sábado, 19 de abril de 2008

Cada Macaco no Seu Galho: A Sociologia no Ensino Médio e na Academia



Em meados dos anos de 1970, Roman Jacobson, lingüista que colaborou enormemente com Lévi-Strauss, deu uma conferência no Departamento de Antropologia Social da Universidade de Harvard. Heraldo Souto Maior, memória viva do PPGS da UFPE, estava lá (veja comentário). Segundo nos conta, após a conferência, um estudante perguntou como antropólogos e lingüístas poderiam cooperar. A resposta do sábio professor foi a de que a cooperação só era possível se os lingüístas continuassem a fazer lingüística e, os antropólogos, antropologia. A história é instrutiva: a cooperação e a troca pressupõem diferenças, especificidades. Criar monstrengos supostamente híbridos, longe de enriquecer as interações sociais, as empobrece.

Acabo de voltar do I Seminário Nacional de Educação em Ciências Sociais, em Natal. Foi um evento importante e senti falta de uma participação maior de estudantes de outros estados. Fui convidada para participar de uma mesa com um título enorme: a dupla dimensão da investigação no ensino de sociologia: autoformação do professor e transmissão de conhecimentos de pesquisa para os estudantes de nível médio. Não participei de muitas atividades, pois só pude ir no penúltimo dia do evento e tive que voltar antes do seu término. Parte do que vi, no entanto, me lembrou essa estória de Lévi-Strauss e, para ser honesta, me deixou preocupada.

Posso estar enganada, mas senti nas entrelinhas de grande parte das discussões um certo embate entre os sociólogos acadêmicos, por um lado, e os estudantes de ciências sociais, sindicalistas e professores do ensino médio, por outro. Sou capaz de apostar que uma análise de conteúdo simples dos debates que assisti mostrariam que as palavras de ordem eram “aparelhos ideológicos do Estado”, “neoliberalismo ultra-liberal” (assim mesmo) e “mercado de trabalho”. Talvez falar de embate seja um exagero, já que a postura de parte dos sociólogos acadêmicos era de uma concordância envergonhada com muitas das colocações dos estudantes e dos professores do ensino médio. Em linhas gerais, a idéia era a de que as escolas eram simples aparelhos ideológicos de Estado, que a verdadeira luta dos professores do ensino médio era contra o tal do neoliberalismo ultra-liberal e que o ensino da sociologia nas universidades deveria, acima de tudo, formar os estudantes para o mercado de trabalho. Também foi cobrada uma intervenção mais direta dos sociólogos acadêmicos nas escolas, especialmente por meio do trabalho voluntário e solidário. Contradições à parte - como combater o neoliberalismo enfatizando a dimensão mercadológica da profissão ou o trabalho voluntário como forma de solucionar as lacunas deixadas pelo Estado? Como defender o ensino da sociologia nas escolas se elas são percebidas apenas sob sua dimensão de alienação e apaziguamento das classes trabalhadoras? – acho que o que realmente deixou a desejar foi uma reflexão mais profunda acerca dos papéis específicos de cada uma dessas categorias profissionais (da academia e do ensino médio) e as formas possíveis de cooperação entre ambas.

Para dar um exemplo relativamente prosaico do tipo de embate que estava em questão, eu própria e outra participante da mesa começamos nossa exposição mencionando nossa experiência com a formação de professores do ensino médio em nossos respectivos estados. Quando a mesa foi aberta para debate, uma das primeiras coisas que ouvimos dizia respeito à forma como nós, “PhDeuses” que odiávamos dar aulas na graduação, deveríamos estar nos sentindo em dar aulas para “simples professores do nível médio”. Não sei a partir de quê essa criatura inferiu que odiávamos dar aulas na graduação, mas o que ficou claro para mim foi uma auto-desvalorização de sua própria atividade como professor. Não acredito que esta seja uma postura generalizada no meio acadêmico – caso contrário, por que tantos de nós estaríamos lutando pela obrigatoriedade da sociologia no ensino médio e dividindo nosso tempo, já tão escasso, entre a pesquisa, a formação de alunos universitários e os professores daquele nível de ensino?

Creio que a verdadeira questão por trás de colocações como esta diz respeito à profissionalização e ao reconhecimento do professor daquele nível de ensino. O que é preciso defender é uma cooperação mais estreita entre os sociólogos acadêmicos e os professores do ensino médio, reconhecendo as competências específicas de cada um. Um dos papéis dos sociólogos acadêmicos é formar professores competentes; outro, não menos importante, produzir pesquisas, inclusive sobre educação. Qualquer coisa além disso, como supor que devamos sair da academia e invadir as salas de aula das escolas, é desconhecer a natureza do trabalho acadêmico, a competência e responsabilidade dos professores do ensino médio e a obrigatoriedade do Estado em oferecer educação pública de qualidade. Que fique claro: não tenho nada contra a solidariedade e o voluntariado. Pelo contrário. O que não concordo é que um debate num nível institucional deva focar essas questões. Como paliativo a uma política neoliberal esta é uma boa solução. Como política pública ou social, uma contradição, já que acaba fortalecendo o próprio mal que tenta combater. Aliás, tenho cá minhas dúvidas de que todos os professores universitários tenham a competência necessária para atuar nas escolas e acredito que não tem voluntariado que substitua um bom profissional, nem as obrigações e responsabilidades que decorrem de sua inserção específica.

