Bem, como o pessoal desapareceu, ocupo o espaço. Tudo indica que Cynthia perdeu-se na vastidão gelada do Canadá. Caçava bebês focas de forma clandestina, noticiou a política montada. Há cartazes de seu rosto nas ruas de Toronto. É uma foragida.
Jonatas... er... onde estará? Pegou um carro e se pirulitou. Vá saber. Foi visto, pela última vez, atravessando de balsa o Rio Negro. Perdeu o carro numa pororoca.
(...)
Falarei de um assunto maçante. Sei, sei, é de lascar, mas peço a compreensão. Caso queiram, leiam esse post à noite para ter aquele soninho bom e reconfortante. É que venho estudando o individualismo contemporâneo... E tenho aquela pulsão de compartilhamento . É meio tedioso, o artigo; porém, lembrem-se da insônia... Socializo assim algumas anotações (praticamente não coloquei referência, mas utilizo muito as análises de um pensador francês: Alain Ehrenberg):
- Maio de 68 foi a passagem - a matrix. Tentou-se conectar autonomia com independência individual, visando um novo tipo de solidariedade. A inércia do sistema pesou, e o recrudescimento do individualismo voltou à tona. Nunca Nietzsche e Weber foram tão profetas: os novos processos de identificação parecem mimetizar o adágio "pura sucessão, pura diferença", e o politeísmo de valores grassa na sociedade: as antigas referências escafederam-se e as novas são menos referências do que incertezas. Se as mudanças tecnológicas na base material da hiper-modernidade são condicionantes das transformações, as mudanças nas representações sociais também são fundamentais.
- Boa parte do imaginário identitário fresco-moderno (ou pós-moderno, como queiram) formou-se na educação de massas. Educação voltada ao mercado de trabalho, à competição, à qualificação profissional. A profissão é a aspiração de mobilidade social. Seria, também, uma aspiração à autonomia e à independência individual. Encarna uma sensibilidade igualitária baseada no mérito individual ― mas não existe aqui contenção ética, pois estamos diante de uma vocação sem deontologia;
- A pedagogia formatou a radicalização do individualismo através principalmente da valorização da concorrência. Houve no imaginário social uma supervalorização da competição. Um culto à performance. Torna-se uma "obrigação" a visibilidade da subjetividade. Produz-se uma ode ao visível: desde o acting-out até a visibilidade dos excluídos através da violência (torcidas organizadas, gangues de bairro, tribos urbanas...). Num sistema competitivo democrático, o indivíduo precisa mostrar-se, pois somente pode ser julgado tornando transparente a sua performance. Na competição, o indivíduo encontra a justa avaliação. Assim, a pedagogia da concorrência reverteu um antigo tabu: a concorrência não é mais vista como antagônica à justiça. Os "velhos" sistemas de solidariedade precisavam proteger o indivíduo dos efeitos perversos da concorrência, pois se pensava que era fonte de desigualdade; agora, a justiça é produto da concorrência. Ocorre, assim, um deslocamento na sensibilidade igualitária: da solidariedade social ao egoísmo da justa concorrência, da preocupação com o acesso dos mais fracos a uma vida digna ao modelo esportivo do "vença o melhor". Paradoxalmente, mesmo num mundo cheio de incertezas, o risco é valorizado e colocado como o preço da liberdade;
- O pano de fundo de toda essa nova situação: a fragmentação da existência. O indivíduo depende apenas de si mesmo para vencer na vida. Sozinho, produz a construção solitária de sua performance. Tenta cotidianamente construir a si mesmo. Seria um ser sem guia, cada vez mais sem referências externas, julgando o mundo por si e de si mesmo. Um indivíduo avant la lettre que não tem destino, faz o seu destino; que não percebe sentido no mundo, projeta seu sentido. Uma pessoa sem Deus e sem Absoluto guiando sua vida; nada de Fora para lhe dizer o que deve ser e como deve se conduzir. Sua forma de estar-no-mundo passa pela exteriorização da sua interioridade. Ele não é mais um ser - é um ente.
- Por isso, vemos aqui e acolá uma saudade da tradição, quando a identidade era dada pela casta ou pelo estamento. O destino estava traçado. Aqui e acolá, uma saudade das classes sociais, quando a identidade era, pelo menos, condicionada pela solidariedade, mas também pela assimilação. O destino apontava para um futuro melhor -- as últimas sobrevivências de uma postura milenarista? Agora, a identidade é uma construção individual, isto é, uma responsabilidade do indivíduo. O destino é uma construção idiossincrática: não tem raiz no passado, nem aponta para o futuro, firma-se no presente, no aqui e agora. Estranha situação: a identidade é social, mas sua expressão histórica aparece firmemente ancorada na crença de que sua formação depende apenas do desdobrar da individualidade. Ocorre, assim, a desvalorização dos atores coletivos. A busca da felicidade e de uma vida digna é uma tarefa que prescinde de ações coletivas.
