Parodiando Gilberto Freyre, no outono de 1986 vivi a aventura do exílio! Um « exílio » com aspas, bancado por uma bolsa de estudos do governo brasileiro para fazer um doutorado no exterior. A França foi o país escolhido. Lá passei quatro anos, de onde voltei com uma tese e o olhar antropológico que ainda hoje uso para observar meu país. Olhar de antropólogo amador, certo, que comecei a desenvolver naturalmente, sem nenhum preparo ou projeto, feito o burguês fidalgo de Molière que fazia prosa sem o saber.
Não há nenhum mérito nisso, pois todo viajante é um antropólogo natural. Ao cairmos em ambiente estranho, somos naturalmente levados a observar coisas com que não estamos acostumados e que, por isso mesmo, achamos estranhas. Hábitos, costumes, gestos, expressões etc., porque são familiares aos que lá vivem, passam completamente despercebidos da população « nativa » e chamam nossa atenção. A partir desse momento, já estamos inocentemente fazendo uso do olhar antropológico, pois o viajante, o que vem de fora, tem a vantagem de escapar da trama social dentro da qual as pessoas estão normalmente e habitualmente imersas desde que nasceram. Um exemplo bem simples. O francês levando para casa o pão desenrolado debaixo do braço (a famosa baguette), mesmo não sendo tão generalizado quanto dá a entender certa imagem caricatural, existe. Eles não estranham isso ─ como não estranham assoar o nariz com estrépito, guardando em seguida a trouxa de lenço amassado dentro do bolso... E nós ─ nós que cuspimos na rua como a coisa mais natural do mundo ─ achamos tudo isso um nojo !
Nesse exemplo aparecem os dois momentos cruciais do olhar antropológico. No primeiro, estranhamos práticas com que não estamos habituados : a baguette no sovaco, o assoar escandaloso etc. Em seguida, e mais importante para o nosso enriquecimento pessoal, começamos a estranhar também certas práticas com que estávamos habituados na cultura de onde viemos. No caso, cuspir na rua. Mas também jogar na rua toda espécie de lixo : guardanapo usado, embalagem de bombom, garrafa plástica etc. É o que se chama de estranhamento do familiar. Método por excelência dos antropólogos, tanto pode ser consciente e aprendida, como no antropólogo profissional, quanto natural e espontânea, como no antropólogo amador, categoria da qual faz parte todo viajante ─ ou seja, aquele que sai da sua terra e passa a olhá-la através do viés de um olhar « estrangeiro ». Talvez não tenha sido por mero acaso, aliás, que dois dos textos mais importantes do nosso pensamento social ─ ambos aparecidos nos anos 30 ─ tenham sido escritos depois de uma estada fora do Brasil dos seus autores : Casa-Grande & Senzala, que Gilberto Freyre escreveu depois de um período nos Estados Unidos, e Raízes do Brasil que Sérgio Buarque de Holanda escreveu depois de voltar de um período na Alemanha. Para não falar de Roberto DaMatta, o mais festejado antropólogo brasileiro contemporâneo, que nos conta no seu O que faz o brasil, Brasil ?, que foi sua experiência nos Estados Unidos que « fez-me um observador crítico da sociedade brasileira e seus costumes, iniciando-me como pesquisador e comentador da minha própria sociedade. » Ora, a tradição de olhar a própria sociedade « de fora » é anterior à constituição mesma da antropologia como disciplina acadêmica. Montesquieu, por exemplo, para falar (e falar mal...) da sociedade francesa do seu tempo, escreveu as famosas Cartas Persas, apesar de nunca ter posto os pés na terra dos descendentes do grande Ciro!
Atenção, contudo: essas observações não devem levar a imaginar que, ingenuamente, estou elegendo a França como espelho de virtudes no qual gostaria de ver o Brasil mirar-se. Nada mais estranho aos meus propósitos do que esse etnocentrismo de colonizado. Num certo sentido, a França foi apenas o lugar onde estive momentaneamente e do qual me servi para pensar o meu país a partir da experiência privilegiada de “estar fora”. Num sentido metodológico, outro país poderia também servir. Mas, por outro lado, não deixa de ser verdade que o fato de estar num país democrático pertencente à modernidade ocidental caiu bem aos meus propósitos críticos em relação à sociedade brasileira ─ a qual, sob vários aspectos, não hesito em considerar ainda hoje uma sociedade escravagista. Ora, esse julgamento, pelo menos vazado nessa fórmula, não o tinha antes dessa experiência. E não há como negar que a convivência com formas e hábitos de vida mais igualitários ajudou-me a desenvolvê-la. A “bricolagem” francesa foi um desses hábitos que me serviram como chave de leitura crítica de formas e hábitos de vida com que estava acostumado...
