quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Brasil via Paris: descobertas de um estudante brasileiro no país dos bricoleurs


Pour Philippe, Roméo et Olivier

Parodiando Gilberto Freyre, no outono de 1986 vivi a aventura do exílio! Um « exílio » com aspas, bancado por uma bolsa de estudos do governo brasileiro para fazer um doutorado no exterior. A França foi o país escolhido. Lá passei quatro anos, de onde voltei com uma tese e o olhar antropológico que ainda hoje uso para observar meu país. Olhar de antropólogo amador, certo, que comecei a desenvolver naturalmente, sem nenhum preparo ou projeto, feito o burguês fidalgo de Molière que fazia prosa sem o saber.

Não há nenhum mérito nisso, pois todo viajante é um antropólogo natural. Ao cairmos em ambiente estranho, somos naturalmente levados a observar coisas com que não estamos acostumados e que, por isso mesmo, achamos estranhas. Hábitos, costumes, gestos, expressões etc., porque são familiares aos que lá vivem, passam completamente despercebidos da população « nativa » e chamam nossa atenção. A partir desse momento, já estamos inocentemente fazendo uso do olhar antropológico, pois o viajante, o que vem de fora, tem a vantagem de escapar da trama social dentro da qual as pessoas estão normalmente e habitualmente imersas desde que nasceram. Um exemplo bem simples. O francês levando para casa o pão desenrolado debaixo do braço (a famosa baguette), mesmo não sendo tão generalizado quanto dá a entender certa imagem caricatural, existe. Eles não estranham isso ─ como não estranham assoar o nariz com estrépito, guardando em seguida a trouxa de lenço amassado dentro do bolso... E nós ─ nós que cuspimos na rua como a coisa mais natural do mundo ─ achamos tudo isso um nojo !

Nesse exemplo aparecem os dois momentos cruciais do olhar antropológico. No primeiro, estranhamos práticas com que não estamos habituados : a baguette no sovaco, o assoar escandaloso etc. Em seguida, e mais importante para o nosso enriquecimento pessoal, começamos a estranhar também certas práticas com que estávamos habituados na cultura de onde viemos. No caso, cuspir na rua. Mas também jogar na rua toda espécie de lixo : guardanapo usado, embalagem de bombom, garrafa plástica etc. É o que se chama de estranhamento do familiar. Método por excelência dos antropólogos, tanto pode ser consciente e aprendida, como no antropólogo profissional, quanto natural e espontânea, como no antropólogo amador, categoria da qual faz parte todo viajante ─ ou seja, aquele que sai da sua terra e passa a olhá-la através do viés de um olhar « estrangeiro ». Talvez não tenha sido por mero acaso, aliás, que dois dos textos mais importantes do nosso pensamento social ─ ambos aparecidos nos anos 30 ─ tenham sido escritos depois de uma estada fora do Brasil dos seus autores : Casa-Grande & Senzala, que Gilberto Freyre escreveu depois de um período nos Estados Unidos, e Raízes do Brasil que Sérgio Buarque de Holanda escreveu depois de voltar de um período na Alemanha. Para não falar de Roberto DaMatta, o mais festejado antropólogo brasileiro contemporâneo, que nos conta no seu O que faz o brasil, Brasil ?, que foi sua experiência nos Estados Unidos que « fez-me um observador crítico da sociedade brasileira e seus costumes, iniciando-me como pesquisador e comentador da minha própria sociedade. » Ora, a tradição de olhar a própria sociedade « de fora » é anterior à constituição mesma da antropologia como disciplina acadêmica. Montesquieu, por exemplo, para falar (e falar mal...) da sociedade francesa do seu tempo, escreveu as famosas Cartas Persas, apesar de nunca ter posto os pés na terra dos descendentes do grande Ciro!

Atenção, contudo: essas observações não devem levar a imaginar que, ingenuamente, estou elegendo a França como espelho de virtudes no qual gostaria de ver o Brasil mirar-se. Nada mais estranho aos meus propósitos do que esse etnocentrismo de colonizado. Num certo sentido, a França foi apenas o lugar onde estive momentaneamente e do qual me servi para pensar o meu país a partir da experiência privilegiada de “estar fora”. Num sentido metodológico, outro país poderia também servir. Mas, por outro lado, não deixa de ser verdade que o fato de estar num país democrático pertencente à modernidade ocidental caiu bem aos meus propósitos críticos em relação à sociedade brasileira ─ a qual, sob vários aspectos, não hesito em considerar ainda hoje uma sociedade escravagista. Ora, esse julgamento, pelo menos vazado nessa fórmula, não o tinha antes dessa experiência. E não há como negar que a convivência com formas e hábitos de vida mais igualitários ajudou-me a desenvolvê-la. A “bricolagem” francesa foi um desses hábitos que me serviram como chave de leitura crítica de formas e hábitos de vida com que estava acostumado...

Nos anos 70, no Brasil, termos como bricolage e bricoler tiveram um retumbante e efêmero sucesso na esteira da moda estruturalista nas ciências sociais que percorreu o pais. Passou, sem deixar mossa nem bossa, como geralmente passam as modas intelectuais entre nós. Mas ─ deixando de lado o falecido estruturalismo ─ proponho retomá-los porque, no seu sentido comum, esses termos, que têm uma presença muito grande no cotidiano dos franceses, lançam uma luz muito interessante sobre a sociedade brasileira, exatamente porque não temos palavras que lhes correspondam. O verbo bricoler, de acordo com o dicionário, significa "executar pequenos trabalhos domésticos". Isso, é verdade, nós temos no Brasil. Ocorre que, como sempre, o dicionário não diz tudo. Bricoler, na França, é mais do que a simples atividade de executar pequenos trabalhos em casa: é o hábito que têm todas as pessoas – pelo menos aquelas situadas ao nivel das classes médias – de fazê-los. Toda uma cultura e todo um comércio circulam em torno desse verdadeiro ethos nacional. Às vezes, mais do que refazer um pintura, trata-se de refazer a própria casa ─ with a little help from my friends, como dizia a velha canção dos Beatles!

Conversando logo que cheguei com um educador francês (portanto alguém de uma classe social equivalente à minha no Brasil) que estava refazendo a sua, lembro que lhe disse: "Por exemplo, no Brasil as pessoas da nossa classe social nunca vão construir a casa com as próprias mãos, como voces fazem". E ele, que morou seis meses no Brasil, retrucou-me sem falso romantismo: "Mas se nós pudéssemos também pagaríamos a uma pessoa para fazer as coisas por nós. Não tem sentindo passar o fim de semana trabalhando quando você tem pessoas que trabalham para você por quase nada". Esse diálogo serviu para despertar em mim uma primeira e desconfiada impressão que mais tarde, com o passar do tempo, tornou-se uma evidência: a classe média brasileira tem, em termos de conforto material, um nível de vida em muitos aspectos superior ao nível de vida de um francês de sua mesma classe. Essa afirmação, aparentemente temerária, espero demonstrá-la com alguns dados concretos. Antes de tudo, porém, convém precisar que nível de vida materialmente confortável não se confunde com qualidade de vida, que diz respeito mais ao bem-estar do cidadão.

Ora, em coisas básicas e fundamentais para o bem-estar das pessoas, como educação e saúde, não há comparação possível. Claro, nada é perfeito. A prova é o que dizia o diretor da escola primária onde minha filha foi estudar, no primeiro dia de aula. Como sempre acontece, nesse dia o diretor reúne todo o pesoal – pais e alunos – no pátio e faz um pequeno discurso de boas vindas. Pois bem: entre outras coisas ele pedia desculpas aos pais porque a escola continuava com problemas de sobrecarga nas salas: numa delas, havia 28 ciranças!… Estou falando, obviamente, de escola pública ─ obrigatória, de tempo integral, laica e de qualidade! ─ esse molde de republicanismo para onde os franceses, desde pequenos, são enviados todos os dias, anos a fio... Sem solução de continuidade!

Essa última observação tem a ver com a minha descoberta de que, lá, a educação é uma tarefa de estado, não de governo. Isto é, governos são coisas passageiras e o estado, mesmo não sendo eterno (nenhum é!) é algo mais permanente. Nesse caso, diferentemente do que ocorre com a francesa, a educação brasileira deveria ser algo bem mais sólido, persistente e contínuo do que políticas sazonais de governantes mais preocupados em deixar uma placa de inauguração de um novo prédio do que em manter a escola que encontrou. Aprimorá-la, certo, mas passá-la adiante, sem solução de continuidade, para o próximo ocupante da sua efêmera cadeira. Chama e clama minha atenção a mesquinharia da nossa cultura política no que diz respeito à educação pública. A nossa histórica vocação para o efêmero, para a novidade de projetos que não vão além de governos, numa palavra, para a “solução de continuidade”. (Expressão, aliás, que acho engraçada. Deveria ser, pensando bem, dissolução de continuidade, não? Pois se se trata de uma continuidade que se rompe, como chamá-la de solução?...)

Nossas práticas tradicionais, nesse quesito, chegam a comprometer a memória das coisas, datas e normes, pelo puxa-encolhe que as caracteriza. Quem se lembra de sigla CIEP? Foi, acho, no primeiro governo de Brizola no Rio de Janeiro. Era algo como Centro Integrado de Educação... não-sei-o-quê! A idéia era essa a que estou me referindo: uma escola pública, gratuita, integral e de qualidade! Muito bem. Terminou o mandato de Brizola, não sei mais se foi o primeiro, veio o seu sucessor, não sei mais quem foi, e acabou tudo. Inventou uma novidade. Quatro anos depois, Brizola volta ao poder, e ressuscita o CIEP – Centro Integrado etc. Quatro anos mais tarde, vem um novo sucessor, e acaba tudo de novo, inaugurando outra novidade. Quem foi o sucessor, e qual foi a novidade, também não lembro! Eis que Collor chega ao Planalto do Planalto! E com ele, os CIACs. Quem se lembra da sigla? Era, acho, Centro Integrado de Assistência... Seria Assistência ou Acompanhamento?... Pouco importa, a idéia era a mesma: uma escola pública, gratuita, integral e de qualidade. Em todo o país! Collor, decentemente, diga-se de passagem, rendeu homenagens à idéia inicial de Brizola, e anunciou que seriam construídos, do Oiapoque ao Chuí, dois mil CIACs. Dois mil?... Ou seriam cinco mil?... Não me lembro. Pouco importa mais uma vez. Mas antes de realizar o intento, sincero ou demagógico, sabe-se lá!, o governo Collor chafurdou na lama em que pontificavam figuras como Paulo César Faria... Ou seria Farias? Nunca sei!... Resultado: o governo Collor acabou, e dos CIACs ninguém fala mais. Os poucos que foram construídos devem estar por aí, velhos, podres, enferrujados. Como diria Caetano na expressivíssima canção Fora de Ordem, “aqui tudo parece ainda em construção e já é ruína...”

