terça-feira, 26 de agosto de 2008

Remo Mutzenberg fala sobre Novos Movimentos Sociais



Remo Mutzenberg, nosso querido Remutz, é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e especialista em ‘novos movimentos sociais’. Em julho deste ano, não me perguntem o dia, ele topou conversar sobre este tema dentro de um curso sobre ‘modernidade e pós-modernidade’ coordenado por mim. O texto que se segue é uma versão bastante editada de uma conversa que durou em torno de três horas - e, quem sabe, a primeira de muitas colaborações com Remo. Esse sempre foi, aliás, o desejo do CAZZO. Ajudaram na transcrição e edição da conversa Adriana Tenório, Remo e eu próprio. Jonatas.

Remo – (...) Considero que na década de 1970, em decorrência do contexto da sociedade brasileira, projetou-se sobre o que se denominava, de forma genérica, movimentos sociais, uma visão extremamente positiva, atribuindo-lhes o papel de substitutos da classe operária como sujeito histórico. Além disso, concebia-se um conjunto de grupos, agentes sociais muito heterogêneos, como uma unidade política num espaço unificado. Outro aspecto salientado naquele momento foi o de acentuar o caráter espontâneo das diferentes formas de organização que emergiram naquele contexto. Houve certo ocultamento das lideranças por conta da repressão, o que acabou sendo assumido nas próprias análises. Assim, nessa perspectiva, assumiu-se a idéia da auto-organização dos movimentos, quando em realidade havia um campo de militância política feita por quadros de diferentes tendências. Tendências políticas num sentido aberto e abrangente. Isso ficou meio encoberto, daí uma visão tão otimista em relação à emergência espontânea das organizações, em particular o que se passou a denominar de organizações populares. Eu vivi esse período. Vem daí meu interesse pelo tema dos movimentos sociais.

Durante o período de crescimento dos movimentos de bairro e com a retomada do processo de abertura política, no final da década de 1970, aqui em Recife houve a nomeação de Gustavo Krause para prefeito - um dos marcos dessa época – e isso redefiniu a situação porque inseriu esse movimento no campo político em novas modalidades e que foi, também, o reconhecimento da existência das organizações que no período anterior fora reprimido. Isso significou ainda uma nova forma de controle político, de reorganização e de uma nova forma de presença do poder público. Vivi esses momentos como educador ligado a ONGs e a setores da Igreja Católica. Com as mudanças políticas e econômicas ocorridas no final da década de 1980, alteraram-se as posições dessas entidades. Foi nesse novo contexto que retomei o curso de Ciências Sociais. Fiz o mestrado e o doutorado em Sociologia com o olhar voltado para a experiência e os desafios teóricos para se compreenderem as ações coletivas e, no seu interior, a presença e significados dos movimentos sociais, o que me levou a repensar o próprio objeto. Esse debate marcou o início da década de 1990. Tentei, depois de uma revisão teórica, estabelecer uma nova forma de olhar os movimentos sociais a partir da Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe. Essa é a minha trajetória e razão do meu interesse pelos movimentos sociais.

Sheila – você falou que houve um refluxo dos movimentos sociais na década de 80, o que foi que determinou esse refluxo?

Remo – Primeiro, é preciso pensar que os Movimentos Sociais não constituem um fenômeno empírico pré-determinado. Tivemos um momento de visibilidade desses movimentos como uma unidade, como resultado de um processo de articulação. Havia uma heterogeneidade muito grande nesses “movimentos”, desde movimentos de bairro, feministas, de trabalhadores rurais, de jovens e de uma infinidade de grupos dispersos pelo Brasil a partir dos quais se criou uma articulação sob a denominação Movimento pelo Processo de Redemocratização. Para usar Touraine, podemos dizer que havia um “opositor”, uma oposição ao regime militar, uma “identidade”, um movimento pela redemocratização, isto é diferentes grupos, diferentes pessoas, se identificavam e com isso e havia também uma proposta de “totalidade”. Esta totalidade dizia respeito à construção de uma democracia. Isso criou um clima de um movimento amplo e uma visibilidade como um movimento homogêneo.

Podemos afirmar que conjuntura favoreceu a criação de uma identidade a partir de uma diversidade de grupos que tinha um objetivo comum. O que aconteceu é que muitas dessas demandas foram conquistadas com a Constituição de 1988 e efetivou-se um processo de eleições diretas em 1989. Isto fez emergir e tornar mais transparente a heterogeneidade dos distintos agentes sociais articulados anteriormente. Compreendo que aquilo que se denominou de refluxo não foi tanto uma redução da presença de grupos, de movimentos, mas a desarticulação de uma unidade que havia sido construída em torno da luta pela (re)democratização. Afinal de contas, o inimigo comum deixou de existir. Com isso, as disputas internas em torno dos interesses particulares se tornaram mais presentes. Muitos desses grupos se institucionalizam e houve uma mudança da presença do Estado. Por um lado, o “inimigo” deixou de ser um eixo aglutinador e, por outro, essas forças emergentes passam a assumir cargos públicos e tornam-se governo. Daí a crise de como repensar essa relação entre governo e sociedade civil. Considero que na década de 1990 não houve uma crise dos movimentos sociais, mas uma crise dos paradigmas utilizados até então para compreendê-los. Os referenciais anteriores não davam conta dessa pluralização e desse processo de articulação. Acho que Melucci foi um dos primeiros a trabalhar isso em termos das sociedades complexas. Agora, é interessante, e vale salientar, que se falou muito na década de 1990 de uma crise dos movimentos, mas foi também naquela década que no Brasil surgiu todas uma literatura que é ainda referência para o debate atual, a exemplo do debate sobre cidadania, sociedade civil, cultura política, democracia social, participação, diversidade. Autores como Avritzer, Sérgio Costa, Eveline Dagnino, Ilse Warren-Schere, Maria da Glória Gohn, entre outros, estavam imbuídos de repensar movimentos sociais.

O otimismo da década de 70 dá lugar a um questionamento sobre a reprodução de formas tradicionais das práticas políticas, em que as pesquisas voltam-se para a identificação de novas práticas mais democráticas tanto no nível institucional quanto na vida cotidiana. Muitas conquistas incorporadas na Constituição de 1988 não esgotam a discussão em torno desses movimentos e em decorrência dos espaços participativos constituídos, mas levam ao questionamento sobre o modo como exercem o direito conquistado. Aí se questiona como os movimentos sociais criaram de fato uma nova cultura democrática e política, não apenas no campo institucional mas também nas relações do cotidiano.

[...]

Remo – Não se trata de uma determinação estrutural, nem símbolo da vontade dos indivíduos. Você tem uma dinâmica, muito mais...

Jonatas – Parece que, sob essa perspectiva teórica, é necessário pensar em que medida é possível evitar a violência de uma determinada estabilização social. Toda estabilização social é uma violência e essa violência é inevitável. A gente opera o político a partir de uma tradição, de um passado que nos convoca. E esse passado é tenso, fruto de antagonismos, aberto, portanto, na exata medida em que ele não é monolítico, també não é determinativo. Nesse sentido específico, o passado se preserva e invade nossas possibilidades de ação. Sobre essa tensão você pode criar algo novo ou ser extremamente conservador. O político deve, no meu entender, permanecer aberto a essa tensão, à alteridade que ele exclui no próprio ato de decisão política. Richard Beardsworth, numa conferência, e seguindo Derrida, chama isso de “menor violência”. Essa forma de pensar não nos dá nunca a garantia de que o mundo vai ser melhor a partir de nossa ação, mas nos convoca a agir. Acho que isso faz toda a diferença.

Remo – Laclau coloca isso como um paradoxo: você tem a necessidade de fixação e, ao mesmo tempo, constata a impossibilidade de uma fixação. Sem uma fixação você tem um discurso psicótico – para viver em sociedade você necessita de alguma fixação. Agora, o que pode ser discutido é como o discurso é fixado. E também: se é fixado por um, dois, ou por um processo mais amplo. Sem fixação você não tem sociedade, não tem possibilidade de convivência social. [...] Pegando nós aqui: você tem algumas regras estabelecidas e a exclusão de outras. Pode-se ler essa exclusão como um ato de violência. Pode ser que tudo tenha sido democraticamente construído, mas significou a exclusão de outras possibilidades. E é esse excluído que vai sempre “empentelhar” essa arrumação. [...] Acho que tem uma outra dimensão que é complicada dentro da teoria sociológica, que é a relação entre estrutura e agência. Pode-se dizer: há uma determinação e é por isso que agimos de tal forma. Mas o que é sujeito? O sujeito é esse momento em que você fica paralisado sem ter uma solução, mas ao mesmo tempo tem de tomar uma decisão. O ‘indecidível’ é o único momento em que você tem a oportunidade de decidir; na hora que você decide, está dentro de um quadro de estruturação de novo. É possível, então, fazer uma diferença entre “posição do sujeito” e “sujeito”.

Jonatas – Kafka já se defrontava com algo parecido – e não é fortuito que Derrida se detenha na análise de seu conto ‘Ante a Lei’, no livro Aporias. Mas do momento de indecibibilidade em Kafka, nada sai. O indivíduo em Kafka fica paralisado diante de aporias. Em Derrida, não. Simmel também dizia algo parecido: o jogo é ao mesmo tempo contingente e determinado. Se ele fosse apenas contingência, não existiria; se fosse apenas determinação, o resultado seria o mesmo. No meio disso, a gente joga. Essas violências, então, são nossa possibilidade no mundo, ou seja, não são a traição de uma subjetividade, mas a possibilidade dessa subjetividade – no sentido específico que Remo atribuiu ao termo.

[...]

Veridiana – [...] Que tipo de relação a gente pode pensar que exista entre a religião e os movimentos sociais? Fico pensando especificamente da relação da teologia da libertação e dos movimentos sociais no Brasil...

