (Ibid.: 29). De fato, diversos autores têm se referido à sociedade contemporânea ou pós-moderna como uma sociedade do entretenimento, da estetização da vida social, da política espetáculo e da ditatura do riso (Minois, 2003). A “sociedade humorística” descrita por Gilles Lipovetski em seu A Era do Vazio é caracterizada como:

um novo estilo descontraído e inofensivo, sem negação nem mensagem (...) Ele caracteriza o humor da moda, do texto jornalístico, dos jogos radiofônicos e televisivos, do bar, de numerosos BD. O cômico, longe de ser a festa do povo ou do espírito, tornou-se um imperativo social generalizado, uma atmosfera cool, um meio ambiente permanente que o indivíduo suporta até em sua vida cotidiana. (Lipovetski, apud Minois, 2003: 620).

Em oposição à ironia vazia da dimensão cultural da sociedade contemporânea, a idéia de reflexividade pressupõe um tipo de ironia prenhe de significados. Longe de ser apenas um joguinho inocente e desprovido de significado, o banal muitas vezes é o político.

Ai. Essa deve ter doído. Depois eu sopro a ferida...

Referências

DWYER, Tom. Humor, Power and Change in Organizations. Human Relations, Vol. 44, n.1, 1991.
GIDDENS, Anthony; LASCH, Scott; BECK, Ulrich. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna. São Paulo: Unesp, 1994.
JAMESON, Fredric. “O Pós-Modernismo e a Sociedade de Consumo”. In: E. Ann Kaplan (org.). O Mal-Estar no Pós-Modernismo: Teorias, Práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1993.
KOLLER, Marvin R. Humor and Society: Explorations in the sociology of humor. Houston: Cap and Gown Press, 1988.
KOTTHOFF, Helga. Gender and Humor: An introduction. Journal of Pragmatics. Special Issue: Humor. Vol 37, no. 9, 2003.
KUPERMAN, Daniel; SLAVUTZKY, Abrão. Seria Trágico se não fosse Cômico: Humor e Psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.
MORAN, Carmen; MASSAM, Margaret. An Evaluation of Humor in Emergency Work. Australasian Journal of Disaster and Trauma Studies, vol 3, Nova Zelândia, 1997.
PROVINE, Robert. Laughter: A Scientific Investigation. Harmondsworth: Penguin, 1996.
RAPPOPORT, Leon. Punchlines: The Case of Racial, Ethnic, and Gender Humor. Westport CT e Londres: Praeger, 2005.
SHIBBLES, Warren. Humor Reference Guide: A Comprehensive Classification and Analysis.
VANDENBERGHE, Frédéric. Modernité et Reflexivité. Trabalho não publicado. Universidade Federal de Pernambuco, 2005.
ZIJDERVELD, Anton C. The Sociology of Humour and Laughter. Current Sociology, Vol 31, no. 3, pp. 1-103, 1983.

Cynthia Hamlin

6 comentários:

asadebaratatorta disse...

heiuhaeuhaeiuhiaehiuaehiuh ^^'

ops. Acho que eu postei na parte I.

Lendo o texto e vendo a foto colocada... Não sei se tenho medo da foto ou se a acho sexy, mas, ela é sem dúvida muito engraçada!

Eu queria mais detalhes ou características dessa "ironia vazia"...

Anônimo disse...

Grande texto!

O humor mudou e a falta de humor, também. Com isso, mudou a ironia? Pergunto-me se, de fato, estamos diante da hegemonia da ironia. Acho que a ironia virou sarcasmo (vide a política nacional -- não há mais ironia, apenas zombaria).

Interessante a última frase do texto. O banal é político? Sim, não, mas sim, mas não, nem isso. Aqui, uma dúvida: a afirmação de que o banal é político significa a politização do mesmo? Caso positivo, tenho medo de que tal politização leve à falta de humor, por exemplo, do politicamente correto, esse estranho puritanismo que politiza o banal.

Sim, preocupa-me o movimento de politizar a banalidade, encontrando compulsivamente relações de poder ou de dominação no trivial (acho isso uma questão empírica, isto é, dependerá de qual contexto ou situação está posto o corriqueiro -- avento a hipótese de que, na maioria dos casos, a banalidade é banal, que é banal e banal, etc e tal...).

Meu temor é que a politização da banalidade não leve ao humor, nem mesmo à ironia, mas sim à paranóia -- patrulhamento do trivial, prenhe de pan-óptico.

abração (juro que escrevo. Não me "defenestrem", por favor)

Anônimo disse...

Raphael,

como diria Artur, plagiando Walter Benjamin, "a ambigüidade é uma dialética em repouso". A foto é, sem dúvida, ambígua.

Ironia vazia: faz tempo que estou tentando convencer nossa especialista em Jameson, Maria Eduarda, a me tirar das trevas da ignorância em relação a ele. Só vi Jameson fazer referência a este conceito nesse texto que está citado no post. Mas quem sabe se você tentar tenha mais sorte do que eu. Também tem o livro do Lipovestky, mas esse eu tenho preguiça de ler. Tenho a impressão de que deve ser muito pós para o meu gosto. Mas um dia eu supero meus preconceitos e leio.

Abraço

Anônimo disse...

Artur,

É vero, é vero. Mas para algumas definições de banalidade, não há dialética que dê jeito. Não politizar tais definições é incorrer no extremo oposto: banalizar o político. Mas você tem razão: vou relativizar minha tese e dizer "o banal às vezes é o político".

Beijo.

Anônimo disse...

A maior ironia que acho existir em Borges é o fato dele o tempo brincar com nosso senso de razão. "Pierre Menard, autor do Quixote", reescreve Cervantes, sem mudar uma vírgula, e cria uma nova obra!
Quantas implicações sociológicas, filosóficas, literárias... podem ser aí encaixadas?
Um "...jardim de veredas que se bifurcam"!

B.

Anônimo disse...

Prezad@ B.,

Concordo com você. O humor e o riso são domesticados na modernidade justamente quando são banidos para o reino da desrazão, da loucura. O que Borges faz é possibilitar o cruzamento da linha que divide esses reinos, expondo a fragilidade da nossa razão e daquela linha divisória. Talvez por isso Foucault tenha feito tão bom uso de sua obra.