Ora, a escola pública francesa, com os evidentes, necessários e inevitáveis ajustes ao longo do tempo, remonta não ao governo de Chirac, ou de Mitterrand, ou de Giscard d´Estaing, ou de Pompidou, ou mesmo ao governo do general De Gaulle. Remonta ao último quartel do século XIX (isso mesmo, XIX!), ao tempo de um grande republicano, ministro da instrução pública da época, Jules Ferry, que instituiu em 1882 o que os franceses chamam de Educação Nacional ─ l´Education Nationale ─ em letras maiúsculas quando escrevem, e com reverência quando falam. Mas a coisa vai ainda mais longe. Pelo menos a idéia de uma instrução pública, extensiva a todos os cidadãos, como preparo para ingressar na polis com as Luzes da Razão. Escrevi Luzes e Razão em maiúsculas, para realçar que a idéia remonta pelo menos à época do Iluminismo e toda sua crença na Razão como metro para as relações humanas, ideário cujo ponto culminante, se bem que nada razoável por todo o sangue que acabou derramando, foi a Revolução Francesa, esse acontecimento inaugural dos tempos modernos, a partir do qual o valor liberdade, mas, convém não esquecer, também o valor igualdade, passou a fazer parte do imaginário político e social do nosso tempo.

Estamos acostumados, por causa de uma presença hegemônica do modo marxista de pensar na nossa academia, a ver nos eventos de 1789 a marca de uma revolução burguesa por excelência; e na Declaração dos Direitos do Homem que ela produziu, a marca de um sociedade de indivíduos egoístas, ensimesmados, pensando no seu interesse particular, como realçou Marx na crítica que fez num texto de juventude: A Questão Judaica. O juízo e o julgamento são, no geral, verdadeiros, nem que seja pelo fato de que à turbulência revolucionária de fins do século XVIII sucedeu a sólida sociedade burguesa do século XIX, mas é um tanto sumário e sem nuances. Convém não esquecer que a Revolução é um processo longo e tortuoso, e que desde o instante em que ganhou as ruas e incorporou as massas miseráveis de Paris, o movimento, num determinado momento, mudou de rumo e se radicalizou: em 1793, uma nova Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, hoje praticamente conhecida apenas dos historiadores, via a luz do dia. E, nela, encontram-se já dispositivos que podem ser considerados como precursores dos direitos sociais do futuro welfare state, estabelecendo, respectivamente, o direito ao trabalho e à educação. Fixemo-nos no segundo, anunciado no artigo 22 da nova Declaração, que prescrevia o seguinte::

“A instrução é uma necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder os progressos da razão pública, e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos”.

Essa história mostra como uma experiência exitosa de educação ancora-se numa linha de continuidade que, anunciada no fim do século XVIII e implementada no fim do século XIX, pode servir como contraponto crítico para a nossa pobre e mesquinha experiência. Pobre porque historicamente nunca cuidamos da educação ─ estou me referindo obviamente à educação de base ou fundamental ─ como um bem a ser equitativamente distribuído pelo conjunto dos nossos cidadãos. Mesquinha porque, mesmo quando, como aconteceu nas últimas décadas, conseguimos finalmente estendê-la praticamente a todas as nossas crianças e jovens, ela, a educação ─ repito: de base e fundamental ─ , não tem merecido o cuidado e a prioridade orçamentária que estamos lhe devendo desde que nos tornamos uma nação. Mas retomo o fio deixado lá atrás sobre qualidade de vida.

O sistema de saúde, esse, para quem vinha como eu do Brasil, era simplesmente um sonho. Para começo de assunto, nada de Golden Cross e congêneres. A Previdência Social francesa reúne as vantagens da medicina socializada ─ todo mundo tem acesso a médicos e remédios ─ e da medicina capitalista: as pessoas vão aos médicos que escolhem. O sistema funciona na base do reembolso das despesas efetuadas. Claro, com algumas limitações. Assim, raramente o reembolso atinge os 100% das despesas: as pessoas então, mediante o pagamento de uma mensalidade, filiam-se ao que eles chamam de mutuelle ─ especie de seguro ─, que se encarrega de reembolsar a parte não coberta pela Previdência. Geralmente as pessoas se filiam por categoria profissional: existem mutuelles das enfermeiras, dos estudantes, dos professores etc. Tanto as mutuelles quanto a Previdência têm tarifas de honorários máximos, que de um modo geral são seguidas pelos médicos. Quem escolhe um médico que cobra acima dessas tarifas ─ e eles são obrigados a dar essa informação ao paciente ─, tem de bancar a parte não reembolsável. Nos hospitais, o princípio do acesso ao alcance de qualquer um é o mesmo, com a diferença ─ que no caso é uma vantagem ─ de que, como geralmente se trata de despesas grandes, as pessoas nada desembolsam: na entrada, apresentam a carteira de previdenciário e de sócio de uma mutuelle, e a contabilidade é feita diretamente entre os organismos envolvidos. Existem, claro ─ afinal de contas, a França é um país capitalista ─ clínicas privadas de luxo, para onde vão os realmente endinheirados, onde o sistema não é o mesmo. Mas estou falando é da classe média, da qual fiz parte na França e faço parte no Brasil. Com o que volto à “bricolagem”.

A bricolage francesa, mas não só ela, significa a ausência, na França, do horror atávico que as classes médias brasileiras, de um modo geral, têm pelo trabalho manual. Lavar o carro, ainda vai: tem gente mesmo que passa o domingo todo fazendo isso. Mas consertar pia, renovar a pintura de um quarto, fazer pequenos trabalhos de marcenaria ou plantar tomates, já é demais! E organizar um mutirão com parentes e amigos para renovar uma casa velha, que horror! Essa, como disse no início, é uma prática um tanto comum na pequena classe média francesa: adquirir a preço baixo uma casa velha e, aos poucos, ir reconstruindo-a com a ajuda dos amigos e parentes. Estes, por seu turno, são depois ajudados por aqueles a quem antes deram uma mão. Mesmo quando não se trata de refazer toda a casa, os franceses sempre encontram alguma coisa para reparar. Tipico disso é a mudança do papel de parede que recobre o interior das habitações, e que os franceses têm a mania de mudar mesmo quando o apartamento onde vão morar é alugado. Basta que o papel esteja um pouco estragado, ou que sua cor não tenha agradado ao novo inquilino, e ele organiza um fim de semana para a sala, um outro para a cozinha, e assim por diante. Freqüentemente, os parentes são contatados para saber se podem ajudá-lo na empreitada. É, sem dúvida, um sistema de mutirão, que também existe no Brasil ─ só que, no nosso país, quem faz isso são os pobres, pobres mesmo.

A mesma coisa para a prática de tomar conta de filhos de vizinhos ─ o baby sitting. É comum as garotas francesas de classe média, para engordar a mesada, irem na casa de uns e outros tomar conta de crianças, enquanto os pais destas vão ao cinema, saem para uma festa etc. Nos quadros de aviso que existem nos lugares públicos (escolas, centros comerciais etc.) é comum "classificados" do tipo: "Jovem de 17 anos em férias, com experiência nisso e naquilo, procura crianças na faixa de 3 a 4 anos para cuidar durante o mês de julho. Telefonar para…" Capitalismo é capitalismo e, na França, realmente, "amigos, amigos; negócios a parte". Eles têm até um ditado que corresponde exatamente a isso: "As boas contas fazem os bons amigos". E é a sério. Uma mãe de família trabalha e precisa que uma vizinha vá à escola buscar o seu filho e tome conta dele até sua volta do emprego? Pois isso é trabalho, e é pago. E as mulheres que não têm emprego fora e portanto podem exercer esse tipo de atividade em casa, põem também seus "classificados" nos quadros de avisos. Isso se chama faire la nourrice – isto é, ser babá. Tudo no maior profissionalismo.

Essa atitude não depreciativa em relação ao trabalho contrasta tão fortemente com a mentalidade brasileira que na literatura memorialística das mulheres que passaram pelo exílio durante o regime militar encontram-se depoimentos dando conta da descoberta desse contraste. A professora Emilia Viotti da Costa, ensinando em Yale, Estados Unidos, depois de ter sido aposentada compulsioramente pelo AI-5, observa: "Um aspecto positivo é que a maioria dos estudantes trabalha. E trabalha em qualquer emprego. Não existe uma conotação negativa ou depreciativa associada a certos empregos como existe no Brasil. Nesse sentido a sociedade é mais democrática do que a nossa jamais foi". Uma certa Alice, mãe de familia escrevendo no tempo em que ainda estava exilada na França, dá um depoimento sobre suas filhas que é uma beleza: "Elas tomam conta de crianças, levam os filhos dos outros ao cinema, fazem faxina e ganham com isso. São trabalhos remunerados, quase profissionais, que fazem com a maior seriedade. E o que é mais importante, incorporam na prática que nenhum trabalho é feio. (…) Quando escrevi à minha família contando essas coisas todas, as pessoas ficaram atônitas e perguntaram o que é que está ocorrendo. Já veio carta da minha mãe dizendo que acha isso um absurdo, etc. e tal, coitadinhas das crianças". Ainda uma vez mais, nada disso é estranho ao Brasil. Criança tomando conta de criança, vizinha sendo paga para cuidar de bebê da outra que teve de sair para trabalhar, tudo isso se vê no nosso país ─ mas entre os pobres, nas favelas!