Remo – [...] Sempre houve, na Igreja Católica de um modo geral, uma preocupação com a assistência social, ou uma preocupação com o pobre. O que a teologia da libertação entende é que, a partir dessa predisposição, ou desse compromisso, e considerando uma conjuntura muito particular na década de 50 e 60 - ou seja, mudança na Igreja Católica a partir do Concílio do Vaticano II, Guerra Fria, vários processos revolucionários, como, por exemplo, Cuba - há um estímulo de releitura do Cristianismo. Essa releitura se aproxima do marxismo. Isso é muito presente na Europa, a gente pode lembrar dos marxistas cristãos. Na América Latina também vamos ter grupos de cristãos socialistas. É nesse contexto que vai surgir a teologia da libertação.

Teologias heréticas sempre existiram. Mas na América Latina você tem um contexto muito particular, golpes no Brasil, no Chile etc. e que a Igreja inicialmente apoiou - esse é o caso, por exemplo, do Brasil. Num primeiro momento a Igreja Católica apoiou o golpe de 1964. Só que, num segundo momento, passa a existir um discurso crítico em relação a esse golpe. Esse discurso da teologia da libertação ocupou um espaço dentro da Igreja Católica e foi assumido por seus setores progressistas, passando mesmo a ser hegemônico dentro da CNBB e aparecendo como o discurso da Igreja Católica. Hoje esse espaço não existe mais. O que resta são grupos marginais que ainda existem em comunidades eclesiais de base, grupos de ação pastoral... Então, o discurso do compromisso com o pobre é permanente, mas o discurso da teologia da libertação é muito mais conjuntural, pertence a determinado momento. Embora ela continue sendo defendida por alguns teólogos, ela não tem mais espaço dentro da Igreja. [...] A gente poderia também fazer uma distinção entre processos sociais e processos institucionais dentro da própria Igreja. A crise da teologia da libertação é decorrente também da crise do próprio socialismo.

Os partidos de esquerda, os movimentos sociais também estão passando por esse momento de reestruturação, de repensar as suas categorias de ação. E então retomamos o nosso tema: como pensar os movimentos sociais dentro desse novo contexto? [...] Diante de uma crise, você se abre ou se fecha. Me parece que a tendência na Igreja Católica é se fechar, afastar-se do Concílio Vaticano II, guiar-se por um certo fundamentalismo, por uma certa tradição. Mas esse não é meu tema de pesquisa.

Janna – E como você vê a relação entre movimentos sociais e financiamento – eu acho esse um tema fundamental, pois traz a tona a questão da dependência ou não dos movimentos sociais?

Remo – Acho que isso também faz parte de certa cultura política. Um dos pontos fracos de nossa sociedade civil é sua auto-sustentação. O próprio sindicalismo nasce a partir da intervenção de um Estado mantenedor – relação que você não tinha no anarquismo, por exemplo, e que você não encontra nas Ligas Camponesas. Grande parte dos movimentos sociais nas décadas de 70 e 80 passaram a depender de recursos externos. A própria agenda dos movimentos sociais e das ONGs passaram a ser definidas, em grande parte, por agências internacionais - o que não significa necessariamente um problema. A questão da criança e do adolescente, a questão do feminismo e do gênero foram levantadas por essas agências. Há um condicionamento dos financiamento e faz com que os projetos sejam formulados nas áreas nem sempre definidas pelas ONGs, ou organização. Isso cria problemas para as ONGS e para os movimentos sociais. Se você não se adequar a esses grandes temas, você corre o risco de acabar não obtendo financiamento. Hoje, uma grande parte das ONGs é financiada por recursos do Estado – para terem acesso a esses recursos deixaram de se chamar ONGs e passaram a se chamar OSCIP, organização da sociedade civil de interesse público. A Igreja também financiou muitos movimentos sociais. No momento em que esses recursos são retirados, por algum motivo, os movimentos sociais se encontram em dificuldades.

A questão da sustentação econômica dos movimentos sociais e das ONGs é um grande desafio. Agora, isso não significa dizer que essas ONGs, esses movimentos sociais sejam determinados por seus agentes financiadores. Você veja, quem primeiro começou a financiar os movimentos pela saúde coletiva no Brasil foi a Kellogs, que acabou contribuindo para o surgimento do movimento sanitarista, que levou ao SUS etc. Não há uma determinação, embora devamos reconhecer que há condicionamento nessas relações. Mas a questão da sustentação é uma das grandes dificuldades dos movimentos sociais no Brasil.

Acentuaria que, na atualidade, há um processo pluralista em que as ações coletivas passam a assumir um caráter cada vez mais plural, visibilizando uma multiplicidade de demandas e interesses de difícil composição em torno de um centro. Nesse sentido, ONGs, Grupos, movimentos e diferentes formas de organização se mobilizam em torno de disputas por recursos e configuram um campo de relações e articulação de sentidos que tornam mais complexos os processos de hegemonização e da própria governabilidade.

domingo, 24 de agosto de 2008

O Positivismo de Émile Durkheim 3



As Regras do Método Sociológico constituem a obra positivista de Durkheim por excelência, já que é nela que podemos identificar a defesa explícita dos principais elementos que constituem o positivismo. Aqui, finalmente começamos a “arranhar” a superfície do termo.

Positivismo é um dos termos mais polissêmicos das ciências sociais. Em um pequeno grande livro sobre o tema, Peter Halfpenny (1982) chega a identificar 14 sentidos diferentes para o termo, atribuídos por positivistas e por anti-positivistas. Alguns desses sentidos são claramente “inflacionados”, referindo-se a práticas tão difundidas entre nós que sua aplicação necessariamente levaria a uma definição da sociologia como a ciência positivista por excelência. Assim, por exemplo, positivismo às vezes é associado à busca pela generalização, à utilização de métodos estatísticos, à explicação causal, ao naturalismo. Embora se possa afirmar que todas essas características estejam ligadas ao positivismo, elas não são suficientes para caracterizar uma dada abordagem como positivista. Em outros termos, é possível concepções não positivistas de naturalismo, de explicação causal, de generalizações empíricas e do uso de métodos estatísticos. De forma geral, entretanto, quando essas noções aparecem associadas a concepções empiristas (humeanas) de causalidade e de leis causais, de uma valorização excessiva de dados empíricos em detrimento da teoria, de uma concepção cientificista de conhecimento, dentre outras coisas, pode-se apostar que a teoria do conhecimento que guia as práticas de pesquisa em questão é positivista. De fato, se tivermos que selecionar uma única característica que perpassa todos os tipos de positivismo, esta seria o empirismo. O positivismo é, antes de tudo, uma forma de empirismo, embora ele possa assumir formas mais ou menos radicais.

Farei agora um pequeno parêntese para adentrar um pouco na idéia de empirismo. Definido de forma ampla, o empirismo pode ser caracterizado como a visão segundo a qual a experiência, em particular a experiência sensorial, é a fonte primária – ou única – do conhecimento. Também de forma ampla, contrapõe-se ao racionalismo, ou a visão que defende que a razão é a fonte primária – ou única – do conhecimento. Tradicionalmente, os racionalistas tendem a argumentar que o conhecimento construído com base na observação por meio dos nossos sentidos é notadamente frágil: como Descartes (mais ou menos) colocava, vai que existe um demônio que altera a aparência das coisas para tentar nos enganar!

Depois de Kant, no entanto, passou a ser geralmente aceito que o conhecimento científico envolve uma mistura de observação empírica e de razão (“a experiência sem teoria é cega, mas teoria sem experiência é mero jogo intelectual”). A menos, claro, que sejamos como o rei da Polônia (ou como os pós-estruturalistas):

O rei da Polônia e um séqüito de duques e condes saíram para uma caçada real de javalis. Logo que chegaram à floresta, um servo veio correndo de trás de uma árvore, balançando os braços excitadamente e gritando: “Eu não sou um javali, eu não sou um javali!”. O rei armou seu arco, apontou para o servo e trespassou seu coração com uma flecha, matando-o instantaneamente. “Majestade”, disse um duque, “por que o senhor fez isto? Ele disse que não era um javali!”. “Oh, meu Deus”, disse o rei, “eu pensei que ele tinha dito que era um javali!”.

Claro que se poderia argumentar que o rei errou ao confiar em apenas um dos seus sentidos, a audição. O que um empirista faria seria mais ou menos o seguinte:

Um cientista e sua esposa saem para um passeio de carro pelo campo. A mulher diz, “veja! Aquelas ovelhas foram tosadas”. “Sim,” diz o marido, “deste lado”.

Embora à primeira vista possa parecer que o empirista em questão é o marido, a menos que estejamos falando de Otto Neurath, do Círculo de Viena, o verdadeiro empirista aí é a mulher. O raciocínio dela é tipicamente humeano. Sua “experiência” não se restringe à experiência sensorial direta, mas a experiências prévias (generalizadas indutivamente sob a forma de leis ou, mais propriamente, hábitos psicológicos relativos a conjunções constantes entre eventos) que lhe permitiram inferir determinadas coisas. O que ela estava efetivamente dizendo era algo do tipo: “O que eu vejo são ovelhas tosadas, pelos menos de um lado. A partir de experiências prévias, eu sei que os fazendeiros não costumam tosar suas ovelhas de um lado só e, mesmo que o fazendeiro dono desta ovelha tivesse feito isto, seria improvável que as ovelhas tivessem se alinhado tão perfeitamente de forma a mostrarem apenas o lado tosado. Assim, sinto-me relativamente segura para afirmar que aquelas ovelhas foram completamente tosadas”.

Captou?

Como Durkheim se enquadra nesta caracterização geral de positivismo? A primeira dificuldade que encontramos ao lidar com o positivismo de Durkheim (1980: 9) é a sua auto-definição como um “racionalista científico” no prefácio à primeira edição das Regras:

A única [denominação] que aceitamos é a de racionalista. O nosso principal objectivo, com efeito, é estender ao comportamento humano o racionalismo científico, mostrando que, considerado no passado, ele é redutível a relações de causa a efeito que uma operação não menos racional pode transformar depois em regras de acção para o futuro. Aquilo a que se chamou o nosso positivismo é a penas uma conseqüência deste racionalismo (ênfases no original).


E continua, numa nota de pé de página: “quer dizer que não deve ser confundido com a metafísica positivista de Comte e de Spencer” (Ibid.).