- Valorização do sucesso. Novamente, outra quebra de tabu: o sucesso não é mais visto com desconfiança. Não é mais percebido como uma ilusão, virou norma de conduta. O sucesso é individual e prova de reconhecimento, não mais de Deus, como na reforma protestante, mas da sociedade. Seria o sinal mais evidente de que a competição produziu justiça. Cria-se a ideologia do empreendedor, base volitiva do sucesso. A busca da felicidade é um empreendimento. O acesso ao empreendimento é universal. Só é preciso vontade. O "empreendedorismo" é a mais nova forma de voluntarismo na contemporaneidade. Seria a filosofia de vida de uma determinada classe média. Possui uma boa afinidade eletiva com o dito e suposto "neoliberalismo" — lembrar que Hobsbawm definiu o "neoliberalismo" como uma ideologia conservadora, mas também como uma espécie de anarquismo de classe média. A ênfase recai completamente na defesa da independência do indivíduo. Atualmente, no Brasil, Mangabeira Unger é o maior defensor do indivíduo empreendedor — não do grande empreendedor, sejamos justos, mas sim do pequeno e do médio. Com isso, faz-se a defesa política da classe média como a nova classe transformadora da sociedade. Acreditamos piamente que a filosofia política de Mangabeira é uma forma densa, complexa e profunda, para o bem ou para o mal, de americanismo (lembrar de Gramsci, aqui).
- O indivíduo é responsável. Antigamente, admitia-se a responsabilidade, agora exige-se. Todos devem-se comportar como indivíduos responsáveis. Crise de responsabilidade equivale à crise de sentido. Mas o fracasso é individual. Aos poucos, vai tornando-se um handicap, principalmente o fracasso escolar e profissional. Do handicap à neurose, um pulo: a pedagogia transforma-se numa terapêutica do fracasso. A doença do fracasso é a doença da responsabildiade. Ocorre o declínio do conflito no espaço identitário. A histeria, doença do conflito, desaparece de cena e quem domina é a depressão. Da psicanálise ao Prozac, eis a "base material" de nossa sociedade.
- O consumismo torna-se uma moral da felicidade. Seria também uma forma de exercitar a liberdade individual. A poupança deixa seu trono e o Espírito do Capitalismo passa por uma reforma hedonista. Consumir significa também exteriorizar-se, valorizar-se e se tornar visível. O hedonismo é o novo princípio de realidade. Vai modelar principalmente as expressões artísticas e de vanguarda. As identidades não serão mais construídas obrigatoriamente através da repressão sexual. A liberalidade sexual e as descobertas de novas formas identitárias sexuais estão cada vez mais condicionando os processos de identificação. O que está havendo é uma transformação da intimidade (Giddens);
- As representações sociais do corpo também mudam: o corpo e a saúde do corpo são índices de sucesso. O corpo pode ser um bom índice de visibilidade. A saúde torna-se a saúde do corpo perfeito. Malhação, ginásticas, compulsão esportiva, dieta obsessiva, mitomanias médicas: culto do narcisismo.
- Ocorre o recuo das grandes referências políticas de classe, e a despolitização torna-se uma forma de se fazer política. Corrijo: novas formas de fazer política não são traduzidas, absorvidas, canalizadas ou, simplesmente, não são entendidas enquanto tal pelo sistema de representação política das democracias liberais. Tais formas de fazer política são, assim, vistas negativamente, inclusive como formas de despolitização.
- A todo momento, a subjetividade separa-se, distingue-se, inscreve-se numa relação assimétrica com a individualidade. A subjetividade parece que virou uma questão coletiva - eis a novidade e a dificuldade (Ehrenberg). O processo de constituição do ego não está mais conectado diretamente ao processo de socialização. Papel social e identidade entram em conflito. A identidade sofre um desmembramento na sua constituição: não há mais uma homologia entre o campo do sentido ― a identidade propriamente dita ― e o campo funcional ― a identidade enquanto papel social. O que eu sou não é mais necessariamente o que eu faço. A conexão entre o sentido e a função, entre a identidade para si e para o outro, entre o íntimo e o manifesto, entre o privado e o público, entre a identidade propriamente dita e o papel social torna-se menos um atributo dado pela socialização do que uma "construção" socialmente encampada pelo sujeito. A construção é um risco, pois pode acontecer ou não. A função pode ficar sem sentido, e o sentido sem função. Pode acontecer o fracasso.
- Ocorre a passagem da denúncia da exploração à acusação da exclusão social. Surge o individualismo dos excluídos: tribalismos, torcidas organizadas, rapismo em que se afirmam, ao mesmo tempo, o individualismo e o comunitarismo. Pululam identidades; surgem as políticas de identidade. Contudo, tanto o neoindividualismo como o comunitarismo não conseguem, aparentemente, suprir a deficiência de integração societária após a crise do modelo republicano ou assistencial do Estado. Provavelmente, os processos de identificação política são devedores do recuo do Estado na sua função de integração e de socialização política. Parece que está ocorrendo uma privatização do espaço público concomitante a uma exposição pública da vida privada.
Parece que estamos lascados...
Artur Perrusi.