Também outros hábitos que no Brasil são exclusivos das classes populares, na França são bastante espalhados pelas classes médias. Por exemplo, ir à praia ou fazer uma viagem ou passeio levando a própria comida. No Brasil, isso é coisa de "farofeiro". Na França, quando as famílias levam as crianças a um parque de diversões, é mais do que comum levarem também uma sacola cheia de sanduíches. Os próprios parques já têm uma área com mesas, bancos e outros apetrechos para as pessoas fazerem seus piqueniques. Nas viagens de trem, é a mesma coisa: na hora do almoço está todo mundo mordendo alguma coisa – muitas vezes com todo o savoir-faire francês: primeiro a entrada (um tomate, por exemplo), depois o prato de consistência (um sanduíche de queijo ou de presunto), e finalmente a sobremesa (uma fruta, um chocolate). Tem gente que não dispensa nem o vinho para acompanhar, enquanto outros, mais modernos, preferem a comodidade de uma coca-cola em lata. Findo o almoço, todo mundo enrola os restos nos guardanapos descartáveis e põe seu paquotinho de lixo num pequeno depósito que para esse fim existe ao lado das poltronas. Mesmo em Paris, em plena Champs-Élysées, talvez o lugar mais chique do mundo, ao meio dia, as pessoas passeiam comendo o delicioso pão francês com alguma iguaria dentro.

Existe toda uma mitologia em torno da sovinice do francês, geralmente considerado um povo pão-duro. Quando eu telefonava para os amigos no Brasil e dizia que não podia falar mais do que dois minutos por causa do preço da ligação, eles perguntavam se eu tinha virado francês... Com efeito, o personagem típico que atrevessa a obra de Balzac, o francês médio que conta seu rico dinheirinho, centavo por centavo, existe. Père Goriot – assim como Harpagon, o personagem d'O Avarento, de Molière – encarnam um dos arquétipos da alma gálica. Como acontece com todo mito, também nesse há uma parte de exagero que convive com um fundo de verdade. De fato a relação do francês médio com o dinheiro – como ganhá-lo, como guardá-lo, como gastá-lo – faz aparecer um personagem que está sempre fazendo cálculos miúdos e pensando em como fazer para gastar menos. Para tudo resumir numa fórmula – aliás bastante utilizada para definir o caráter francês de um modo geral ─, eu diria que eles têm com o dinheiro uma relação cartesiana. Ora, direis, todo mundo tem. Em nenhum lugar do mundo alguém sai de casa para ir ao cinema sem saber se tem no bolso dinheiro suficiente para as entradas, por exemplo. Mas o francês médio é muito mais cartesiano do que nós. Ele não vai preocupar-se apenas com o dinheiro da entrada, ele vai planejar sua ida ao cinema. O filme está passando num cinema da Champs Elysées e também num cinema de subúrbio: qual é o mais barato? – o do subúrbio. Mas o bilhete do metrô para chegar ao subúrbio é mais caro do que para ir aos Champs Elysées. A diferença compensa? E por aí a fora. A mesma coisa com comida. Não se faz comida para sobrar. Se são três pessoas convidadas, a dona da casa conta mais duas, ela e seu marido, e faz comida para cinco pessoas, nem mais nem menos. Ninguém mais vai aparecer de improviso, nenhum convidado leva “penetra”, porque isso não existe. Tudo é planejado. O próprio dinheiro que vai ser gasto no jantar é contado, tintin por tintin... Sem dúvida, parece coisa de “farofeiro”!

Falar nisso, não conheço ninguém no Brasil que não esteja a favor da redistribuição de renda. Mas me pergunto se as pessoas estão realmente concientes do que isso significa, na medida em que redistribuição de renda não é aumento de salário para todo mundo, que não redistribui coisa alguma… Ora, o nosso senso-comum raciocina assim: eu não estou ganhando muito, o povão é que esta ganhando pouco. O raciocinio é reconfortante, mas é falso. Pois o diabo é que a dialética existe e às vezes, como aqui, ela está certa: se se considera a economia de um país como uma totalidade, a condição necessária para que eu ganhe 10, 15 ou 20 vezes mais do que ganha um trabalhador, é que ele ganhe 10, 15 ou 20 vezes menos do que eu! Fora disso, é o milagre dos pães e dos peixes ─ que, como se sabe, aconteceu apenas uma vez, há dois mil anos, na Galiléia...

Falando sério: estamos todos de acordo no que diz respeito a uma maior remuneração do fator trabalho? Pois devemos estar conscientes de que isso quer dizer pagar mais às nossas empregadas domésticas, ao porteiro que nas horas “vagas” lava o nosso carro, ao pedreiro que reforma nossa casa, ao gari da prefeitura e ao faxineiro da empresa onde trabalhamos. Redistribuição de renda, a sério, entre outras coisas quer dizer uma mão-de-obra mais cara. E não adianta chiar, porque estamos todos chorando de barriga cheia. Cheia, por exemplo, da cerveja que consumimos generosamente na sexta à noite, sábado e domingo nos bares e restaurantes da vida. Já falei que o francês médio não usufrui do nível de conforto material que no Brasil temos a nossa disposição. Essa história de mesa de bar é um bom exemplo. Ninguem de classe média na França tem condições de tomar 10 chopes no bar como a gente faz brincando no Brasil. O preço não permite. Não o preço da cerveja em si, mas do serviço prestado. Estourando, uma cerveja no Brasil custa, no bar, duas vezes o preço que ela custa no supermercado. Falo de um bar comum, é claro. Na França, uma garrafa pequena de cerveja simples como a que eu bebia em casa custava, no supermercado, 1,60 francos (na época, a moeda ainda era o franco). Essa mesma garrafinha de cerveja, nos bares mais simples de Paris, custava em torno de 12 francos – isto é, acima de 7 vezes mais!

Pode? Lógico que não. Por isso o francês toma uma cerveja e vai pra casa. Ir almoçar fora? Isso na França é um programa excepcional e não, como ocorre no Brasil, um hábito tradicional dos domingos porque a empregada está de folga. A verdade é que nos acostumamos a um nível de conforto que, comparado com o que se passa nos outros países mais ricos e socialmente mais justos, são evidentes distorções. Tornou-se comum no Brasil os apartamentos de classe média terem três sanitários: um para os pais, outro para os filhos e outro para a empregada. Na França isso simplesmente não existe. Pelo menos nos meios que freqüentei ─ é bem verdade que eu nunca fui a uma recepção na casa do barão de Rothschild… ─, é um sanitário só e acabou. Paciência, mas ainda aqui um pouco de dialética não faz mal a ninguem: três sanitários na minha casa, significa dois sanitários a menos na favela… Estamos concientes disso? Acho que não, e algumas reações inesperadas a alguns ganhos que as empregadas domésticas tiveram com a aprovação da Constituição de 88 parecem indicar que, de fato, essa conciência não nos interessa. Como diria Machado de Assis, suporta-se com paciência a cólica do próximo!

Ah… as nossas empregadas domésticas! Estou cada vez mais convencido de que falta na ensaística nacional uma grande obra sobre essas criaturas e que ─ numa atualização perfeita de Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre ─ bem poderia chamar-se Suíte e Quarto de Empregada. Ainda aqui o olhar antropológico, o estranhamento do familiar mostra-se de uma grande fecundidade. A primeira vez que ouvi alguém "estranhar" esse fenômeno foi numa conversa já antiga com o professor Afonso Nascimento, da Universidade Federal de Sergipe, um velho amigo que, tendo passado algum tempo estudando na Europa, tinha voltado ao Brasil. Foi antes da minha ida à França e estavámos nós dois ─ velhos esquerdistas do tempo da faculdade ─ trocando impressões sobre a vida em torno de uma garrafa de cerveja quando ele, a propósito dos nossos revolucionários de botequim, observou: "Todos têm um discurso de esquerda, mas estão com a casa cheia de empregadas". No ato não entendi o que tinha a ver uma coisa com a outra mas, não querendo passar por reacionário, não dei seqüência ao assunto. Só muito depois, já estando eu mesmo na Europa, foi que comecei a perceber todas as implicações do que ele havia dito: o Brasil é, ainda hoje, uma sociedade escravocrata, e o nosso contingente de empregadas é a melhor prova disso. E como não quero passar por "bonzinho", aviso logo: sim, no Brasil eu sempre tive empregada! Isso não impede que, enquanto analista, eu lance um olhar crítico sobre um fenômeno no qual estou imerso e sobre uma categoria social da qual eu mesmo faço parte. Para usar uma justificação que não é uma simples frase de efeito, quem escreve estas páginas não é uma pessoa fisica, é um sujeito epistêmico... E continuo.

Todos nós conhecemos a dura vida das empregadas domésticas brasileiras: baixos salários, horários escorchantes, direitos trabalhistas não respeitados etc. O fato de que a empregada é sempre uma pessoa paupérrima circulando num ambiente de relativa abundância (comida na geladeira, dinheiro nas gavetas, jóias nos armários), faz nascer um inevitável ─ e, é claro, às vezes fundado ─ sentimento de suspeita por parte das patroas. É essa a feição mais anacrônica do trabalho doméstico: não se trata de uma relação de trabalho capitalista como as outras, onde, mesmo se a exploração econômica existe, o empregado, uma vez findo o expediente, é um cidadão como os demais, dono do seu tempo e do direito de beber sua cervejinha como um ser soberano. As empregadas, além de muitas vezes não terem o seu tempo livre claramente delimitado, têm também muitas vezes de prestar contas à patroa das suas horas de folga: o que faz, com quem anda, com quem está namorando etc. Ou seja: ela nunca é uma pessoa inteiramente adulta como as demais. Mesmo quando a sua empregadora é aquilo que o jargão do oficio chama de uma "boa patroa", trata-se de uma situação próxima da servidão, análoga à situação do escravo que tinha a sorte de cair na mão de um "bom senhor".

Em resumo, trata-se de uma situação existencial de permanente dilaceramento, pois mesmo se a patroa a trata bem, a doméstica vive numa casa que não é a sua, dorme num quarto que não é o seu, convive com uma familia da qual não faz parte etc. Transcrevo aqui o depoimento de uma doméstica que se casou com um americano e foi embora para os States, e que depois escreveu à revista NOVA relatando sua experiência: "Comecei a trabalhar com 8 anos e nunca pensei que o pesadelo ia terminar. No meu quartinho cheio de detergentes, vassouras etc, eu sonhava em ter um dia um trabalho decente e, ao terminá-lo, poder ir para a minha casa, fazer o jantar do meu preto, e domingo poder ir ao cinema ou a uma praia, sem precisar sentir vergonha de minha profissão. Poxa, gente, isso aconteceu e está acontecendo! Hoje sou faxineira nas horas vagas, estudo e cuido de meu gringo. Nao sinto vergonha de dizer de mim. Deixei de ser o bode expiatório, a hóspede incômoda e necessária. Sou uma mulher que trabalha para ter um dinheirinho a mais. Não tenho mais o grito do samba, o batuque e a glória da avenida, mas também não tenho mais a madame. Só sinto pelas outras empregadas domésticas, que não sabem o que é liberdade". E se assina Regina Martins Pippins. Mais sorte do que ela, so Mary Poppins, que já nasceu fada...