Isto parece sugerir uma ênfase muito maior no racionalismo (isto é, na idéia de que a forma mais segura de conhecimento é o uso da razão via o estabelecimento de relações lógicas entre conceitos e categorias) do que no empirismo (a forma mais segura de se adquirir conhecimento é a observação empírica por meio do uso dos sentidos). É preciso lembrar, no entanto, que os empiristas são racionalistas no sentido Iluminista mais geral de que o conhecimento deve ser construído com base na razão. Entendendo o racionalismo de Durkheim neste sentido amplo, é possível compreender a primazia que ele atribui aos “fatos” empiricamente observáveis ao longo das Regras (uma posição que, como pretendo demonstrar, ele não consegue sustentar). De fato, uma investigação mais cuidadosa revela que a “operação racional” envolvida no estabelecimento relações de causa e efeito é completamente empirista. Ou melhor, a concepção de explicação causal que Durkheim toma de empréstimo de J. S. Mill é basicamente humeana. Voltarei a este ponto mais adiante ao expor seu método comparativo.

A crítica de Durkheim em relação à metafísica positivista de Comte e de Spencer também deve ser interpretada com cautela. A ênfase, aqui, recai sobre “metafísica”, não sobre “positivista”. Já na introdução das Regras, Durkheim (1980: 27) afirma que o Curso de Filosofia Positiva de Comte “foi o único estudo original e importante” sobre o método para o estudo dos fatos sociais. A fim de não tornar esta exposição excessivamente longa, tomarei de empréstimo as principais características do método defendido por Comte, conforme resumidos por Halfpenny (1982):

• o empirismo, já que a experiência humana é entendida como o árbitro do conhecimento;
• o sociologismo, no sentido de que a subjetividade humana não deve ser levada em consideração no estudo dos fenômenos sociais (vale lembrar que, para Comte, a psicologia sequer era considerada uma “ciência” digna deste nome);
• o naturalismo, ou a idéia segundo a qual a explicação dos fenômenos sociais é fundamentalmente igual à explicação dos fenômenos naturais;
• o cientificismo, ou a crença de que apenas a ciência pode ser considerada conhecimento;
• o reformismo social, ou a idéia de que a ordem social pode ser restaurada ao se ajustar os desejos humanos às leis da sociedade, e não por meio de revoluções.

O principal problema que Durkheim via em Comte não dizia respeito, portanto, aos métodos considerados adequados ao estudo dos fenômenos sociais, mas ao fato de que Comte foi incapaz de aplicá-los quando estabeleceu sua famosa “lei dos três estágios”. Esta “lei” seria um exemplo de metafísica porque foi construída com base na especulação, e não na observação direta ou na comparação entre tipos distintos de sociedade.

Mas será que, de acordo com seus próprios critérios, grande parte dos conceitos e categorias utilizados por Durkheim também não seriam “metafísicos”? Vamos ver, vamos ver.

Cynthia Hamlin

sábado, 23 de agosto de 2008

O Positivismo de Émile Durkheim 2



No post anterior, já aparecem alguns termos associados à noção de positivismo: uma abordagem “agressivamente científica” que se contrapõe ao humanismo (reduzido a “misticismo, diletantismo e irracionalismo”); uma concepção de explicação causal nos moldes supostamente estabelecidos pelas ciências naturais. Existe ainda um terceiro elemento que, por razões que deixarei claro mais adiante, são específicas ao positivismo francês (Comte e Durkheim): a irredutibilidade da explicação sociológica ou a idéia de que os fenômenos sociais devem ser explicados a partir de causas sociais. A fim de percebermos como essas questões são colocadas em sua obra substantiva, farei agora uma breve descrição de seu primeiro trabalho sociológico: Da Divisão do Trabalho Social. A idéia aqui é explicitar o que ele entende por um tratamento científico de um fenômeno social, ainda que, para isto, façamos alguns desvios, necessários à compreensão de como ele concebe um fenômeno social.

Da Divisão do Trabalho Social (DTS) constitui, fundamentalmente, uma teoria das condições da ordem social, isto é, um estabelecimento daquelas coisas que devem existir para que a sociedade seja possível, para que não se desintegre mediante aquilo que Hobbes chamou de “a guerra de todos contra todos”. Conforme Durkheim afirma no prefácio à segunda edição da DTS: “as paixões humanas só se detém diante de uma força moral que elas respeitam. Se qualquer autoridade desse gênero inexiste, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado de guerra é necessariamente crônico” (Durkheim, 1999:VII). Mas que força moral seria esta?

Seguindo uma tradição iniciada na economia política por Adam Smith e retomada por Saint-Simon, Comte, Marx, Spencer e Tocqueville, a divisão social do trabalho constituía a base das sociedades modernas, baseadas não na igualdade perfeita entre as pessoas, mas na alteridade, na diferença, na complementaridade. Contudo, Durkheim argumenta, a divisão do trabalho havia sido tratada, até então, como uma “lei superior das sociedades humanas” (Ibid.: 2) e se questiona, mais adiante, em que medida essa lei da natureza é também “uma regra moral da conduta humana” (Ibid.: 3), isto é, em que medida temos o dever (moral) de resistí-la, tornando-nos seres auto-suficientes, ou de nos sujeitarmos a ela, tornando-nos órgãos de um organismo maior? Colocado de outra forma, em que medida a divisão do trabalho pode representar uma autoridade superior às paixões, desejos e interesses dos indivíduos, impedindo, assim, um estado de guerra crônico?

De acordo com seu ponto de vista, a respostas das sociedades modernas a esta questão eram confusas e contraditórias: por um lado, a divisão do trabalho é percebida como uma regra moral: “coloca-te em condições de cumprir proveitosamente uma função determinada” (Ibid.:6; ênfases no original). Por outro lado, condena-se a especialização excessiva e determina-se que devemos realizar, todos, um mesmo ideal. A fim de resolver esta contradição, Durkheim propôs tratar tais questões morais de um ponto de vista estritamente sociológico, científico. Isso significava para ele tratá-las como objetos que podem ser reconhecidos, observados, classificados, explicados. Neste sentido, determinar (cientificamente) o caráter moral da divisão do trabalho pressupõe tratá-la da mesma forma como se tratam os fenômenos naturais, como fatos que deveriam ser investigados a partir dos seguintes objetivos: 1- determinar a função da divisão do trabalho; 2- determinar as causas da qual ele depende e 3- determinar as formas patológicas ou anormais que ela pode apresentar. Esta é, muito literalmente, a forma que Da Divisão do Trabalho Social é organizada.

Ao investigar a função da divisão do trabalho, Durkheim tenta estabelecer a necessidade a que ela corresponde, isto é, qual a sua contribuição (intencional ou não intencional) à manutenção do todo de que ela faz parte: a sociedade. Um primeiro passo neste sentido é dado com o retorno à questão colocada já por Aristóteles: nós nos sentimos atraídos por aquelas pessoas que são nos são semelhantes ou diferentes de nós? A resposta de Durkheim é “depende”: algumas vezes, nos sentimos atraídos por aqueles que se parecem conosco, outras vezes, por aqueles que são diferentes de nós. Para que nos sintamos atraídos por pessoas que são diferentes de nós, é necessário que as dessemelhanças sejam complementares. Muitas vezes, procuramos em nossos amigos qualidades que nos faltam para que nos sintamos menos incompletos: “um protege, o outro consola; este aconselha, aquele executa, e é essa partilha de funções, ou, para empregarmos a expressão consagrada, essa divisão do trabalho que determina essas relações de amizade” (Ibid.: 21). Assim, Durkheim conclui, ao contrário do que vinha sido dito até então, o efeito “mais notável” da divisão do trabalho não era o de aumentar o rendimento das tarefas divididas, mas torná-las solidárias: “seu papel, em todos esses casos, não é simplesmente embelezar ou melhorar sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem elas [as tarefas divididas] não existiriam” (Ibid.: 27).

Por outro lado, muitas vezes somos atraídos por aquilo que nos é semelhante. Nesses casos, a simpatia, que já para Adam Smith (1976) era a base da moral e da solidariedade, aparece como um tipo distinto de fundamento para a união entre as pessoas. Sendo assim, existem dois tipos distintos de sentimentos que nos levam a nos associarmos com outras pessoas e, já que os sentimentos não são os mesmos, também não são as mesmas “as relações sociais que deles derivam” (ibid.:28).

Com isto, Durkheim estabelece as bases para argumentar que existem dois tipos de solidariedade que desempenhavam a mesma função (coesão social) em duas espécies distintas de sociedade: a solidariedade mecânica, característica das sociedades segmentadas, baseadas nas semelhanças entre as consciências individuais; e a solidariedade orgânica, característica das sociedades organizadas (à semelhança dos organismos biológicos complexos) ou, como ele chamava as sociedades modernas, sociedades industriais.

Deve ter ficado claro, até agora, que solidariedade e moralidade são conceitos gêmeos. Como afirma Luhmann (1982), enquanto moralidade é definida em termos de solidariedade, solidariedade é definida positivamente como coesão ou união (e isto é uma definição tautológica ou circular) e, negativamente, como “resistência à dissolução”. Apesar das críticas, justificadas, às definições tautológicas de Durkheim, é necessário reconhecer que a identificação entre moralidade e solidariedade depende de um argumento bastante engenhoso e que pode ser bastante útil. O problema que levou Durkheim a efetuar o argumento em pauta é mais ou menos o seguinte: se a solidariedade é igual à moralidade e a moralidade é algo que pode ser estudado cientificamente, isto é, objetivamente, então precisamos de uma maneira de observá-la, classificá-la e explicá-la. Mas como observar algo que não se presta à observação? E em sua resposta fica clara sua engenhosidade: embora não se possa observar a solidariedade, se e onde ela existe, ela deve manifestar sua presença através de efeitos visíveis. Assim como a gravidade não é diretamente observável, ela gera efeitos que, estes sim, podemos observar. É através desses efeitos que podemos inferir sua existência. No caso da solidariedade, seu efeito mais sensível é o direito, cujo preceito básico é “uma regra de conduta sancionada” (Durkheim, 1999: 36). Assim, a fim de determinar os tipos de solidariedade, é necessário determinar os tipos de direito (ou de efeitos) que elas geram. E como o direito está ligado a sanções específicas, para se classificar os tipos de direito, deve-se, por seu turno classificar as diferentes sanções ligadas a ele.