Além disso, é necessário estabelecer que o ensino da sociologia é uma questão para cientistas sociais – neste sentido, discordo radicalmente da posição de parte dos sindicalistas, que defendem uma reserva de mercado para sociólogos, parecendo ignorar que, de acordo com as normas que regem a profissão, licenciados em ciências sociais não são sociólogos. Atualmente, está em andamento a criação do Conselho Federal de Sociologia, que visa incluir antropólogos e cientistas políticos e assim criar a possibilidade do registro profissional de todos os cientistas sociais, no sentido estrito. Mas independente disso, o papel dos professores universitários é formar esses profissionais.

Profissionais são pessoas que tiveram uma socialização especializada em determinada área do saber. Isto gera a necessidade de uma reflexão mais profunda acerca dos cursos de licenciatura e em que medida a academia está profissionalizando adequadamente os alunos desta área. Felizmente, esta é uma questão que está mobilizando grande parte dos acadêmicos no país e a experiência da UFRN é exemplar. Em vez de reduzir as disciplinas de pesquisa e de teoria, este aspecto do currículo foi enfatizado, possibilitando uma formação extremamente sólida e um grau de profissionalização até mais forte que no bacharelado. Mas essas são questões para serem desenvolvidas em outra ocasião.

Cynthia Hamlin

11 comentários:

Sergio disse...

Cynthia,

Este é um debate necessário e está de parabéns pelo teu texto, trazendo prudentes pontos para reflexão. Vejo muitos estudantes de Ciências Sociais desistirem do curso por não conhecerem o mercado de trabalho para cientistas sociais.

A contradição mais interessante que percebo é a dificuldade de muitos pesquisadores da área da Sociologia do Trabalho em analisar esse ocaso da formação profissional.

Mais uma vez, parabéns pela postura sóbria diante de tanta embriaguez de argumentos nos ambientes acadêmicos.

Sérgio Coutinho
http://sociologiadodireito.blogspot.com
http://mundoemmovimentos.blogspot.com

Anônimo disse...

Prezado Sérgio,

Obrigada pelos comentários. E também pelos links. Dei uma olhada rápida nos dois e achei muito interessantes. Salvei os endereços nos meus favoritos para lê-los com mais calma.

Abraço

Anônimo disse...

Pois é camaradas, o embate dos "coitadinhos da sociologia" versus os "PHDeuses" me parece sempre esquizofrênico. Logicamente é necessário investigar, avaliar e criticar o ambiente específico de ensino da sociologia, as escolas de ensino médio. Logicamente há um considerável número de abstinências em relação a esse debate no âmbito da academia. Porém, me parece estéreo o caminho pelo qual essa discussão segue. É preciso estabelecer mecanismos de cooperação, informação e debate entre essas duas instâncias, que por sinal são produto de um tronco comum. Creio, contudo, que o debate dos "cientistas sociais" nesse contexto, no mais das vezes não passa de uma discussão coperativista e pouco fundamentada, tal como acontece em outras áreas profissionais. Pois bem, complexifiquemos isso, camaradas.

Abraços, Cynthia.

Anônimo disse...

É isso aí, Rafael. E um bom lugar para começar é a reformulação da grade curricular do DCS. Talvez fosse uma boa idéia dar uma olhada na grade da UFRN (e de outras universidades) e, quem sabe, entrar em contato com Ana Laudelina, que esteve à frente das mudanças efetuadas por lá.

Abraço!

Anônimo disse...

Oi Cynthia,

Segue abaixo pequeno texto que foi "publicado" no boletim eletrônico da ABCP. Talvez possa contribuir para o debate.