Ainda haveria muito o que que dizer. Mas, como diria Macunaíma, “Ai... que preguiça! Tem mais não”

Luciano Oliveira - Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Merchandising


O texto abaixo é a introdução de um pequeno artigo a ser apresentado no 32o. Encontro Anual da ANPOCS. O artigo completo estará disponível (assim o esperamos) nos anais do Encontro.

Entre a Inclusão e a Democracia Digital: a atuação do Estado e do terceiro setor em comunidades pobres da Região Metropolitana do Recife[1]

Jonatas Ferreira[2] e Maria Eduarda da Mota Rocha[3]

Na análise da desigualdade, as ciências sociais têm operado ao longo dos anos vários recortes, tais como renda, etnia, acesso ao trabalho, participação política. A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação, especificamente computadores pessoais, Internet, mecanismos portáteis de armazenamento de dados, como pendrives, ipods, CDs regraváveis, entre tantas outras possibilidades postas pela tecnologia digital, uma nova forma de desigualdade surgiu. A acumulação histórica de capitais econômicos, culturais e sociais dos diversos atores sociais, como era de se esperar, vem determinando padrões qualitativamente diferenciados de acesso a estes recursos. Não parece casual, portanto, que em 2007 apenas 24% dos domicílios brasileiros tivessem computador – desse total, apenas 3% representavam domicílios com renda até R$ 380, valor que alcança os 72% quando consideramos domicílios com renda igual ou superior R$ 3.801.
O acesso à Internet traz à tona uma realidade ainda mais constrangedora: apenas 1% das famílias que sobrevivem com até um salário mínimo tinham acesso à grande rede.

Em geral, esse problema tem sido tratado pelas políticas públicas a partir de uma série de conceitos que convergem para as idéias polares de ‘exclusão’ e ‘inclusão digital’. O ponto de partida desse tipo de abordagem é a idéia digital divide, tal como formulada pela National Telecomunications and Information Administration, ainda na década de 90. A partir dessa perspectiva, a solução para o problema da desigualdade se apresenta como um percurso que os atores precisam fazer de um lugar vazio, de uma tabula rasa, para outro de prosperidade, numa clara reatualização da visão dos atores em posição subalterna como seres faltantes.

Ora, esse tipo de visão tem uma penetração significativa nas ciências sociais, bastando considerar a maneira como a tradição marxista, mas não apenas ela, percebeu ao longo dos anos o papel de forças sociais não diretamente ligadas ao processo produtivo. Visão semelhante dos mais pobres como “despossuídos” aparece na idéia bourdiana de “arbitrário cultural”, em que as práticas de consumo dos dominados são avaliadas sempre em função de uma hierarquia unificada cujo cume e eixo moral são necessariamente os gostos das classes dominantes. Em função deles as práticas culturais subalternas aparecem como imitações mal-sucedidas. É certo que tal perspectiva pode ser contrastada com propostas mais matizadas, como a de Alba Zaluar, ou a de Vera Telles e sua conceituação da pobreza como “experiência da liminaridade”, em que o esforço para superar uma definição puramente negativa da pobreza como falta não flerta com uma visão populista muitas vezes subjacente à celebração das competências das classes dominadas.

Críticos das implicações políticas trazidas pela idéia de exclusão digital, tais como Mark Warshauer, Henry Jenkins, ou Jeffrey Young, acreditam que a “retórica da exclusão digital mantém aberta a divisão entre usuários de ferramenta civilizados e não usuários incivilizados. Bem intencionada como iniciativa política, ela pode propiciar a marginalização e ser fonte de privilégios em seus próprios termos”[4]. Ainda assim, no tratamento conceitual e político da desigualdade digital, a idéia de “exclusão” continua presente.

Entretanto, uma proposta diferente tem surgido, sobretudo entre organizações não-governamentais: estimular a democratização das tecnologias digitais não como uma forma de simplesmente suprir uma falta, mas como uma estratégia de ‘empoderamento’ dos atores a partir de suas próprias potencialidades. Apesar desse esforço, o terreno em que se busca enfrentar a desigualdade ainda é tenso: quer entre organizações não-governamentais, quer em instituições públicas ainda não há consenso com relação ao modo como a desigualdade digital deva ser tratada. De um lado, pensa-se em investimentos sociais e econômicos capazes de incluir atores em posição desfavorecida (vale dizer, em falta) no que tange às tecnologias de informação e comunicação – sem que competências culturais, educacionais e políticas sejam analisadas. De outro, propõe-se que estes recursos deveriam ser mobilizados a partir da premência que haveria em democratizar este acesso. Nesse caso, a desigualdade digital não poderia ser tratada apenas sob a ótica da “transmissão de conhecimentos” básicos que adaptem os atores ao mundo do trabalho, por exemplo, mas que os capacitem a interferir neste horizonte que em grande medida continua aberto.

A luta desses atores contra a desigualdade digital pode ser compreendida também à luz do contraste entre suas práticas e o “monopólio da fala” pelos meios de comunicação de massa. O surgimento de TICs digitais, sobretudo a Internet, deu margem a um grande otimismo quanto à possibilidade de romper este monopólio, que pode ser pensado como a enorme assimetria existente entre os controladores dos grandes veículos de comunicação e o seu público. Teóricos como Pierre Levy, André Lemos, Manuel Castells enfatizaram o potencial de emancipação das redes digitais de comunicação. Esse potencial, no entanto, parece longe de ser realizado. Nenhuma inovação tecnológica se produz num vazio histórico, social e cultural.

Cabe refletir empiricamente acerca das práticas que vêm orientando os esforços públicos e de entidades do terceiro setor no sentido de favorecer a inclusão (ou democratização) das tecnologias de informação e comunicação em populações pobres. Nosso trabalho pretende mapear as iniciativas dessas instituições e organizações na Região Metropolitana do Recife e mostrar como tem se dado o embate entre essas duas visões. Com base em pesquisa exploratória realizada em 8 instituições do serviço público e do terceiro setor, e tendo como foco analítico sua atuação no que diz respeito a projetos de inclusão/democratização digital, constatamos alguns problemas que merecem discussão: a fragmentação das iniciativas; a dificuldade de articulação entre os diferentes atores e as perspectivas filosóficas que orientam suas intervenções, a descontinuidade das fontes de financiamento, a concorrência pelos recursos. Na dinâmica concreta dessas iniciativas, percebemos como a tensão entre concepções de democracia/inclusão digital se traduz em um desajuste entre as iniciativas políticas não formais e as estruturas formais de poder político e econômico.

A reflexão que propomos é uma iniciativa no sentido de qualificar a discussão sobre desigualdade digital num terreno político mais amplo do que geralmente ela tem sido concebida. Acreditamos que as intervenções públicas e do terceiro setor nessa realidade poderiam se beneficiar de trabalhos como este. Nos tópicos que se seguem procuramos: i. localizar a discussão acerca do acesso desigual às tecnologias de informação no contexto mais amplo da reflexão acerca da desigualdade social. De modo breve discutimos a pertinência de se pensar esse problema partindo dos pares inclusão-exclusão social; ii. no tópico seguinte, expomos os resultados que obtivemos até agora com a pesquisa exploratória realizada com dirigentes de instituições responsáveis por projetos de democratização das tecnologias de informação e comunicação; iii. no terceiro e último tópico esboçamos uma síntese de nossas conclusões até o momento.

[1] Mariama Vicente, Rosângela Souza (PIBIC/CNPq), Jefferson Santana e Jair Rocha Neto (PIBIC/CNPq) contribuíram em diversas fases desse estudo exploratório. Agradecemos, particularmente, suas participações nas entrevistas e na síntese das mesmas.
[2] Jonatas Ferreira é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e pesquisador financiado pelo CNPq.
[3] Maria Eduarda da Mota Rocha é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE.
[4] Young cita Jenkins em http://chronicle.com/free/v48/i11/11a05101.htm, acessado em 20/09/2009.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Roy Bhaskar entrevistado por Christopher Norris (parte 1)


Roy Bhaskar

Pouco conhecido no Brasil, Roy Bhaskar é um dos filósofos mais criativos da contemporaneidade. Seu trabalho pioneiro na filosofia da ciência deu origem a um movimento internacional e interdisciplinar chamado Realismo Crítico, que tem inspirado trabalhos em áreas tão distintas quanto a inteligência artificial, a enfermagem, a psiquiatria, a economia, a psicologia, a sociologia, a antropologia e o direito. Dentre os sociólogos mais conhecidos ligados ao realismo crítico encontram-se William Outhwaite, Margaret Archer, Ted Benton, John Urry e Doug Porpora. Entre aqueles não diretamente associados ao realismo crítico, mas cujas obras são especialmente compatíveis com esta abordagem filosófica, podemos citar Anthony Giddens e Pierre Bourdieu.

Embora nenhum dos livros de Bhaskar tenha sido traduzido para o português, algumas de suas idéias podem ser encontradas nos diversos verbetes que escreveu para o Dicionário do Pensamento Marxista (editado por Tom Bottomore) e para o Dicionário do Pensamento Social do Século XX (editado por William Outhwaite e Tom Bottomore). Para uma introdução em português ao Realismo Crítico, remeto a um artigo que publiquei há alguns anos.

A entrevista abaixo, publicada originalmente no número 8 da The Philosopher’s Magazine (linkada ao lado), foi gentilmente cedida ao Cazzo pelo editor da revista, Jeremy Stangroom.

Cynthia


C.N. You have been thinking and writing about issues in the philosophy of science for around twenty five years. Can you tell us what originally took you into this area and why it has remained such a central preoccupation?

R.B. I got a scholarship to Oxford to study PPE and I was equally interested in all three subjects, but it seemed to me in the mid to late sixties that clearly the most important problem facing mankind was that of world poverty. It also seemed to me that economic theory had very little of relevance to say about this, so I started writing a PhD thesis on the relevance of economic theory for under-developed countries, the answer to which, if it had been written, would probably have been very little, probably nil. But in order to elaborate this intuition it was necessary for me to go back to issues in the philosophy of social science and further back into the philosophy of science. I found the philosophy of social science to be dominated by a very unrewarding dispute between positivism and hermeneutics, and they all seemed to be dominated by an empiricist philosophy of science.