Segundo Durkheim, existem dois tipos de sanções: as que visam atingir o agente em sua honra, sua fortuna, sua liberdade ou sua vida (isto é, visam privá-lo de algo que ele desfruta) e as que visam reparar as coisas ou restabelecer as normalidade das coisas que foram perturbadas. O primeiro tipo de sanção caracteriza o direito penal; o segundo, o direito civil, o comercial, o processual, o administrativo e o constitucional. É, então, a partir do exame desses dois tipos de direito que Durkheim vai classificar as diferentes formas de solidariedade social.

Todos estes conceitos são como que resumidos no conceito de “consciência coletiva”, que Durkheim define como “o conjunto de crenças e sentimentos comuns à media dos membros de uma sociedade que forma um sistema que tem vida própria”.

O conceito de consciência coletiva sofreu inúmeras críticas na época da publicação da Divisão do Trabalho; dentre elas, a de que era um conceito metafísico (referia-se a uma entidade que não podia ser empiricamente observada), moralmente aberrante (já que poderia sugerir que a moralidade não era responsabilidade dos indivíduos) e metodologicamente equivocado (Benton, 1977).

Uma forma de se entender o conteúdo mais profundo desta crítica (que não se resume apenas à impossibilidade de sua observação empírica) é através da distinção, operada por um dos maiores estudiosos contemporâneos da obra de Durkheim, Steven Lukes, entre o termo “conscience”, em francês, e sua tradução para o inglês.

O termo francês conscience, assim como “consciência” em Português, engloba o significado de dois termos em inglês: consciousness e conscience. Consciousness (1) diz respeito a sentimentos ou crenças acerca da própria existência e da existência do mundo exterior ou à representação de um objeto (conteúdo cognitivo, como quando se diz: “você tem consciência da existência desta mesa?”). Conscience (2), diz respeito à faculdade de se estabelecer, ou através da qual se estabelece, julgamentos morais (conteúdo moral, como quando se diz a alguém que pratica um ato desonesto:“você não tem consciência, não sabe distinguir o certo do errado?”).

Embora o primeiro sentido do termo possa fazer sentido como algo “além” das consciências individuais (crenças e representações que são compartilhadas, mas que não se encontram, em sua totalidade, na mente de qualquer indivíduo particular), o segundo sentido representa uma hipostasia do conceito de consciência coletiva, isto é, a consciência coletiva é vista como uma entidade sobre-humana que detém faculdades tipicamente humanas. Em outros termos, embora a sociedade possa ser concebida como um conjunto de crenças, valores, etc. coletivos (consciência coletiva 1), não faz sentido falar de sociedade como uma entidade capaz de efetuar julgamentos porque quem faz isto são as pessoas (consciência coletiva 2). E Durkheim nem sempre foi capaz de separar estes dois sentidos, freqüentemente se referindo à sociedade como uma entidade supra-individual, capaz de fazer coisas que apenas os indivíduos podem fazer.

Durkheim considerava que as críticas ao seu conceito de consciência coletiva implicavam na negação da existência do objeto da sociologia e, portanto, na impossibilidade de se construir uma ciência da sociedade. A publicação das Regras do Método Sociológico em 1895, dois anos após a publicação da Divisão do Trabalho, visa esclarecer estas duas questões, juntamente com outros dois problemas correlatos: demonstrar que a sociologia era não apenas possível, mas necessária; expor os métodos e as formas de explicação científicas adequadas ao objeto da sociologia (Benton, 1977). Escreverei sobre isto no próximo post.

Cynthia Hamlin

O Positivismo de Émile Durkheim 1



Semana passada, comecei meu curso de metodologia das ciências sociais no Doutorado em Sociologia. Para o desgosto geral dos alunos, costumo colocar diversas seções sobre positivismo, partindo de Durkheim, passando pelo empirismo lógico, pelo modelo nomológico-dedutivo e terminando com a auto-implosão do sistema inteiro por Karl Popper. A idéia é fazer com que o positivismo deixe de ser um simples xingamento e passe a ser compreendido como uma teoria do conhecimento fundamentalmente insustentável e que adquiriu diversas nuances ao longo do tempo. É interessante, por exemplo, que mesmo autores do porte de um Adorno ou de um Habermas ofereçam críticas bastante consistentes ao positivismo nas ciências sociais, mas implicitamente pressuponham que ele é uma teoria adequada para explicar a construção do conhecimento nas ciências naturais. Não é. De fato, como argumenta Ted Benton (1977), a incoerência desta teoria do conhecimento é tal que sua aplicação é impossível. Mesmo os simpatizantes declarados do positivismo, como é o caso de Durkheim, não conseguem sustentar suas prescrições metodológicas de forma consistente.

Inicialmente, pensei em me dedicar apenas à exposição de algumas das principais idéias metodológicas de Durkheim, relacionando-as com alguns de seus escritos substantivos, especialmente O Suicídio, que, a rigor, deveria ser uma aplicação da metodologia exposta nas Regras do Método Sociológico. Depois, consultando meus alfarrábios, dei-me conta de que há muito devia a mim mesma a sistematização das minhas notas de aula sobre este autor. São estas notas que compartilharei com vocês aqui, embora meu objetivo principal seja o de demonstrar por que Durkheim, assim como qualquer positivista, não consegue aplicar seu positivismo em sua obra substantiva. Na verdade, mesmo as Regras, que deveriam constituir sua obra positivista por excelência, revelam um sem número de contradições que apontam para uma concepção muito mais complexa de construção de conhecimento do que o positivismo autoriza.

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Qualquer texto ou curso sobre os autores clássicos levanta a questão de saber por que, depois de tantos anos, ainda os lemos. A verdade é que lemos os clássicos porque eles são clássicos. Mas o que os torna clássicos? Creio que uma das melhores respostas a esta questão foi dada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. Para ele, uma teoria é clássica “quando ela fornece um sistema interconectado de afirmações que não é mais convincente em sua forma original, mas que sobrevive sob a forma de um desafio, desiderato ou problema [...]. O texto retém sua relevância contemporânea na medida em que sua maneira de colocar problemas ainda pode ser aceita”. Entretanto, continua Luhmann, “ele se mantém como um padrão de autoridade em um sentido ambivalente: a partir dele, podemos inferir o que deve ser alcançado, mas não mais como [as coisas] devem ser alcançadas” (Luhmann, 1982: 4; ênfases no original).

Pode-se perguntar, entretanto, por que nós, cientistas sociais, ainda precisamos recorrer aos clássicos para colocar problemas. Na verdade, esta pergunta contém um viés positivista, pois pressupõe que a ciência se desenvolve sob a forma de acúmulo de conhecimento e, o que quer que os clássicos tenham produzido de verdadeiro, já foi incorporado nas teorias contemporâneas. Ocorre que não existe consenso sobre o que é verdadeiro no conhecimento científico (nem mesmo sobre o que é a verdade) e essa falta de consenso é particularmente presente nas ciências sociais. Isso significa que a argumentação assume uma importância central entre nós e, como afirma Jeffrey Alexander (1982), os clássicos nos fornecem uma linguagem comum, possibilitam uma economia na nossa argumentação quando podemos, por exemplo, afirmar que estamos usando o conceito “x” ou “y” no sentido que Fulano atribuiu ao termo, ou que estamos investigando a questão “z”, conforme colocada por Sicrano.

E o que faz de Durkheim um clássico? Quais os problemas colocados por ele e por que eles continuam a ser relevantes? Na verdade, muitos, mas podemos destacar dois problemas principais. O primeiro diz respeito à própria relevância da sociologia como uma forma de conhecimento. Existe uma forma “sociológica” de se perceber o mundo? Mais especificamente, a sociologia nos diz algo sobre o mundo que outras formas de conhecimento não o faz? O segundo problema, que de certa forma já pressupõe uma resposta afirmativa para a pergunta anterior (pois pressupõe a existência do objeto da sociologia), pode ser colocado da seguinte forma: como as nossas ações individuais se combinam no sentido de produzir os padrões de comportamento e as instituições que podemos observar em nossa vida cotidiana? Em outros termos, o que torna a sociedade possível? Isto constitui, de fato, um dos problemas centrais da sociologia e é conhecido como “o problema da ordem” (Alexander, 1988).

Existe ainda um interesse histórico na figura de Durkheim, embora esse interesse não assuma a mesma importância que um clássico assume nas ciências naturais porque, diferentemente dessas, a maneira como as ciências sociais foram institucionalizadas tem repercussões importantes para o papel que atribuímos a elas hoje. Assim, por exemplo, poucas pessoas se questionam sobre a influência das fontes de financiamento dos cientistas naturais, ou como as condições históricas que possibilitaram seu surgimento afetaram o tipo de perguntas e de respostas considerados legítimos. Certamente que também podemos, e devemos, fazer considerações dessa ordem nas ciências naturais, mas, como essas questões são mais visíveis nas ciências sociais (pelo simples fato da fragilidade do conhecimento produzido por nós ser mais evidente), elas sempre foram parte integrante da reflexão sociológica.

A trajetória institucional de Durkheim nos diz coisas importantes acerca do surgimento da sociologia como uma disciplina acadêmica. Embora não vá me deter em questões dessa ordem aqui, é importante enfatizar que, antes de Durkheim, a sociologia não era uma disciplina acadêmica, na forma como hoje se ensina nas universidades. Embora muitas das questões sociológicas já tivessem sido colocadas por filósofos sociais, historiadores, economistas políticos etc, elas só adquirem um viés propriamente sociológico após a institucionalização da sociologia como uma disciplina ensinada nas universidades. E Durkheim fez mais do que nenhum outro para institucionalizar a sociologia: foi a partir de um curso criado para ele em 1887, o “curso de ciência social e de pedagogia” da universidade de Bordeaux, que a sociologia entrou oficialmente no sistema universitário francês, embora sob a égide de “ciência social”. Foi apenas ao entrar para a Sorbonne, em Paris, em 1913, que o nome “sociologia” aparece na cátedra que Durkheim passou a ocupar: “Ciência da Educação e Sociologia”.