Nos anos 70, no Brasil, termos como bricolage e bricoler tiveram um retumbante e efêmero sucesso na esteira da moda estruturalista nas ciências sociais que percorreu o pais. Passou, sem deixar mossa nem bossa, como geralmente passam as modas intelectuais entre nós. Mas ─ deixando de lado o falecido estruturalismo ─ proponho retomá-los porque, no seu sentido comum, esses termos, que têm uma presença muito grande no cotidiano dos franceses, lançam uma luz muito interessante sobre a sociedade brasileira, exatamente porque não temos palavras que lhes correspondam. O verbo bricoler, de acordo com o dicionário, significa "executar pequenos trabalhos domésticos". Isso, é verdade, nós temos no Brasil. Ocorre que, como sempre, o dicionário não diz tudo. Bricoler, na França, é mais do que a simples atividade de executar pequenos trabalhos em casa: é o hábito que têm todas as pessoas – pelo menos aquelas situadas ao nivel das classes médias – de fazê-los. Toda uma cultura e todo um comércio circulam em torno desse verdadeiro ethos nacional. Às vezes, mais do que refazer um pintura, trata-se de refazer a própria casa ─ with a little help from my friends, como dizia a velha canção dos Beatles!
Conversando logo que cheguei com um educador francês (portanto alguém de uma classe social equivalente à minha no Brasil) que estava refazendo a sua, lembro que lhe disse: "Por exemplo, no Brasil as pessoas da nossa classe social nunca vão construir a casa com as próprias mãos, como voces fazem". E ele, que morou seis meses no Brasil, retrucou-me sem falso romantismo: "Mas se nós pudéssemos também pagaríamos a uma pessoa para fazer as coisas por nós. Não tem sentindo passar o fim de semana trabalhando quando você tem pessoas que trabalham para você por quase nada". Esse diálogo serviu para despertar em mim uma primeira e desconfiada impressão que mais tarde, com o passar do tempo, tornou-se uma evidência: a classe média brasileira tem, em termos de conforto material, um nível de vida em muitos aspectos superior ao nível de vida de um francês de sua mesma classe. Essa afirmação, aparentemente temerária, espero demonstrá-la com alguns dados concretos. Antes de tudo, porém, convém precisar que nível de vida materialmente confortável não se confunde com qualidade de vida, que diz respeito mais ao bem-estar do cidadão.
Ora, em coisas básicas e fundamentais para o bem-estar das pessoas, como educação e saúde, não há comparação possível. Claro, nada é perfeito. A prova é o que dizia o diretor da escola primária onde minha filha foi estudar, no primeiro dia de aula. Como sempre acontece, nesse dia o diretor reúne todo o pesoal – pais e alunos – no pátio e faz um pequeno discurso de boas vindas. Pois bem: entre outras coisas ele pedia desculpas aos pais porque a escola continuava com problemas de sobrecarga nas salas: numa delas, havia 28 ciranças!… Estou falando, obviamente, de escola pública ─ obrigatória, de tempo integral, laica e de qualidade! ─ esse molde de republicanismo para onde os franceses, desde pequenos, são enviados todos os dias, anos a fio... Sem solução de continuidade!
Essa última observação tem a ver com a minha descoberta de que, lá, a educação é uma tarefa de estado, não de governo. Isto é, governos são coisas passageiras e o estado, mesmo não sendo eterno (nenhum é!) é algo mais permanente. Nesse caso, diferentemente do que ocorre com a francesa, a educação brasileira deveria ser algo bem mais sólido, persistente e contínuo do que políticas sazonais de governantes mais preocupados em deixar uma placa de inauguração de um novo prédio do que em manter a escola que encontrou. Aprimorá-la, certo, mas passá-la adiante, sem solução de continuidade, para o próximo ocupante da sua efêmera cadeira. Chama e clama minha atenção a mesquinharia da nossa cultura política no que diz respeito à educação pública. A nossa histórica vocação para o efêmero, para a novidade de projetos que não vão além de governos, numa palavra, para a “solução de continuidade”. (Expressão, aliás, que acho engraçada. Deveria ser, pensando bem, dissolução de continuidade, não? Pois se se trata de uma continuidade que se rompe, como chamá-la de solução?...)