About this time, there was a very vigorous theoretical debate generated by Kuhn, Feyerabend, Lakatos and so on. I found this extremely stimulating. These theorists called into question standard empiricist orthodoxies in what I call the transitive or epistemological dimension of science. They had virtually nothing to say, except by implication, about ontology, that is, the theory of being. They basically left the empiricist ontology intact, so they could not sustain their rational intuitions or insights. I found some clues about a possible alternative ontology from the works of people like Rom Harré, who were moving in a realist direction. Now they didn't have very much to say about the transitive dimension as such, but they were very critical about the deductive, nomological model of explanation. Implicitly they called into question the sufficiency of the Humean, Hempelian, Popperian orthodoxy. What I was doing in A Realist Theory of Science and related works was to call into question the necessity of these theories which dominated empiricism and anti-empiricism. In particular, I did this by re-thematising ontology and giving it a certain new content or shape. Really the whole of my work has stemmed from this essay into ontology. I should just say that within a year or so I was teaching economics, but I had changed my research topic to philosophy. After two years, I switched to become a full-time philosopher, which I realised was the true love of my life.

C.N. Can you tell us what is distinctive about critical realism as compared with other realist epistemologies and philosophies of science?

R.B. The answer to this question would take an interview in its own right! But very briefly, it used a transcendental method of argument, which most philosophies of science didn't use, and then the transcendental argument became a dialectical one in which the force was immanent critique. Secondly, it had the various propositions about ontology, about the necessity of ontology, about the particular place or shape of ontology - that the nature of the world is presupposed by science – which it explicitly thematised, and it was shown that rival philosophies of science tacitly secreted or implicitly presupposed some distinctive, normally Humean, ontology that was quite inadequate to the real nature of being and the true character of science. The sort of ontology I was arguing for was the kind of ontology in which the world was seen as structured, differentiated and changing. And science was seen as a process in motion attempting to capture ever deeper and more basic strata of a reality at any moment of time unknown to us and perhaps not even empirically manifest.

So this created a radically new world view and this world view was taken into the philosophy of social science, into ethics, into politics to a small extent, into other branches of philosophy, into the history of philosophy, and above all into the area of dialectic.

Now there is a third thing besides the content of the particular thesis at issue at any particular stage in the development of critical realism. Through and through critical realism has been critical of what we can call the nature of reality itself. Not the nature of absolute reality, or the absolute structure of being - to be critical of that is to put oneself into the position of God or the creator of the universe - but rather it is to be critical of the nature of actual, currently existing, social reality, or of our understandings of social and natural reality. It has always taken epistemologies, philosophical thesis, etc., as reflections of the society in which they are generated and sustained. And as far as these theses are misleading, they point to deep categorial confusions and errors inherent in the very structure of social reality itself. So it was natural to find an identification between people who were influenced by critical realism and left-wing socialist, Marxist and other critical currents of thought in the 1970s and through on into the 1990s.

And so I would say that the three major distinctive things about critical realism are: its transcendental and dialectical character; the content of its particular theses; and the fact that it is critical of the nature of reality itself, in the first instance social reality, including the impact of human beings upon the natural world in which they are embedded and in which they are at present creating so much havoc.

C.N. How do you see your work as having changed and developed in the period since your first book, A Realist Theory of Science, appeared in 1975.

R.B. I think looking at it over the last 25 years or so, there have been four major benchmarks and I'm now working on initiating a fifth. These can be associated with particular books: 'transcendental realism' with A Realist Theory of Science; 'critical naturalism', first promulgated in The Possibility of Naturalism; Scientific Realism and Human Emancipation, which forefronted the notion of 'explanatory critiques' and the refutation of 'Hume's Law'; and the 'dialectical turn', initiated in Dialectic: the pulse of freedom and recapitulated in Plato etc. Just to summarise briefly what I take to be the salient features of this development.

A Realist Theory of Science re-thematised ontology, argued for its necessity and irreducibility in any account of science, and gave it a radically different shape or context. In particular, it argued against the epistemic fallacy, that is the idea that one can reduce or analyse knowledge in terms of being. It was argued that being was an absolutely irreducible and necessary category.

The Possibility of Naturalism argued against the dualisms and splits that dominated the then contemporary human sciences – and which to a large extent, despite critical realism and related currents of thought, continue to do so now. What were these dualisms? They were dualisms between positivism and hermeneutics; between collectivism and individualism; structure and agency; reason and cause; mind and body; fact and value. In each case, critical naturalism argued for a third sublating position which could reconcile these stark polarities and oppositions, and which could situate the two extremes as special cases of the more general sublating position. Thus, against positivism and hermeneutics, it argued for a critical naturalism based on a realist philosophy of science. Against collectivism and individualism alike, it argued for relationism - that is, the conception of society as essentially relational in character, as not consisting either of collectivities of individuals or individuals, but as concerned with the relations between individuals. Then in opposition to the dichotomy of structure and agency, it argued for what I called the transformational model of social activity, which is not to identify structure or agency, but to trace their distinctive features and mutual interdependency, in a way that Margaret Archer and others have shown is distinct from, although related to, that position that Giddens has put forward under the theory of structuration. Basically, structure always tends to collapse into agency on his model, whereas on my model the agents themselves have natural and other perhaps transcendental components that can't be reduced to social structures. The fourth dichotomy argued against was the stark contrast between reason and causes, where I argued that reasons were in fact causally explicable and causally efficacious in my conception of intentional causality. Against a crude materialism and idealism, which would dislocate embodied human beings from the material world, I argued for what I characterised as a synchronic, emergent powers materialism, in which mind is seen as an emergent power of matter. And finally, I argued against the stark polarity and contrast between facts and values. There is a dialectical interrelation between facts and values, in which we are never situated in a value free context. Values always impregnate and imbue our social praxis and our factual discourse, but at the same time, facts themselves do generate evaluative conclusions. This paved the way for the refutation of Hume's law. Truth and factuality are themselves norms, but that is a presupposition of all factual discourse, and on the basis of that value we can generate other evaluative conclusions.

The fourth major development is I think the most radical and exciting, after the first – and this is the dialectical turn, taken in Dialectic: the pulse of freedom. And this put to the fore two notions which I think are absolutely crucial. The notion of absence and dialectic was defined recursively, in terms of absenting constraints on absenting ills, and if constraints and ills alike are understood in terms of absence, as absenting absence on absenting absence. The notion of absence I regard as ontologically, logically and epistemologically prior to that notion of presence. Positive being could not exist without negative being. And the full implications traced through of this dialecticalisation of ontology are very radical indeed, and presuppose a vision of the good society viewed as implicit in every human action or remark. The second major innovation in this book was the notion of truth as being ontological as well as absolute; that is, an expressive, ontic dualism, as well as epistemological, as well as being social.

The firth turn I'm working on now is the sense in which the highest order categorial structure of any domain of reality or being as such can have implications for our daily praxis.

C.N. Your work has always had a strong ethical and political content, especially in a book like Scientific Realism and Human Emancipation. Could you explain in this connection just why you think it is so important to defend a realist conception of science against a marked anti-realist tendency that has typified so many recent movements of thought.

R.B. I think there are three main reasons for this. First of all, there is the argument that one can derive facts from values. This allows the possibility of ethics and politics becoming, in principle, decidable disciplines. Following on from this, I argue that morality and moral sciences, including politics, have an intransitive dimension, that is, I say that they have real objects, which it is the job of these moral scientists to investigate. This allows the possibility of a rational critique of what I call actual existing moralities. Thirdly, I think it is important because I believe that truth is the highest truth, and that very radical implications can be derived from this idea.

C.N. Critical realism is now quite a large scale and interdisciplinary movement of thought, with representatives in various branches of the physical, social and human sciences. Could you tell us something about the history of the movement, and why it has been able to bring them together despite the increasing specialisation of much academic life.

R.B. When I started out people who had been influenced by my work found themselves frequently marginalised in academic life. They had extreme difficulty in getting critical realist papers published, and I found myself acting as a sort of one person support mechanism for people influenced by my work. It was helped a little by the publication of books by Ted Benton, Russell Keat and John Urry, and others – and it began to develop an academic reputation. Nevertheless, there was still a feeling of isolation and fragmentation. Then four of us got together - myself, Ted Benton, Andrew Collier and William Outhwaite - in the early 1980s, and we would begin by discussing important theses in philosophy and end up by discussing what was wrong with the state of politics or whatever. Out of that was born the Realism and Human Sciences conferences movement. From 1983, we had annual conferences, characterised by friendliness and intellectual stimulation, solidarity and great enjoyment. Not really marked by careerism, position taking, fractious argument, but a real sense of comradeship and an idea of the exploration of truth.

These conferences gradually grew bigger and bigger, and critical realism began to take off in the different disciplines – in sociology, economics, biology, even in physics – it took off in the States, in European countries and all over the world. There were journals, like Radical Philosophy, which were sympathetic to critical realism – that published articles more easily by critical realists. And then around 1995, we decided to begin to formulate a centre for critical realism which was instituted as a registered charity in 1997-98. We have our own website and about 30000 people have subscribed to the Bhaskar list on the internet.

I think critical realists are understanding the importance of networking and mutual solidarity. It is still a very radical and somewhat fragmented movement. And I would argue that there are profound reasons for this, because the nature of any society dominated by instrumental reason - by reification, by alienation, by master-slave relations - the categorial structure of such a society will be irrealist in character. Irrealism, of one sort another, will always have the backing, as it were, of the superficial currency of social reality. So critical realists will always be at odds with what appears to be the case in society. So we are marginalised now, by the nature of social reality itself, but despite that we are forming a resistance movement to that categorial structure, in tune and in keeping with deeper categorial structures, which irrealist categorial structures mask, obscure and occlude.

C.N. The concept of stratification is extremely important in your own thinking and much of the work produced by your colleagues in the CR movement. It has to do with the need for complex, differentiated grasp of the various strata or levels of reality, some of them exerting their causal powers wholly independent of human intervention, while others are affected by the kinds of observation we make or the sorts of experiment we carry out. Could you say a bit more about this aspect of your thinking and how it links up with ethical issues -for example, the scope for responsible choice in matters of applied scientific research?