Conhecida por sua tradição humanista em filosofia, história e direito, a Faculdade de Letras de Bordeaux apresentou inúmeras oposições à entrada de Durkheim. O que se temia era que, ao enfatizar a sociologia em detrimento das disciplinas tradicionalmente humanistas, Durkheim acabaria por estabelecer uma espécie de “imperialismo sociológico” que, em conseqüência de suas explicações a partir de causas sociais, negasse a importância da liberdade individual e da responsabilidade moral dos indivíduos. Além disso, sua defesa da sociologia era interpretada por muitos como resultado de uma abordagem “agressivamente científica” para todos os problemas, tudo o mais sendo reduzido a “misticismo, diletantismo e irracionalismo” (Jones, 1986:2).

Também foi Durkheim o responsável pela fundação da primeira revista de ciências sociais da França, o L’Année Sociologique, cujas principais contribuições consistiram em enquetes anuais acerca da literatura sociológica produzida no mundo, assim como a publicação de artigos originais de sociologia. Foi, portanto, sua crença na pertinência de um conhecimento sociológico, concebido por como uma ciência natural da sociedade, que orientou sua produção intelectual e também política.

Cynthia Hamlin

terça-feira, 19 de agosto de 2008

O Corpo e excesso na literatura: uma elaboração acerca do êxtase (I)



Introdução

Embora a literatura não seja um campo imediatamente associável às questões sobre as quais tenho me debruçado, i.é., a mudança no estatuto do corpo diante das tecnologias de manipulação molecular da vida, a decisão de realizar uma incursão em um terreno tão alheio tem boa justificativa. Talvez não seja suficientemente conhecido o quanto certos discursos supostamente radicais acerca do estatuto do corpo na contemporaneidade, da necessidade de sua reconfiguração, do surgimento de um corpo pós-humano devem à literatura e arte modernistas. Eis um primeiro e bom motivo: reconhecer este débito; purgar-nos desse tipo de impostura intelectual.

Citemos aqui o futurismo, mas também o surrealismo e o dadaísmo como exemplos bastante concretos de antecipação temas relacionados ao "fim do corpo" e que contradizem tal desejo de originalidade. O corpo-máquina, do homem em simbiose com seu automóvel, de que nos fala Marinetti já em seu primeiro Manifesto Futurista; o corpo-fragmentado e remontado de modo a provocar a vertigem do inusitado, que encontramos nas bonecas articuladas ou nas graviras de Hans Bellmer(1); a busca de uma estética não-artística, a busca de uma experiência imediata, não reflexiva, que visa à carne, proposta pelo dadaísmo; tudo isso parece desconfortavelmente contemporâneo para que aceitemos imediatamente hipóteses de um fim do corpo, de um fim do humano, como grande novidade.

Embora relevante, embora tenha sido este meu ponto de partida no percurso de elaboração do presente ensaio, a motivação que o impulsiona é mais ampla - o que não significa que esse ponto não vá retornar com freqüência ao longo deste texto. Acredito que um determinado tipo de literatura, sensível ao ‘mal’, com diz Bataille, ao excessivo, ao abjeto, proporciona um mergulho na experiência moderna do corpo com uma força filosófica notável. Mantenhamos por um momento em suspensão essa idéia e nos perguntemos se o desejo pelo excessivo caracteriza apenas esse tipo de literatura que encontramos em Sade, Lautréamont, Bataille, ou há nele algo de essencial acerca do próprio exercício literário. Acredito, por exemplo, que na escolha de temas como a abjeção do poeta, a idolatria de Satã, que encontramos em Baudelaire são fundamentais para compreendermos o seu modernismo: o excesso é ali uma estratégia que nos impõe como questão os limites do exercício literário. Conta-se que Buñuel, após filmar a célebre cena do 'Cão Andaluz' em que um olho humano (supostamente) é cindido por uma navalha, passou uma semana de cama vomitando. O que se buscava ali?

Em seu texto ‘A Linguagem ao Infinito’, Foucault trabalha uma hipótese bastante interessante; hipótese que, de certo modo, já havia sido considerada por Benjamin em seu em seu ensaio acerca do nascimento da crítica literária. A literatura pressupõe não apenas o exercício de uma arte da narrativa, mas de um exercício metalingüístico acerca do fazer literário. A produção da arte como exercício reflexivo e meta-artístico, sustenta Benjamin, é uma conquista do proto-romantismo alemão(2). De modo semelhante, Foucault acredita que a literatura ocuparia o lugar vazio do sagrado em uma sociedade secularizada. Seu exercício pressupõe uma crise da representação em que a narrativa precisa debruçar-se sobre a legitimidade de ‘contar um conto’. Desta perspectiva, a literatura traz consigo a reflexão de seus próprios limites e, nessa qualidade, torna-se potencialmente excessiva. Ou seja, ela pressuporia um tipo de performatividade estética que se abre constantemente ao vazio e à finitude dentro dos quais esta performatividade é produzida.

Quem pensa o humano, pensa necessariamente os limites do humano; quem se debruça sobre o exercício literário, tal como o entende Foucault, depara-se com esses mesmos limites e com a questão de sua transposição. No final de sua vida, Simmel afirmou isso de vários modos: debruçar-se sobre a vida é colocar-se a questão da morte, colocar-se a questão da forma é impossível sem refletir sobre as forças de deformação. Pensar Apolo é refletir sobre Dionisos.

Nem todo exercício literário é materialmente excessivo, todavia. Nem toda literatura dirige, não apenas seu olhar, mas o seu passo em direção a esta região de morte e de loucura, ao terreno de Dionisos – o estrangeiro, o louco e o que faz enlouquecer; aquele que morre e ressuscita periodicamente. Menciono e trabalharei aqui um autor excessivo: Antonin Artaud, este que esteve entre os surrealistas, mas achou-os por fim demasiadamente bem comportados, ansiosos demais para servir a uma causa, a do socialismo, por exemplo, para serem levados a sério. A respeito de sua obra, como não admirar o ensaio que Susan Sonntag nos oferece à guisa de introdução ao Selected Writings que ela própria organiza a partir das cartas, poesias, roteiros, manifestos escritos por Artaud. O ‘literário’ em Artaud seria estruturado como desejo de uma apreensão total da subjetividade. Ou seja, a apreensão literária enquanto exercício de expressividade do sujeito é necessariamente finita, precária; ao mesmo tempo, ele a deseja total, absoluta(3).

A questão literária e meta-literária que se propõe Artaud abre-se em um outro sentido que buscarei investigar neste ensaio a partir de diversas fontes. Não me interessa aqui o tema da subjetividade na literatura do mal, nem temas correlatos como o da representação e expressão, mas a questão do corpo. Interessa-me o corpo de Dionisos, um corpo na vertigem da decomposição que aparece num tempo em que a literatura ocupa e aparentemente desloca o sagrado.

Ocupar o lugar do sagrado neste contexto significa algo bastante distinto daquilo que temos em mente quando dizemos que a ciência ocupou o lugar do dogma. Se é bem verdade que também nesse movimento chegou-se ao religioso, como prova a religião positivista de Comte, interessa-me um tipo de ocupação do sagrado em que o corpo descobre-se na vertigem, ou seja, configura-se precariamente na instabilidade. Uma elaboração cerebral disto que acabamos de dizer nos é proporcionada pelo dadaísmo, por exemplo, em sua busca em atingir a sensibilidade antes de atingir a consciência . Bataille procura durante muito tempo uma estética que materialize uma experiência mística, um salto para além da lógica do trabalho, da razão, das formas produtivas. Mas o corpo em vertigem que nos interessa como dimensão fundamental dessa experiência artística aparece de um modo mais brutal nos escritos que têm, como Sade ou Lautréamont, ou ainda Baudelaire, o mal como campo privilegiado da literatura. Pensemos aqui em Lautréamont. Cito uma passagem, entre muitas dos seus Cantos de Maldoror, com essa capacidade de produzir a vertigem.

He cogido entonces un cortaplumas, cuya hoja tenía um filo muy cortante, y me he hendido la carne em los sítios em que juntaban los lábios. Por um momento creí haber conseguido mi objeto. Examine em um espejo esta boca desgarrada por mi proprio deseo! Era um error! La sangre que corria com abundancia de las dos heridas impedia, además, distinguir si era aquello realmente la risa de los otros (DUCASSE, 1982, p. 40-41).


Ou ainda esta:
No encontrando lo que buscaba, levante mis párpados atarrados aún más arriba, hasta que distinguí un trono formado de excrementos humanos y de oro, sobre el cual reinaba, lleno de estúpido orgullo y con el cuerpo envuelto em um sudário hecho com sábanas sucias de hospital, aquel que se tutila el creador! Tenía em la mano el tronco podrido de um hombre muerto, y se llevaba, alternativamente, de los ojos a la nariz y de la nariz a la boca; una vez a la boca puede adivinarse lo que hacía (DUCASSE, 1982, p. 222)


Como não tremer diante dos horrores dos Cantos de Maldoror, diantes dos sofrimentos terríveis de Justine, e do regozijo de um certo Marquês? Interessa-me portanto o corpo em vertigem, o corpo diante do precipício, que é um aspecto importante da literatura excessiva que se produz em Lautréamont, em Artaud, em Rimbaud, Baudelaire ou Sade. “La lectura de Maldoror es un vértigo. Ese vértigo parece el efecto de la aceleración de un movimiento tal que el envolvimeinto del fuego, en el centro del cual uno se encuentra, procura la impresión de un vacío ardiente o de una inerte y sombría plenitud” (BLANCHOT, 1990, p. 73). Acredito que encontramos uma elaboração bastante sofisticada do sentido filosófico dessa vertigem na obra de Bataille – ele próprio capaz de um exercício literário excessivo, como encontramos na Histoire de l’oeil. Refazer em alguma medida o significado filosófico desse exercício seria um primeiro passo para nos ocuparmos de suas implicações sociológicas. Este, por seu turno, seria importante para virmos a compreender a atual mudança que se opera no estatuto do corpo. Tenho ainda a esperança que o texto seja divertido.