A sociologia e o ensino médio


O tema do ensino da sociologia em nível médio tem pautado uma série de debates promovidos tanto por entidades científicas ligadas às ciências sociais, e.g. Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), quanto por formações classistas como o sindicato dos professores ou o sindicato dos sociólogos. O texto base para os referidos debates tem sido os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em sua vertente Ensino Médio e, ainda mais precisamente, sua Parte IV que versa sobre Ciências Humanas e suas
Tecnologias. Esse texto, ele mesmo, tendo sido concebido de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 9.394/96 (LDB) de 20 de dezembro de 1996 (http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf).
Apesar da apelação sociologia, está claro no PCN que o conteúdo a ser ministrado em nível médio deve ancorar-se nas ciências sociais como um todo, isto é, contemplando não apenas a sociologia stricto sensu, mas igualmente a antropologia e a ciência política. Isso pode ser percebido através da abordagem de temáticas como Cultura, Estado ou ainda Democracia, que se mostram fundamentais para a compreensão da cidadania, leitmotiv que permeia as entrelinhas do texto do PCN. Todavia, se a montante, na concepção, reina um certo consenso sobre o caráter multidisciplinar do ensino da sociologia; a jusante, na sua implementação, é possível que haja algumas deturpações. Na verdade, em nosso sistema federativo, cabe aos estados essa implementação e, como sabemos, com algumas exceções, a maior parte deles luta contra deficiências crônicas de infra-estrutura e de pessoal docente. O que leva, no mais das vezes, o professor a tornar-se um verdadeiro curinga disciplinar. A simbiose, pois, entre União e estados, assim como uma priorização por estes últimos da agenda educacional são condições sine qua non para que o ensino médio, em geral, e o da sociologia em particular, possam ser efetivados com sucesso.
Por outro lado, há que se pensar sobre as conseqüências desse novo mercado de trabalho - o da docência da sociologia no ensino médio - sobre as relações entre os cursos de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais, como também suas repercussões sobre o sistema de Pós-Graduação. Algumas experiências têm mostrado que o fôlego dos bacharelados, celeiro natural dos futuros alunos de mestrado, diminui face a uma licenciatura hoje arrimada em carga horária pedagógica bem superior aos parâmetros pretéritos, inviabilizando a fórmula 4+1 outrora tão utilizada.
Por fim, resta a questão da competência para a atuação no mercado de trabalho. Se hoje está claro que os licenciados em ciências sociais estão habilitados para tal tarefa, ainda não está manifesto se egressos de futuros cursos de licenciatura stricto sensu em antropologia, sociologia ou ciência política poderão gozar de tal prerrogativa.

Marcelo de Almeida Medeiros

Anônimo disse...

Oi, Marcelo,

Obrigada pelo texto. Muito oportuno. Resta saber se a ABCP concorda com a forma como a proposta para a criação do Conselho Federal de Sociologia pretende incluir a ciência política. Pelo que estou vendo aí, não há definição em relação à proposta. De quando é esse texto?

Abraço

Anônimo disse...

Oi Cynthia,

Esse texto data de logo após o encontro da SBS aqui na ufpe. Não sei ao certo quem esta capitaneando essa temática no seio da ABCP hoje. Talvez a Maria Herminia; talvez o João Feres (Iuperj). No momento não tenho maiores informações.

abs.

marcelo

Anônimo disse...

Cynthia,

O fato não é lenda, mas foi diferente do que a “lenda” descreve. Na verdade, não foi numa conferência conjunta de Lévi-Strauss e Roman Jacobson e a pergunta não foi de um jornalista. Aconteceu em uma conferência de Jacobson no Departamento de Antropologia Social de Harvard em fins de 1975 ou em 1976. Como Pesquisador Associado do Departamento eu estava presente.

Após a conferência, um aluno de doutorado fez a pergunta de como poderia ser a colaboração entre lingüistas e antropólogos. A resposta foi realmente “Os lingüistas continuando lingüistas e os antropólogos continuando antropólogos”. Comentou que tanto ele como Lévi-Strauss tinham aprendido muito um com o outro, com na colaboração que tiveram, mas que ele tinha continuado lingüista e Lévi-Strauss, antropólogo.

Não me lembro de detalhes da conferência, mas lembro muito bem a impressão de sábio de Jacobson me deixou. Era a união da ciência com a sabedoria.

Anônimo disse...

Oi Cynthia,

Apenas para assinalar que, como comenta o professor Heraldo, a conferência de Jacobson deu-se, em meados dos anos 70, no Departamento de Antropologia Social de Harvard... A especialização departamental já existia por ali nessa época... Hoje coexistem department of government, department of sociology (fundado na decada de 30 - http://www.wjh.harvard.edu/soc/)e department of anthropology (fundado em 1886 - http://www.fas.harvard.edu/~anthro/)

abs.

marcelo

Anônimo disse...

Herald,

Obrigada por esclarecer a "lenda". Corrigi o texto, de acordo com o seu relato.

Beijo

Anônimo disse...

Oi, Marcelo,

Sem dúvida alguma que a especialização já existia naquela época. Meu problema não é com a especialização, per se, e nem mesmo com a criação de departamentos de ciência política, antropologia e sociologia, no sentido estrito. Meus questionamentos se dirigem ao argumento de que a especialização é a direção "natural" da criação de departamentos no mundo inteiro, por um lado, e à forma como a especialização deve ocorrer.

No que diz respeito ao segundo deles, o principal problema é o risco de se perder a formação interdisciplinar que os cursos de ciências sociais proporcionam. Pessoalmente, vejo isto como uma vantagem e que deveria ser melhor explorada. Em vez de uma especialização visando uma formação "técnica", como o Programa de Ciência Política argumentou no documento para a criação do Dept. de Ciência Política na UFPE, acredito que uma formação mais ampla poderia beneficiar os estudantes. Acredito que "diluir" os conteúdos de sociologia e antropologia nas disciplinas de política e RI não possibilitará a formação de bons cientistas políticos.

Talvez o que todos nós precisemos pensar é sobre o tipo de contribuição que as pessoas formadas nas ciências humanas podem dar em suas atividades profissionais. Tenho cá minhas dúvidas de que esses profissionais sejam absorvidos pelo mercado em função de sua especialidade como técnicos de uma área específica: basta pensar na inserção dos bacharéis em direito nas diversas áreas da administração pública.

Abçs