R.B. I think Marx somewhere observed that the whole of science would be pointless unless there was a possibility of a distinction between essence and appearance - unless there was the possibility that what we thought about natural reality or any other form of reality was wrong.

Therefore, this notion of stratification is already necessary to sustain the idea of critique. The critique of some kinds of understanding or reflection - or the nature of a level of reality, including social reality - in terms of its misdescription of a more basic, deeper or autonomous level of reality. That is essential for the notion of critique or argumentation generally.

Additionally, the development of science has revealed a process of a continual stratification of knowledge, as we attempt to capture ever deeper or wider strata of reality. This is an evident fact about the nature of scientific process, only sustainable by a critical realist ontology in which the world itself is seen as stratified.

Putting these two points together, the critical impulse in science is one of demystification and the central norm with which I have been concerned recently is that of human freedom. Human freedom depends upon understanding the truth about reality and acting towards it, so it is essential that science and philosophy should be concerned with human liberation. This takes us into the realm of ethical issues in scientific research. Because we are very far from perfect or free, by which I mean we are far from the full realisation of our potentials, and because we're dominated by a capitalist society in which reification, alienation, dualism, illusion, categorial error are dominant and manifesting themselves in modalities of instrumental reason and a whole complex of master/slave relationships, there must be necessary constraints on generating anything that goes by the empirical name of science. So people have recently, quite rightly, become worried about the abuses of science involved in genetic engineering research. We have very good reason to believe that many increases in scientific understanding will actually be abhorrent.

This raises the important question that we cannot prosecute science in an intellectual or moral vacuum. It may be necessary for morality to correct bad science, but it corrects it in the name of a higher norm, true freedom. And that is guided by a highest norm of all – fundamental truth.

(continua...)

Roy Bhaskar entrevistado por Christopher Norris (parte 2)



C.N. Some present day cultural theorists – e.g. Lyotard – would say that we have moved into an era where the very idea of scientific knowledge has undergone a kind of dramatic mutation, a large scale Khunian paradigm shift. Thus Lyotard argues that post-modern science is no longer concerned with such old fashioned values as truth, accuracy, theoretical rigour, causal explanatory power, etc. Rather, it is concerned with undecidability, uncertainty, the limits of precise measurement, and a range of other currently fashionable themes, often drawn from the field of quantum mechanics and field theory. What is wrong with this, from your point of view?

R.B. I think the familiar point that it is inherently auto-destructive is basically correct. For what are this strand of post-modernist thinkers doing but making certain truth claims about uncertainty? They seem to be very certain about the truth of their claims. Therefore, in no way does their discourse presuppose that truth ceases to be a fundamental and overriding value.

Now what I think they in fact do is to subjectivise the true impact of contemporary physics. This indeed has fundamental implications for our understanding of notions of events, of things, etc. For example, we must differentiate the classical notion of a mass event, by which it is meant a mass or collectivity of events, from the quantum mechanical notion of an event as a mass or collectivity, as a distribution or spread in space, or a succession or flow in time. This is much more in keeping with our ordinary commonsensical notion of an event, than it is with the classical Newtonian mechanical conception of an event as punctual, atomistic and so on.

And again we need to rethink our notion of a thing. Why do we model it on a billiard ball or a solid compact material object. In fact, no such things exist, we know that billiard balls are full of empty space and couldn't sustain themselves unless they were.

Moving into the realm of biology, biologists are moving away from the notion of an organism being an individual, a big billiard ball, if you like, and are beginning to understand the notion of an organism being an individual in its ecological niche.

Basically, what's wrong with this line of reasoning is that it subjectivises the true impact of contemporary scientific thinking.

C.N. Do you see quantum theory as posing any special problems for a critical realist approach to the philosophy of science.

R.B. As I think I've already indicated, only critical realism can begin to situate - by thematising notions of absence, etc., and breaking from atomistic notions of being - the true impact of quantum mechanics. One is only worried about it, if one is wedded to certain normally implicit, atomistic presuppositions of empiricist ontology.

C.N. I'd like to hear your views about the strong programme in the sociology of knowledge, since it comes into conflict with critical realism on a number of crucial issues.

R.B. What critical realism does is that it allows us to sustain and to argue the mutual implication of ontological realism in the intransitive dimension, epistemological relativism in the transitive or social dimension of science and judgmental rationalism in the intrinsic aspect of science. This means that there is no conflict between seeing our scientific views as being about objectively given real worlds, and understanding our beliefs about them as subject to all kinds of historical and other determinations. At the same time, there will a be a right or wrong of the matter in any one discursive domain, which defines the possibility of judgmental rationalism in the normative aspect of science.

I think many of the objections in the strong programme of the sociology of knowledge confuse judgmentalism and realism. Realism is not judgmentalist, and realism is in fact a condition for the possibility of the strong programme in the philosophy of science. The strong programme wants to argue that all beliefs are causally generated. I have no problem with this, but the thing is that some beliefs are causally generated by the truth of the matter, other beliefs are generated by illusion, prejudice, superstition, which veil deeper structures from the protagonists supporting them. And hence there can't be a normative parity between true and false beliefs. I think articulating the distinction between ontological realism, epistemological relativism, and judgmental rationalism, and understanding the difference between ontological and epistemological realism, which is silly, ontological and epistemological relativism being at best an assertion of the historicity of the world, and between judgmental rationalism and judgmentalism, allows a certain rapprochement between the best sociologists of knowledge and realism.

C.N. You have often acknowledged Rom Harré's strong, even formative influence on your thought. Just recently the two of you have engaged into some vigorous public debate, suggesting that you are now not so much in accord with respect to issues in the philosophy of science?

R.B. I think there was always a slight difference between Harré and myself, in that Harré sat halfway between transcendental idealism and transcendental realism. He talked in works like Principles of Scientific Thinking about the crucial role played by models. Models gave not only a heuristic role to imagination in science, but in some sense reflected a deeper level of reality unknown to science. But because he questioned only the sufficiency, not the necessity, of Humean and Hempelian ontology, and because he did not explicitly thematise ontology in the way that transcendental realism did (the radical thrust of the argument in Realist Theory of Science against the epistemic fallacy, in favour of ontology - a radically different kind of ontology), his work was always subject to certain tension.

In so far as he did not come out for transcendental realism, as distinct from transcendental idealism, it was natural to find that when he started to write on issues in the philosophy of social science, he was to replicate certain Kantian dualisms. So we have a dualism now in his philosophy between two kinds of entities, material objects or molecules, as he sometimes puts it, and people and their discourses. I think this dualism basically goes back to a failure to sustain transcendental realism as distinct from idealism. I should say that Rom Harré and myself are very good friends – and we have been engaged in polemics without any real offence to that friendship for about 30 years now. We both enjoy a good argument.

C.N. It often strikes me that some of the central debates in the philosophy of science could be brought down to earth if they took more account of the developments in the history and philosophy of technology. Do you see critical realism as moving in that direction?

R.B. The initial arguments for and about ontology were sustained by the notion of immanent critique. So I drew attention to those human activities that had most prestige in the cognitive discourse of philosophy. And these were most typically what was called experience and experimental activity. But equally, I could have taken ordinary practical activities such as fixing a bike as sustaining this transcendental realist, critical realist and dialectical realist ontology.

How can we make sense of making a cup of coffee with sugar, except by the notion that the sugar has an independent intransitive existence with respect to our acts of finding it? How can I make sense of my discourse with you, unless I assume that what you say has a sense and intelligibility independent of my understanding of it? So I'm very sympathetic to this whole turn. I think the more deeply we go into all the forms of human experience, the more our ontology and our understanding of human beings in the world in which they live will be deepened and broadened.

C.N. Could you name the three or four books that have most influenced your philosophy at some stage?

R.B. I'm afraid that my answer will probably be a little bit hackneyed. I would say Kant's Critique of Pure Reason; Hegel's Phenomenology of Mind; the early, middle and some late writings of Marx. I have already mentioned the importance of the work of writers like Lakatos, Kuhn, Feyerabend. I would say that the philosophers that I have admired most are Plato, Aristotle, Kant and Hegel. These are also the writers I have polemicised with. So my polemics are often an indirect form of flattery.

C.N. Would you want to name any one thinker who in your view has exerted a harmful influence on the way that philosophy gets done nowadays? If our roles were reversed and you were asking me the question, I would nominate Wittgenstein and go on at great length about the kinds of cosily Wittgensteinian doctrine that have a regular mind-numbing effect whenever one comes across them.

R.B. Well, I think I'll talk about Wittgenstein! He is one of the most important philosophers of the 20th century, but I do think he has had a baneful influence. As is well known, he moved through two phases – the first was a very vigorous and beautiful form of practical reason, the second was a form of transcendental idealism. I think the most baneful influence of Wittgenstein was to linguistify that important criterion of philosophy I refer to as reflexivity. This was important in so far as it made philosophers aware of language as perhaps the indispensable vehicle of our expression and understandings of the world – and to situate language as a topic of investigation.
But now the linguistic fallacy has almost become the orthodoxy. The linguistic fallacy is the idea that one can analyse or define being in terms of our language about being. Language can only be understood in terms of the co-ordinates of a matrix where human nature is defined in terms of the stratification of the personality, transactions between human agents, social structure and our material transactions with nature. Language is really only a fitting paradigm for our transactions with nature. It is not a good paradigm for the social structure. And even our interactions with each other have many dimensions which are non-linguistic. I think that only by situating language within the context of a human and social totality, which encompasses the natural world and dimensions of existence of which we are perhaps only partially or dimly aware, can we do justice to it. To do justice to language, one has to break from the linguistic fallacy. And therefore, perhaps in order to understand the true greatness of Wittgenstein, one has to be non-Wittgensteinian.

C.N. Some philosophers argue that the realist versus anti-realist debate is one that will never be settled or achieve any genuine progress, since it is one that involves two utterly different world views and maybe two quite different sorts of ingrained philosophical temperament, so that the parties will always be talking at cross purposes and failing to see how the other could possibly want to maintain such an extravagant position. Then there is the case of someone like Hilary Putnam, who seems to have flipped right across from the one to the other camp, and recently half-way back again, and produced all manner of supporting arguments on both sides of the issue. So it's easy for a sceptic like Richard Rorty to treat this as evidence that the whole issue is a non-starter like most of the classical philosophical debates, and therefore that we should stop discussing it and find something better to occupy our minds. Your own book on Rorty gives plenty of clues as to what you might say in response to his diagnosis. Still I would like to hear your reaction in this currently widespread post-philosophical line of thought.