Notas
(1)“Fragmentar, decompor, dispersar: essas palavras se encontram na base de qualquer definição do ‘espírito moderno’ (MORAES, 2002, p. 56)
(2)Benjamin tem em mente nomes como os irmãos Schlegel e Novalis, mas também Fichte. Ver ‘O Conceito de Crítica no Romantismo Alemão’ (BENJAMIN, 1996)
(3)Dessa perspectiva, Artaud seria mais um, embora não seja qualquer um, na fila de pensadores que se colocaram a problemática Kantiana, nomeadamente, a existência de uma esquizofrenia transcendental e insolúvel entre o sujeito pensante e o sujeito pensado. Fichte, Hegel estruturaram suas contribuições a partir desse nó essencialmente moderno. Mais uma vez: o problema aqui é um problema da ordem do representar. A dicotomia alma/mente versus expressão, entre o que é pensado e o que objetivamente expressado, aparece na obra de Artaud de modo obsessivo, o que justificaria a leitura de Sonntag e se coadunaria com a suposição foucauldiana: a literatura constitui-se historicamente como exercício meta-literário.

Jonatas Ferreira
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(nas carreiras e por editar)

domingo, 17 de agosto de 2008

Rearrumando a Casa



O Cazzo está tentando uma mobília nova, umas rearrumações para tornar mais confortável a navegação e visualização de nossos posts. Se nada do que fizermos convencer muito, a gente volta para nosso velho e soturno ambiente. Jonatas

sábado, 16 de agosto de 2008

Obscenidades


Foto de Ramon Martinez

Heraldo Souto Maior me enviou esta notícia por e-mail. Decidi compartilhá-la.

Um movimento subterrâneo luta pela igualdade da mulher na Igreja

José Luis Barbería

16/08/2008 –UOL Mídia Global

"Em nome da Mãe, da Filha e da Espírito Santo. Deusa nossa, acolhe a nós, cristãs... Mãe nossa que estás no céu..." As teólogas feministas nos propõem inverter, subverter a linguagem de gênero da liturgia católica para que comprovemos a apropriação masculina da própria idéia de Deus realizada através dos séculos. Pensam que, de tanto representar o Altíssimo com figuras masculinas e de excluir a mulher dos estamentos do poder religioso, as hierarquias católicas acabaram "violando a imagem de Deus nas mulheres", apagando a parte feminina do Supremo Criador.

Poucas imagens podem ser tão obscenas em nossas sociedades católicas quanto a exposição pública de uma mulher nua pregada na cruz. E poucas coisas irritam tanto o Vaticano quanto o questionamento do papel atribuído à mulher na Igreja. "A ordenação das mulheres é o primeiro passo para recomeçar a comunidade de iguais que Jesus queria. A Igreja se empobrece clamorosamente pela carência de uma contribuição feminina mais plena e responsável", indica a freira María José Arana, antiga pároca da Congregação do Sagrado Coração, doutora em história e autora do livro "Mulheres Sacerdotes, Por Que Não?"

Há uma revolta feminista que é travada surdamente há décadas nas catacumbas da Igreja oficial, uma rebelião seguida clandestinamente em não poucos conventos, que o Monitum (advertência canônica oficial) editado há seis anos pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Inquisição) e hoje papa, Joseph Ratzinger, não conseguiu silenciar nem as posteriores ameaças de excomungar quem participasse da ordenação de mulheres. A democratização-feminilização modificaria sem dúvida a visão interior e exterior da Igreja e desbarataria a trama vertical do poder: bispo, cardeal, sumo pontífice, de forma que a eleição do papa, ou papisa, não mais caberia apenas aos 118 homens purpurados cardinalícios reunidos em conclave.

Portanto, compreende-se que o recente livro de Carlo María Martini, "Colóquios Noturnos em Jerusalém", tenha tido o efeito perturbador da pedra atirada às águas doutrinárias estancadas. Figura de referência para as correntes reformistas, embora já condenado pelo papado, o cardeal convidou seus pares, príncipes da Igreja, a discutir o sacerdócio feminino, o fim do celibato obrigatório e a substituição da encíclica Humanae Vitae, que proíbe inclusive o uso do preservativo. São mensagens de esperança para essa outra Igreja de base, renovadora, que não se reconhece em sua hierarquia atual.

Mas, com exceção do presidente da Conferência Episcopal alemã, o arcebispo Robert Zollitsch, partidário da revisão do celibato, as propostas de Martini não obtiveram resposta além do silêncio do Vaticano e das hierarquias nacionais. Isso que as pesquisas mostram, também na Espanha, que onde a autoridade católica encontra escândalo e matéria de anátema os fiéis vêem aproximação de uma sociedade que aboliu a discriminação do sexo. É tão audaz a proposta de Martini em uma Igreja de templos abandonados, sacerdotes idosos e vocações escassas, composta em 75% por mulheres?

Não é preciso ser mulher e crente para constatar que as pregações e litanias, os cânticos e as preces que os fiéis católicos elevam ao céu surgem majoritariamente de gargantas femininas; que são as mãos de mulheres que cuidam da limpeza e do funcionamento dos templos: desde as flores e as toalhas dos altares até o ar-condicionado, passando pela coleta das esmolas e o cuidado dos hábitos sacerdotais. O que aconteceria se, como propõem algumas teólogas feministas, as mulheres decidissem não ir às igrejas até que se reconhecesse sua igualdade? Um olhar para as igrejas espanholas, transformadas em lares espirituais para a terceira idade, comprova essa avassaladora presença feminina. Segundo a Confederação Espanhola de Religiosos e Religiosas (Confer), em 31 de janeiro de 2007 havia na Espanha 18.819 religiosos e 48.489 religiosas.

Andrés Muñoz é um dos 8 mil sacerdotes, 22% do total, que vivem hoje na Espanha casados ou convivendo em casal. Tem 27 anos de casamento com Teresa Cortés, a mulher que hoje preside o Movimento para o Celibato Opcional (Moceop). Eles têm um filho de 25. "O mal não reconhecido da Igreja Católica é o autoritarismo, a falta de democracia interna e a rejeição à liberdade de pensamento", afirma. Sua mulher está convencida de que o celibato obrigatório é, antes de mais nada, um instrumento para o controle dos sacerdotes. Essa senhora de rosto suave e expressão decidida - "filha do inferno", a chamaram os membros de um programa de rádio -, pensa que a humanidade e as religiões contraíram uma grande dívida histórica com a mulher.

A aceitação do sacerdócio e do bispado feminino entre os protestantes e anglicanos deixa a Igreja Católica diante da pergunta de até quando poderá continuar ignorando o fato da emancipação feminina e da igualdade dos sexos. De quanto tempo vai precisar para mudar o olhar que os santos padres, desde santo Agostinho a santo Tomás, atiraram sobre a mulher, esse ser que, assim como Aristóteles, julgaram inferior, submisso, de natureza "defeituosa", incompleta, "imbecilitas", impura? Quanto ainda vão demorar para livrar a mulher do sentimento de culpa por ter entregado a maçã a Adão, para libertar-se inteiramente dos preconceitos que proibiam as mulheres de entrar nos tempos durante seus períodos de menstruação, ou simplesmente de tocar nos vasos sagrados? O machismo da sociedade também tem suas raízes na cultura cristã e continua vigente na idéia, exposta na primeira encíclica do papa Bento 16, de que a mulher foi criada por Deus "como ajuda do homem".

Casada, mãe de um filho, membro do Movimento para a Ordenação de Mulheres, uma iniciativa que já convocou dois congressos internacionais, Christina Moreira não tem ilusões sobre a evolução previsível de sua Igreja. "A última coisa que o papa fará será aceitar o sacerdócio feminino", prevê. "Desde que o Sínodo da Igreja da Inglaterra (anglicana) aceitou a ordenação de mulheres, em 11 de novembro de 1992, muitos fiéis revoltados com essa decisão estão passando para a Igreja de Roma", ela explica. Está convencida de que o cisma anglicano vai reforçar o pólo conservador do Vaticano. "Eles não gostam que as meninas comecem como coroinhas porque sabem que algumas terminarão aspirando ao sacerdócio", aponta Rosa de Miguel, outra mulher de vocação sacerdotal que diz se sentir "com as asas cortadas e como uma filha abortada da Igreja".

Depois de uma experiência religiosa muito intensa - "quando você é homem lhe dizem que tem vocação; se for mulher, que está neurótica ou que vá ser freira" -, Rosa decidiu mergulhar em sua profissão e se distanciar. Cansadas de sofrer, muitas outras acabaram suplicando a Deus que não as chame mais. Clama até o mais agnóstico dos céus que o Código de Direito Canônico, renovado em 1983, afirma que só o homem pode ser leitor das Escrituras ou acólito.

Os bispos, os cardeais e o papa acreditam verdadeiramente que as novas gerações de mulheres aceitarão submissamente um lugar subalterno na Igreja, por mais que ultimamente venham pela mão dos movimentos mais fundamentais? A ausência de uma perspectiva razoável de evolução e o conservadorismo dos bispos que dominam a Conferência Episcopal Espanhola desesperam boa parte da militância cristã reformista, majoritariamente de esquerda, assim como os religiosos e sacerdotes mais comprometidos com a renovação doutrinária.

Na intricada associação Redes Cristãs, que reúne cerca de 150 coletivos sob o lema comum "Outra Igreja é possível", as feministas católicas mais irreverentes, que em 8 de março se manifestam ao grito de "Se já temos duas mamas, para que queremos um papa?", se encontram com outras que evitam atitudes desrespeitosas. Embora o temor das represálias esteja presente, particularmente nas freiras e professoras de religião, a principal razão é evitar se desligar de uma congregação educada na obediência cega à hierarquia. "Colocar-se à margem representaria deixar a Igreja nas mãos dos Legionários de Cristo", raciocina Pilar Yuste, 44 anos, catedrática de teologia e professora de religião. "Apesar de não querermos cismas, devemos nos rebelar contra as estruturas antidemocráticas da Igreja", indica Teresa Cortés.

A brecha que as separa da atual hierarquia é tão profunda que os grupos mais radicais atuam à margem da Igreja oficial. Suas missas alternativas se desenrolam no fio da legalidade eclesiástica ou em clara ilegalidade. Alteram o rito litúrgico em busca de maior espontaneidade e liberdade, consagram pão e vinho normais em vez das hóstias de pão ázimo (sem levedo) e do vinho de missa, e também não é estranho que algumas dessas missas sejam oficiadas por mulheres que assumem por sua conta e risco a tarefa de consagrar, desafiando a pena de excomunhão. O vendaval conservador das últimas décadas desconcertou sobretudo as freiras e as católicas seculares que, animadas pela mensagem de abertura do Concílio Vaticano II (1962-65), começaram a se aprofundar nos assuntos teológicos, acreditando que a reforma resgataria a mulher de seu papel secular subalterno na Igreja.

E essas mulheres, peritas teólogas, percorreram seu caminho, descobriram muitas coisas para se conformar com o argumento curioso - a Igreja do século 21 transfere seu machismo ao próprio Jesus Cristo - de que não é possível ordenar as mulheres porque o Salvador estabeleceu que os 12 apóstolos fossem homens.

Do ponto de vista teológico, porém, não há um empecilho dogmático que proíba o celibato opcional ou a ordenação da mulher. De fato, os apóstolos eram casados e parece igualmente comprovado que na Igreja primitiva houve diaconisas e presbíteras, mulheres consagradas. As historiadoras religiosas se empenham em obter argumentos para demonstrar que a teórica impossibilidade de ordená-las sacerdotes não é uma verdade revelada, mas sim, como ocorre no islamismo e no judaísmo, produto da interpretação masculina da história ao longo de séculos de marginalização social da mulher.

A esta altura, no entanto, os subterfúgios dialéticos encontram já cansadas muitas dessas católicas que exigem que a hierarquia seja coerente com a igualdade. Sua mensagem é que a Igreja Católica perderá as mulheres, como já perdeu os intelectuais e os operários. Elas, que são as que amam a Deus em maior número, já não aceitam que o sexo masculino atribuído ao Supremo Criador sirva para perpetuar a servidão e a submissão secular da mulher. É que, a não ser que se insulte a condição feminina, não há resposta justificada possível para a pergunta: "Mulheres sacerdotes, por que não?"

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

domingo, 10 de agosto de 2008

É Possível Democracia sem Debate Público? (Parte II)


Índice de Fragilidade do Estado. Criado por Monty G. Marshall and Jack Goldstone, do Center for Global Policy, George Mason University. (Disponível em: http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm)

Enquanto diversos países do mundo se engajam em campanhas pela quebra do silêncio em torno do aborto - seja como forma ajudar as mulheres a lidar com o turbilhão de sentimentos contraditórios que o procedimento gera, seja como forma de evitar que o estigma que envolve o tema não impeça o acesso à informação - o Brasil parece ter optado pelo silêncio. Talvez o uso do termo “opção” não seja adequado. Mais adequado seria afirmar que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados silenciou um debate que, independentemente de seu conteúdo ou de seu resultado, deveria estar no cerne de qualquer decisão em uma sociedade democrática.

Desde 1991, o Projeto de Lei 1135/91 tramita no Congresso Nacional. O PL visa à supressão do artigo 24 do código penal, que prevê uma pena de um a três anos de detenção a toda mulher que “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. No dia 9 de julho deste ano, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB- RJ), presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e relator do PL, levou seu parecer para ser votado pelos membros da Comissão. Parte do problema é que seu parecer estava pronto antes mesmo das audiências públicas que visavam esclarecer a questão para os membros da Comissão. Não menos significativo é o fato de que o parecer considerava o PL inconstitucional, quando não há nada na Constituição que sugira tal fato. Para entender os problemas envolvidos no parecer do deputado, veja a petição redigida pelo juiz Roberto Lorea e pela antropóloga Débora Diniz, reproduzido em post abaixo. O caráter antidemocrático da votação, conduzido de forma a beneficiar as posições contrárias ao projeto, foi resumido pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfêmea) em uma nota pública:

- o PL foi debatido em apenas duas audiências públicas, o que é pouco para a complexidade do tema;
- metade dos especialistas convocados para a primeira audiência eram integrantes de igrejas cristãs, iniciativa que afronta o princípio constitucional da laicidade do Estado brasileiro, que não deve orientar suas leis por convicções religiosas de quaisquer igrejas;
- as duas audiências públicas foram realizadas quando o relator já havia constituído posição e apresentado seu parecer; ao longo das audiências, vários parlamentares adiantaram seu voto, ou seja, em que pese o esforço de parlamentares aliados, especialistas convidados e da sociedade civil, essas audiências representaram uma farsa pois o parecer do relator foi seriamente questionado na sua argumentação jurídica e, mesmo assim, está mantido como documento da CCJC, pelo presidente da Comissão.(http://www.cfemea.org.br/noticias/imprimir_detalhes.asp?IDNoticia=721)

A questão, portanto, é grave. E por uma série de razões. É inconcebível, por exemplo, que um legislador de um país desconheça a Constituição. Mais inconcebível ainda é que, apontadas suas interpretações equivocadas, o documento redigido com base em seus equívocos continue a servir como referência para uma decisão que afetará a vida de milhões de pessoas. Também é inconcebível que um Estado laico se apóie tão fortemente na posição de Igrejas – especialmente quando esta posição é tratada como algo monolítico, sem que de fato o seja. Assim como ocorre com outras instituições da sociedade civil, a diversidade de opiniões também ocorre no seio do cristianismo, inclusive da Igreja Católica. A posição da CNBB, segundo a qual o aborto é proibido em todo e qualquer estágio da gravidez, data do final do século XIX, no pontificado do papa Leão XIII. Ao longo de sua história, a Igreja Católica oficialmente apresentou graus de tolerância distintos em relação ao aborto com base na idéia de Aristóteles de que a alma humana só apareceria nos fetos masculinos aos 40 dias de gestação e, nos femininos, aos 90 (como diria Judith Butler, viva Aristóteles!). Essas datas variaram ao longo da história da Igreja, indo de 40, 80 ou 116 dias, durante os quais o aborto era tolerado. Foi ao expor esta diversidade de posições e ao defender o direito de escolha das mulheres de levar uma gravidez a termo que a teóloga e freira católica Ivone Gebara foi forçada a dois anos de silêncio pelo Vaticano. Que a Igreja Católica se veja na obrigação de calar a boca de seus dissidentes e apresentar suas posições oficiais sem levar em conta a diversidade de opiniões é uma coisa. Que um Estado laico que se propõe democrático o faça, e se apoiando na posição autoritária de uma das Igrejas que compõem a sociedade civil, são outros quinhentos.

O que constitui a vida, e a vida humana, em particular, é uma questão complexa e que tem se tornado progressivamente mais difícil de determinar à medida novas tecnologias de produção e de reprodução da vida têm aparecido. De fato, a Constituição brasileira leva em consideração esta dificuldade e estabelece que a proteção da vida não pode ser determinada constitucionalmente a partir de sua concepção, mas deve ser regulamentada a partir de leis ordinárias. Foi isto, por exemplo, que garantiu a aprovação no Congresso Nacional, em 2005, do uso de células-tronco embrionárias advindas de embriões não-utilizados pelas clínicas de fertilização. Por que, no caso do aborto, o direito à vida seria determinado constitucionalmente a partir da concepção, como acredita, equivocadamente, o deputado Eduardo Cunha? Creio que a resposta é relativamente simples: porque um argumento moral lhe serve de substrato. Note-se que estou usando do que se poderia chamar de uma grande dose de caridade interpretativa e considerando o relatório do deputado como baseado em uma crença real, ainda que equivocada, e não como um ato de má-fé. A idéia implícita é a de que a mulher é responsável por toda e qualquer gestação que derive de um ato consentido. Assim, em abstrato, o princípio moral é válido. O problema surge quando consideramos que princípios morais não podem ser determinados a partir de um universalismo abstrato à maneira do imperativo categórico de Kant, mas da realidade, de casos concretos. A forma como a realidade é atualmente considerada nos julgamentos morais varia enormemente, indo desde uma espécie de relativismo moral absoluto, como defendido pelo comunitarismo, a perspectivas universalistas não-essencialistas, como defendidas pelo realismo crítico, ou por algumas vertentes (pós-? Neo-?) hegelianas do pós-estruturalismo. Não pretendo entrar nesta discussão aqui, mas apenas apontar que a questão é complexa e tem que ser debatida, e não tratada como se fosse auto-evidente.

Sabe-se, por exemplo, que, mesmo com o uso dos métodos contraceptivos mais eficazes, como é o caso da pílula, existe uma chance de cerca de 2% em um ano de que ela falhe. E isso considerando que as mulheres de fato tenham acesso à informação e a métodos eficazes como este. Isto significa que, ainda que o sistema de educação e de saúde pública do Brasil garantisse o acesso universal a ambos (o que, convenhamos, não é o caso), o aborto, assim como ocorre no resto do mundo, ainda seria utilizado como recurso por uma grande parte das mulheres. De fato, de acordo com o Cfêmea, estima-se que ocorram cerca de um milhão de abortos por ano no Brasil, o que dá uma média de 2.740 por dia. Se seguíssemos a legislação atual, seriam 1 milhão de "criminosas" nas cadeias brasileiras a cada ano, o que, na prática, não ocorre. Apesar disso, depois que o tema passou a ser discutido, têm ocorrido tentativas de que se reforçar a lei, como o pedido de investigação por aborto de cerca de 10 mil mulheres no Mato Grosso do Sul, neste ano. Antes que se parta para a defesa de ações como esta, seria conveniente observar alguns dados sobre a situação no resto do mundo. De acordo com a Women on Waves,

-Mais de 1/3 de todas as gestações no mundo são não-planejadas.
-Todos os anos, cerca de 1/4 de todas as mulheres grávidas do mundo decidem fazer um aborto (cerca de 42 milhões por ano).
-Aproximadamente 25% da população mundial vive em países com leis sobre o aborto altamente restritivas, especialmente na América Latina, África e Ásia.
-O status legal do aborto faz pouca diferença em relação aos níveis de incidência estimada de abortos (torná-lo ilegal não diminui seu número)
-Onde é ilegal, são principalmente as mulheres sem recursos financeiros que recorrem a métodos não-seguros de aborto, o que resulta na morte de uma mulher a cada 7 minutos.
-20 dos 42 milhões de abortos efetuados a cada ano são considerados não-seguros.
Entre 10 e 50% dos abortos não-seguros requerem intervenção médica, o que nem sempre ocorre porque, em países em que é ilegal, as mulheres não procuram assistência.
-Quando desempenhado por pessoas competentes e sob condições sanitárias adequadas, o aborto é um procedimento bastante seguro. Nos EUA, por exemplo, a taxa de mortalidade por abortamento é de 0.6 por 100.000, isto é, mais seguro do que uma injeção de penicilina.
-Quando o aborto foi proibido na Romênia em 1996, a taxa de mortalidade materna aumentou drasticamente, tornando-se 10 vezes maior do que no restante da Europa. Quando foi descriminalizado novamente, em 1989, a taxa voltou a cair.