R.B. One of the things that I have tried to show is that arguments against ontology, in fact presuppose ontology. You can see this in the case of an anti-ontologist like Habermas, who in his generation of the knowledge constitutive interest in prediction and control, definitely presupposes a Humean theory of causality as constant conjunction or empirical regularity, and the Hempelian, Popperian idea of explanation as deductive, nomological. You can't get away without ontology. It's not a question of being a realist, or not a realist. It is a question of what kind of realist you are going to be – explicit or tacit. Insofar as you are not a realist, you secrete an ontology and a realism....You can't get far in the world unless you are implicitly realist in practice. And I would say that the whole categorial structure of transcendental, dialectical critical reason could be teased out of any remark or action in the world of any significance. This is a very strong claim to make: I would argue that critical realism, in its transcendental, dialectical forms, is the only form of philosophy which can do justice to the categorial structure of the world and so to the axiological necessity of the particular positions, arguments, actions and responses that we make in our ordinary life. From this standpoint, the development of philosophy can be seen as a progression in self-consciousness, in an understanding of what we're doing, when we're doing things about which we are normally unconscious.

C.N. What are your thoughts about new Labour and prospects of any kind of genuine socialist renewal? How should critical realism be viewed in relation to such broader political and socio-cultural developments?

R.B. I think this has to be understood in the context in which capitalism has basically won the struggle against actually existing socialism as it was called, and 1989 was indeed a crucial year, in that it marked the decisive victory against Soviet style socialism. New Labour is just part of the universal accommodation to this fact. Capitalism itself is wrecking havoc on our environment, and quite frankly, unless capitalism is overturned, by a revolution, which will be at once much more peaceful and deeper than the one that overthrew socialism, that will draw on resources and aspects of our being that are at once spiritual and cultural, and set in the context of a programme of feasible transition, and done in a non-violent way - unless capitalism is overturned in this way, I can see very little prospect of humanity surviving much into the 21st century on this planet.

I think we need to consider what is wrong with the superficial categorial structures of the societies in which capitalism, socialism, contemporary new Labour, all equally cohabit. What is required is a revolutionary transformation far more profound that perhaps any of us imagine.

C.N. One current version of anti-realism is the denial that we can ever have reason or adequate grounds for asserting the existence of objective transcendental truths. To the realist, about mathematics, for example, this would seem clearly wrong since truth in such matters, has nothing to do with the current, or indeed the ultimate scope of human knowledge. I wonder where you stand on this issue – and whether critical realism has anything to say about the more technical anti-realist stances.

R.B. I argue that truth has four aspects. First, fiduciary this is, if you like, the intrinsic aspect of science or knowledge – and to say that something is true is to say 'trust me, act on it'. It is quite obvious that we have to have a workable notion of truth to enable us to get around in a world we have only a limited grasp of. This is a pragmatic necessity. The more strongly this aspect can be backed by other aspects, the stronger it is.

The second aspect of truth is truth as warrantedly assertable. This is truth as epistemological. There is no way of getting around the notion of best possible grounds for acting one way rather than another, in a world in which we must act one way rather than another.

Moving now to the notion that lies behind the first two notions, the idea of truth as absolute. To say something is true is to say this is the way reality is. This is absolutely indispensable for any notion of intentional action and hence for any notion we as human beings can have. For intentionality presupposes two things, firstly a belief, and secondly, an orientation to act on the belief in some manner. Without beliefs human beings just aren't humans. So commitment to beliefs as expressive of reality, are transcendental features of any form of social life.

Now, what lies behind the truth of a well attested scientific or moral proposition – e.g., the fact that emeralds reflect light of a certain wavelength – is a higher order proposition, the truth of that truth - the reality that generates it, that is, the atomic structure of the crystal, the nature of the wavelength of light that is reflected in a certain way. What makes it true, for example, to say that if Socrates is a Man he must die is that it is the nature of human beings to be mortal. It is a proposition at a higher level, and it is this higher level truth that grounds the truth of the universal generalisation, the proposition which is expressed in the absolute conception of truth.

So truth at this higher level just is reality, and it is the reality that grounds or accounts for the mundane realities that we invoke in the absolute conception of truth, and it is that absolute conception of truth that backs our epistemological or social conception of truth. There is no getting away from ontology. And the only solution to all the forms of scepticism that the whole tradition of empiricist epistemology has generated, which encompasses the anti-realism to which you refer, is to see that what we're trying to do in science or morality or any other form of life, is to make fallible claims about the world, claims which if they are true are true in virtue of the real nature of beings, entities, things, the real nature of the universe quite independently of our claims. And it is the real nature of being that grounds well attested, universal empirical generalisations or other propositionalised claims of reality, without which no science, no discourse, no action, or no intentionality is possible. There is no escape from truth.

C.N. Just to finish can you tell us what you are thinking about now and what is to be the topic of your next book?

R.B. I'm currently working on an exploration of the way in which we can draw on the resources of traditions and worldviews other than those of the west. On a book called East and West, which has a theoretical component and a component which is more popular in form – which actually takes the form of a novel. This is very connected to an earlier answer I gave, for if we are to have the cultural and spiritual resources that we need to generate a true alternative to and a true sublation of the tradition that has given us capitalism, etc., we must draw on the traditions of the East as well as those of the West. Greek and traditional Christian resources are our contemporary academic philosophical tradition, but looking at ancient Hindu philosophy, at Buddhism, at Confucianism, at Islam – going back to explore the origins and roots of Christianity, all this might give us the resources to fulfil the true potential of human beings and save our planet.

This is linked up to my other feeling that not only has Western philosophy drawn on far too restricted traditions, but it has also couched itself in a pretty inaccessible mode. I'm aware of the paradox that I have talked about human emancipation but in a relatively inaccessible form! So I'm writing a story, which I hope will be universally accessible, this will be backed up by theoretical works.

sábado, 13 de setembro de 2008

A piada mais engraçada do mundo ou: como assassinar uma piada



O Laboratório do Riso foi um projeto criado pelo psicólogo inglês Richard Wiseman, da Universidade de Hertfordshire, e financiado pela Associação Britânica para o Progresso da Ciência. O projeto, ligado à psicologia do humor, visava compreender a influência de elementos como gênero, raça, idade e nacionalidade no senso de humor. Talvez, e isto é mera especulação, ele tenha se entusiasmado um pouco demais e abandonado a contingência que caracteriza o humor e foi em busca da universalidade. Durante um ano, entre setembro de 2001 e setembro de 2002, Weiseman e seus colaboradores embarcaram em uma empreitada que supostamente os levaria a descobrir a piada mais engraçada do mundo.

Não fosse a idéia ultra-positivista que embasa tais projetos universais, talvez o professor Wiseman tivesse tido alguma chance de encontrar algo além de uma piada média relativa ao gosto médio, ou seja, algo que não agrada ninguém em particular. A metodologia usada foi a seguinte: eles construíram um website dividido em duas seções. Na primeira, as pessoas submetiam suas piadas favoritas. Por razões insondáveis para uma pesquisa deste tipo, Wiseman excluiu de sua análise as piadas consideradas ofensivas. Estranho, já que são justamente as piadas ofensivas que poderiam trazer os melhores insights sobre os mecanismos psico-sociais do humor e do riso. Na segunda seção, as pessoas respondiam algumas questões sobre elas próprias (gênero, idade, nacionalidade) e atribuíam um escore a uma série de piadas disponibilizadas no site com base em uma tabela do riso construída por ele próprio.

Os resultados relativos a nacionalidade podem ser encontrados no site e, diante da engenhosidade da análise, nem procurei por aquelas relativas a gênero e idade.

Mas hilária mesmo é a crítica ao trabalho de Wiseman efetuada pelo comediante Lewis Black em um documentário feito para o History Channel. Consegui um fragmento no youtube, justamente o que descreve o resultado obtido pelo Laboratório do Riso. E para quem não conseguir captar a piada, primorosamente contada pelo professor Wiseman, aí vai a tradução:

Dois caçadores estão em uma mata, quando um deles cai no chão. Ele não parece respirar e seus olhos estão vidrados. O outro caçador pega seu celular e chama o serviço de emergência, apavorado: “meu amigo está morto! O que eu posso fazer?”. O telefonista diz “acalme-se, eu posso ajudar. Primeiro, vamos ter certeza de que ele está mesmo morto”. Segue-se um silêncio e, depois, um tiro é ouvido. De volta ao telefone, o cara diz “OK, e agora”?

Cynthia Hamlin

Bombou!

Não comentaremos o que foi essa festa!! Deixaremos que a própria galera se pronuncie acerca do que foi o primeiro Assustado do Cazzo.







sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Salvo uma reviravolta...



As pesquisas de boca-de-urna (sempre que escuto ou escrevo essa expressão lembro de um famoso travesti que fazia campanha para o PT aqui em Pernambuco; quem conheceu a criatura, entenderá a piada), parece mesmo que a festa vai ser no Qui-Qui há, salvo algum tipo de reviravolta. Nossos trabalhos começarão por volta das 17 horas, mas soube através de uma aluna que tem uma moçada madrugadora. Fafá de Belém queria participar da festa para cantar o Hino Nacional. Sem consultar as bases, eu declinei do convite - ouvi falar que faz mal à saúde. E até lá.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Amplificadores


Gisel Carriconde, eu e Phil Jones

Acabo de voltar da exposição Amplificadores 2008, idealizada por Gisel Carriconde, Krishna Passos e Maicyra Leão (veja post abaixo). Foi uma experiência antropológica, só que meio que às avessas. Como o projeto da exposição explicita, a idéia é dessacralizar o espaço dos museus por meio de uma curadoria coletiva: os membros da vizinhança do museu (vizinhança formada por redes locais e virtuais) levam objetos de valor afetivo para serem expostos, juntamente com uma breve descrição de por que aqueles objetos são valorizados.

Foi como estar em um gabinete de curiosidades contemporâneo. Os gabinetes de curiosidades, como já explicitei em algum lugar por aqui, foram os precursores dos museus modernos. Eram coleções enciclopédicas de objetos exóticos trazidos das colônias e oferecidos aos príncipes dos estados europeus nascentes e simbolizavam o processo de expansão e controle do mundo. Ao se tornarem públicos, os gabinetes de curiosidade passaram a ter também uma função pedagógica: os objetos eram comparados, separados e classificados, possibilitando a formação de um sistema taxonômico que viria a caracterizar a ciência moderna.