Percebe-se, portanto, que a criminalização do aborto traz consigo um efeito perverso: um reforço das desigualdades que se reflete em maiores taxas de mortalidade materna entre mulheres de classe baixa. Além disso, mesmo para as mulheres de classe média que podem pagar entre cerca de R$ 1.500 e R$ 3.000 por um aborto em uma clínica com condições mínimas de higiene e com um médico minimamente capacitado, não há controle sobre os procedimentos efetuados. Vale lembrar que, para cada Morgentaler guiado por razões humanísticas existe um mercenário e um incompetente de plantão. Foi por razões como estas que a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou no início deste mês uma resolução que pede que todos os Estados-Membros da União Européia despenalizem o aborto e melhorem a prestação de serviços de contracepção, garantindo assim o direito de todas as cidadãs européias.

Se você ainda tem dúvidas sobre a importância de um debate sério sobre este assunto, compare o mapa relativo à fragilidade do Estado colocado no início deste post com o mapa relativo às leis sobre o aborto, abaixo. Informe-se. Pense. Discuta. É isso que faz uma democracia forte. E por falar nisto, não pude deixar de notar que, dos exatos 100 posts escritos neste blog, apenas os relativos ao aborto não tiveram um comentário sequer. Estranho.



Mapa das Leis sobre o Aborto (disponível em http://www.womenonwaves.org/set-158-en.html)
Legenda:
Vermelho: aborto ilegal em todos os casos ou apenas permitido em caso de estupro ou para salvar a vida da mãe
Rosa: aborto legalmente permitido apenas para salvar a vida da mulher ou para proteger sua saúde física
Amarelo: aborto legalmente permitido apenas para proteger a saúde mental da mulher
Azul: aborto legalmente permitido por razões socioeconômicas
Branco: aborto sob demanda da mulher.

Cynthia Hamlin

domingo, 3 de agosto de 2008

É Possível Democracia sem Debate Público?



Tem gente que tem uma capacidade de síntese fantástica. Luciano Oliveira é um caso desses. Imaginem que ele conseguiu resumir a teoria da ação comunicativa de Habermas em sete palavras. Sim, meus amigos e minhas amigas. Sete palavrinhas dão conta daqueles dois tijolões que servem de base para a sua teoria da democracia: “é conversando que a gente se entende”. E o resumo de Luciano ainda tem uma vantagem em relação à teoria de Habermas. Ele não pressupõe o consenso para o entendimento, apenas a abertura ao diálogo com base na exposição de pontos de vistas distintos e uma certa dose de crença na boa-fé das pessoas.

É justamente esta exposição de pontos de vista alternativos calcados na boa-fé que tem caracterizado um debate que venho acompanhando nos jornais do Canadá nos últimos dias. Isso me fez pensar sobre a qualidade da democracia brasileira. Explico. Talvez por uma dessas coincidências do destino, um mesmo tema, o aborto, tem sido objeto de debate nos dois países. No Brasil, a questão ressurgiu com mais força quando o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, sugeriu no ano passado que o aborto é uma questão de saúde pública e, como tal, sua descriminalização deveria ser debatida pela sociedade civil e pelo Estado. No Canadá, a questão ressurge quando, em primeiro de julho deste ano, a imprensa divulgou a lista dos indicados à maior honraria concedida pelo governo a membros da sociedade civil: a ordem do Canadá. Entre os 75 indicados, o médico de 85 anos, Henry Morgentaler.

Morgentaler é um judeu polonês sobrevivente do holocausto. Anti-Zionista declarado, recusou-se a emigrar para Israel após a Guerra e, para horror de sua família, aceitou uma bolsa de estudos para estudar medicina numa universidade da Alemanha. Como parte do acordo firmado após a Guerra, famílias alemãs deveriam alojar os bolsistas até o fim de seus estudos. Foi assim que Morgentaler formou-se em medicina e, nos anos de 1950, emigrou para o Canadá. Lá, juntou-se a um grupo humanista, o Humanist Fellowship of Montreal. Como representante do grupo, certa vez afirmou, perante um comitê do governo federal do Canadá, que acreditava no direito de todas as mulheres a um aborto seguro. Isso ocorreu em 1967, quando o aborto no Canadá era ilegal, exceto quando a gravidez colocava em risco a saúde da mulher. Seu pronunciamento virou manchete dos principais jornais do país e, a partir de então, dezenas de mulheres começaram a aparecer em sua clínica, implorando que ele lhes proporcionasse um aborto seguro. Diante da ilegalidade do ato, viu-se forçado a afirmar que, ainda que como médico pudesse fazê-lo, não o faria porque isso era contra a lei. Foi então que veio a reflexão. Em suas próprias palavras, “fui enredado em minha própria retórica. Senti-me como um covarde e um hipócrita” (citado no Globe and Mail, 18 de janeiro de 2003).

Em 1968, ele fez um aborto na filha de amigos e, no ano seguinte, fechou sua clínica de medicina familiar e abriu outra, onde passou a fazer abortos ilegais de maneira aberta. Chegou a ser preso e esteve envolvido em batalhas legais e ameaças por parte de diversos grupos, especialmente religiosos. Apesar disso, afirmou nunca ter acreditado que um júri popular o condenaria por um crime, o que se mostrou verdadeiro. Em 1970, quando foi preso pela primeira vez, foi considerado inocente por um júri composto de 11 homens e uma mulher. Quatro anos mais tarde, um grupo de juízes católicos de Quebec recorreu do veredicto e ele foi preso pela segunda vez. Foi absolvido nas duas outras vezes em que foi a júri popular. Em 1975, o governo de Quebec instituiu o que se conhece como a emenda Morgentaler, que estabelecia que o veredicto do júri popular não poderia mais ser revertido. No ano seguinte, o Partido Québécois determinou que a lei anti-aborto não seria mais aplicada na província de Quebec.

Mas as batalhas legais não pararam por aí. Em 1983, Morgentaler e mais dois colegas foram acusados por um tribunal de Ontário de efetuar abortos ilegais. Foram novamente absolvidos pelo júri popular. De apelo em apelo, o caso foi parar na Suprema Corte do Canadá (Globe and Mail, 18 de janeiro de 2003). Em 1988, a Suprema Corte determinou que a lei que restringia o aborto aos casos de risco de vida para a mãe era inconstitucional, pois violava o direito à “segurança da pessoa” previsto na Carta Canadense de Direitos e Liberdades. Desde então, não há uma lei que regulamente o aborto naquele país. A decisão de se submeter ou não a um aborto é considerada uma questão de foro íntimo e não precisa do aval de médicos, juízes ou quem quer que seja (Blogher – the community of women who blog. Disponível em : http://www.blogher.com/henry-morgentaler-awarded-order-canada-abortion-debate-re-opened).

A indicação de Morgentaler à Ordem do Canadá tem, no entanto, gerado um grande debate na mídia. De acordo com uma pesquisa de opinião desenvolvida em 2001, 46,6% dos canadenses eram favoráveis ao aborto, 37,6% eram contra e 15,8% não sabiam ou se recusaram a responder. Como se vê, esta não é uma questão consensual e o debate que se coloca hoje na mídia canadense é em que medida um defensor ardoroso de uma causa que divide de tal forma a opinião pública pode ser indicado a receber a maior honraria do governo Canadense. Curiosamente, embora diversos leitores tenham se manifestado francamente contra o aborto e os grupos pró-vida tenham aproveitado o caso Morgentaler para expor seus pontos de vista, em nenhum momento observei o debate pender para um retorno à sua criminalização. Pelo menos não nos meios de comunicação de massa. Por exemplo, a seção de sociologia do Globe and Mail (pois é, eles têm uma seção de sociologia aos sábados) tem publicado diversos artigos com depoimentos de mulheres que já se submeteram a um aborto. A idéia é que o tema deixe de ser um tabu e que “o estigma em torno do procedimento que não ousa dizer seu nome” possa ser olhado de frente e debatido de maneira aberta (Globe and Mail, 19 de julho de 2008). Só assim as mulheres (mas não o Estado) podem decidir o que fazer diante de uma gravidez não-planejada.

A idéia de botar a boca no trombone não é nova. Em 1971, quando o aborto ainda era crime na França, um grupo de artistas e intelectuais (dentre elas Simone de Beauvoir e Catherine Deneuve) escandalizou o país com o “Manifesto das 343”. Lá, declararam publicamente que já haviam feito um aborto. E algumas delas aparentemente nem tinham feito, como parece ser o caso de Beauvoir. Em 1972, a revista americana MS. Magazine publicou uma lista semelhante, composta de 53 mulheres. Em 2004, a ativista feminista Jennifer Baumgardner desenhou (e vestiu!) a camiseta com os dizeres “Eu fiz um Aborto” que ilustra este post e que hoje é comercializada pelas ONG´s Planned Parenthood e pela Women on Waves. Quem quiser comprar uma pode encomendar no site do Women on Waves: http://www.womenonwaves.org/article-444-pt.html.

No próximo post, algumas palavras sobre como o “debate” está se desenvolvendo no Brasil. Enquanto isso, deixo vocês com uma música da banda canadense Me Mom & Morgentaler.

Cynthia Hamlin


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