Neste gabinete de curiosidades contemporâneo, formado por objetos do cotidiano das pessoas, o exótico é construído por meio do estranhamento daquilo que é familiar – uma técnica antropológica bem conhecida. Perceber objetos tão familiares a partir das estórias que são contadas por seus donos traz à tona significados ocultos ao olhar apressado do nosso dia a dia. Reproduzo, abaixo, dois relatos que me pareceram especialmente reveladores. O primeiro explicava a escolha de um mapa escolar do Brasil, levado ao museu por José Adriano, morador de um viaduto nas redondezas do museu:

Eu me importo por este mapa porque eu já fui um cabra muito andado na vida, eu e minha família, sem ter morada. Faz uns seis anos que encontrei ele na reciclagem.

A gente andava puxando minha carroça porque nem um animal eu tinha na época para puxar, e o mapa servia para orientar se andava para frente, se andava para trás.

(José Adriano é analfabeto e não reconhece nenhuma letra dos nomes das cidades no mapa).

Eu já fui de pé para Manaus! Quero dizer, fui de pé, de bicicleta, montado de cavalo, de burro.

Foi difícil achar o mapa, tava guardado dentro de um saco de ferramentas, mas eu achei ele para trazer.

O segundo relato explica a escolha de um anão de jardim, quebrado e colado, levado por Jane Barbosa, residente da comunidade vizinha:

Ganhei este anão há três anos. Um ano depois, uma amiga foi lá em casa para um churrasco. Eu gosto de tudo arrumadinho e organizadozinho na estante. Daí, não sei por que, essa minha amiga caiu e quebrou meu anão, espatifando a cabeça dele. Falei tanta coisa para essa minha amiga que nem me lembro mais o que foi. Só sei que coloquei ela para fora da minha casa. Colei todos os pedacinhos e até hoje não falo com ela.

A humanidade é realmente exótica...

Cynthia Hamlin

Testando o positivismo de Durkheim - parte III


O positivismo com face deprimida...

Navegar é preciso. Continuemos...

Se estou certo em colocar como uma forma de positivismo a separação entre a ciência e o senso comum ou a ideologia, Durkheim prolonga uma tradição antiga que tem, inclusive, como ilustre membro Karl Marx. Prolonga uma tradição que vai desembocar, na sociologia francesa contemporânea, em Bourdieu, por exemplo. Durkheim seria taxativo: o senso comum é pré-noção, ilusão, e o trabalho do sociólogo é, através da construção científica do objeto, produzir uma ruptura nítida entre o social (senso comum = saber social) e o sociológico (o social construído cientificamente = ciência do social).

Talvez, Durkheim não seja tão taxativo assim, embora sempre tenha defendido uma separação entre a sociologia e o senso comum. Ora, o senso comum ou, no caso aqui examinado, as representações coletivas não são ilusões. As representações coletivas religiosas, por exemplo, não seriam apenas a primeira manifestação de socialidade, mas também o começo de todo conhecimento e auto-conhecimento do ser social. As representações coletivas são formas de conhecimento, portanto possuem um núcleo de veracidade. Durkheim chega a afirmar que há verdades mitológicas, e que a diferença entre estas e as verdades científicas é apenas de... controle. Assim, a verdade mitológica

"es un cuerpo de proposiciones aceptadas sin control (contrariamente a nuestras verdades científicas, siempre sometidas a verificación ou a demostración)... Son las representaciones quienes crean ese carácter de objetividad de las mitologías y lo que les confiere este poder creador, es su carácter colectivo: es también este carácter lo que hace que ellas se impongan al espíritu" (1968: 135).

Assim, encontramos uma defesa da veracidade das produções ideativas do senso comum em Durkheim. Tal questão é de monta, pois tem várias implicações:

- a ciência não monopoliza a produção de conhecimento, nem a verdade;
- a ciência segue os mesmos princípios cognitivos do senso comum;
- resgatar o senso comum é resgatar a existência da razão prática;
- o cotidiano do indivíduo não é visto necessariamente como fonte de ilusão e alienação;
- afirmação de um relativismo epistemológico.

São as representações coletivas que fazem "funcionar" a sociedade; logo, não podem ser baseadas em ilusões, dado que assim a sociedade não se manteria coesa nem se perpetuaria. A coesão social precisa estar fincada no real, senão explode. A realidade da coesão social e das representações coletivas possuem um vínculo necessário com o real, donde sua "correspondência" com o mundo, donde sua veracidade.

Levando logicamente adiante o raciocínio, podemos afirmar que o conhecimento científico é um produto social, sucessor moderno da religião, e produtor de verdades, porque é também uma representação coletiva, isto é, possui um vínculo necessário com o real. A verdade é, assim, impessoal. No entanto, a impessoalidade da verdade não é incompatível com a diversidade individual. Durkheim respeita o que chama de individualismo intelectual, característico da ciência moderna, mas afirma que a junção de pensadores individuais só será benéfica ao conhecimento científico se as verdades parciais produzidas individualmente "vienen a concentrarse en la conciencia común y allá encuentran a la vez sus limites y sus complementos necesarios" (142). A ênfase na consciência comum é fundamental e... epopéica:

"la conciencia colectiva, sin pasar obligatoriamente por la filosofía, puede apoderarse de la verdades científicas y coordinarlas en un todo. Así se constituye una filosofía popular que es la obra de todos y que está hecha para todos; y no son solo las cosas físicas lo que esta filosofía popular alcanza y expresa: es también, y sobre todo, el hombre, la sociedad" (139).
Tal posição prefigura Gramsci! Substitua a ciência pela "filosofia da práxis" e teremos essa filosofia popular, esse bom senso revolucionário...

Nesse sentido, Durkheim separaria menos a sociologia do senso comum do que deslocaria o tema da ruptura, do ponto de vista da discussão sobre a verdade e a ilusão, para a separação entre as representações coletivas e as individuais. Penso que, para Durkheim, a fonte do erro e da ilusão está na consciência individual. A representação individual flutuaria ao sabor das idiossincrasias pessoais. Não teria a capacidade de se conectar ao real, isto é, por ser individual não conseguiria ter uma relação necessária com a realidade social. Seria completamente subjetiva, pois interior à consciência individual. Não teria fixidez e exterioridade, não conseguindo cristalizar-se no tempo e no espaço sociais. A partir do momento em que uma representação individual transforma-se numa coletiva (se é que isso é possível em Durkheim) torna-se verdadeira. A verdade, assim, é social; a sociedade é que seria, no fundo, a produtora de verdades. Estaríamos diante de uma versão sociológica do velho mote: a verdade está no todo.

Paro por aqui, até porque, sinceramente, discutir sobre positivismo cansa um bocado e vejo, agora, como é importante um blog acadêmico, justamente para ter a liberdade de dizer tal coisa :)

Mas, antes de parar mesmo a discussão, gostaria de fazer algumas rápidas observações sobre um a priori nessas discussões sobre o positivismo. Quero arriscar e defender uma intuição que tenho. Aparentemente, os ditos fundadores da sociologia partem de premissas epistemológicas para fundar metodologias. Seria como se a fundação de um determinado paradigma ou programa de pesquisa envolvesse necessariamente tipos de metodologias, isto é, doutrinas metodológicas seriam sempre fundamentadas por argumentos filosóficos. Desenvolver uma teoria social e uma pesquisa precisaria constantemente de uma defesa filosófica. A metodologia, nesse caso, jamais seria vista como uma heurística prática fundada em critérios externos e internos de validade científica, mas prescindindo de uma fundamentação epistemológica ou filosófica. A dialética marxista, a sociologia compreensiva e o método durkheimiano são devedores desse tipo de raciocínio que implica continuamente a formação de fortalezas epistemológicas e, conseqüentemente, a criação de metodologias aparentemente refratárias entre si. Quem não se lembra da defesa de Lukács da dialética marxista, considerada como uma ruptura e filosoficamente irreconciliável com as metodologias da ciência social burguesa? O que mantinha o marxismo distinto da epistemologia burguesa seria justamente seu... método.

Acredito que Durkheim fez o mesmo quando elegeu seu método, principalmente nas Regras... (2007), como o método da sociologia. E o curioso dessa dogmática metodológica é que Durkheim não tenha, muitas vezes, seguido os ditames metodológicos tão arduamente defendidos. E isso, sem dúvida, demonstrou a fecundidade do seu pensamento e de suas proposições a respeito da realidade social. Foi fecundo porque não seguiu as... Regras.

Assim, confesso meu constrangimento em relação a tais posições. Confesso meu ecletismo metodológico. O que valida uma teoria social, na minha opinião, seria menos a postura metodológica do que suas proposições substantivas sobre a realidade social. A metodologia vai depender do objeto de estudo escolhido, do tamanho da pesquisa, da escolha das explicações, se causais ou não, de quais conceitos utilizados, e por aí vai. Se quero, por exemplo, analisar mitos, dificilmente deixaria de ser estruturalista; se quero estudar os movimentos sociais, dificilmente prescindiria de uma sociologia da ação; se quero analisar interações sociais entre indivíduos num grupo localizado, seria muito mais fácil e lógico utilizar algumas propostas do individualismo metodológico; se quero examinar a integração sistêmica entre grandes agregados sociais, a utilização de teorias sistêmicas e métodos não reducionistas, talvez, ilumine melhor o caminho a ser tomado.

Pois é... Além de ser um sarapatel de esquerda, defendo a feijoada ou a paella como modelo metodológico. A única preocupação desse ecletismo é evitar o erro na medida e na mistura, deixando o prato... azedo.

Acredito que a sociologia é perpassada por vários paradigmas complementares e concorrentes entre si, ao contrário, talvez, das ciências naturais; logo, pululam na ciência social diversas doutrinas metodológicas complementares e concorrentes entre si. Penso que tal fato, se verdadeiro, crie menos confusão do que uma intensa liberdade.

Contudo, como disse Nietzsche:
"não somos mais livres do que jamais o fomos para lançar o olhar em todas as direções; nós não percebemos limite algum, temos essa vantagem de sentir em volta de nós um espaço imenso — mas também um vazio imenso...".

Artur Perrusi
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DURKHEIM, Emile. Pragmatismo y sociología. Buenos Aires: Editorial Schapire, 1968.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.