Nossas práticas tradicionais, nesse quesito, chegam a comprometer a memória das coisas, datas e normes, pelo puxa-encolhe que as caracteriza. Quem se lembra de sigla CIEP? Foi, acho, no primeiro governo de Brizola no Rio de Janeiro. Era algo como Centro Integrado de Educação... não-sei-o-quê! A idéia era essa a que estou me referindo: uma escola pública, gratuita, integral e de qualidade! Muito bem. Terminou o mandato de Brizola, não sei mais se foi o primeiro, veio o seu sucessor, não sei mais quem foi, e acabou tudo. Inventou uma novidade. Quatro anos depois, Brizola volta ao poder, e ressuscita o CIEP – Centro Integrado etc. Quatro anos mais tarde, vem um novo sucessor, e acaba tudo de novo, inaugurando outra novidade. Quem foi o sucessor, e qual foi a novidade, também não lembro! Eis que Collor chega ao Planalto do Planalto! E com ele, os CIACs. Quem se lembra da sigla? Era, acho, Centro Integrado de Assistência... Seria Assistência ou Acompanhamento?... Pouco importa, a idéia era a mesma: uma escola pública, gratuita, integral e de qualidade. Em todo o país! Collor, decentemente, diga-se de passagem, rendeu homenagens à idéia inicial de Brizola, e anunciou que seriam construídos, do Oiapoque ao Chuí, dois mil CIACs. Dois mil?... Ou seriam cinco mil?... Não me lembro. Pouco importa mais uma vez. Mas antes de realizar o intento, sincero ou demagógico, sabe-se lá!, o governo Collor chafurdou na lama em que pontificavam figuras como Paulo César Faria... Ou seria Farias? Nunca sei!... Resultado: o governo Collor acabou, e dos CIACs ninguém fala mais. Os poucos que foram construídos devem estar por aí, velhos, podres, enferrujados. Como diria Caetano na expressivíssima canção Fora de Ordem, “aqui tudo parece ainda em construção e já é ruína...”
Ora, a escola pública francesa, com os evidentes, necessários e inevitáveis ajustes ao longo do tempo, remonta não ao governo de Chirac, ou de Mitterrand, ou de Giscard d´Estaing, ou de Pompidou, ou mesmo ao governo do general De Gaulle. Remonta ao último quartel do século XIX (isso mesmo, XIX!), ao tempo de um grande republicano, ministro da instrução pública da época, Jules Ferry, que instituiu em 1882 o que os franceses chamam de Educação Nacional ─ l´Education Nationale ─ em letras maiúsculas quando escrevem, e com reverência quando falam. Mas a coisa vai ainda mais longe. Pelo menos a idéia de uma instrução pública, extensiva a todos os cidadãos, como preparo para ingressar na polis com as Luzes da Razão. Escrevi Luzes e Razão em maiúsculas, para realçar que a idéia remonta pelo menos à época do Iluminismo e toda sua crença na Razão como metro para as relações humanas, ideário cujo ponto culminante, se bem que nada razoável por todo o sangue que acabou derramando, foi a Revolução Francesa, esse acontecimento inaugural dos tempos modernos, a partir do qual o valor liberdade, mas, convém não esquecer, também o valor igualdade, passou a fazer parte do imaginário político e social do nosso tempo.
Estamos acostumados, por causa de uma presença hegemônica do modo marxista de pensar na nossa academia, a ver nos eventos de 1789 a marca de uma revolução burguesa por excelência; e na Declaração dos Direitos do Homem que ela produziu, a marca de um sociedade de indivíduos egoístas, ensimesmados, pensando no seu interesse particular, como realçou Marx na crítica que fez num texto de juventude: A Questão Judaica. O juízo e o julgamento são, no geral, verdadeiros, nem que seja pelo fato de que à turbulência revolucionária de fins do século XVIII sucedeu a sólida sociedade burguesa do século XIX, mas é um tanto sumário e sem nuances. Convém não esquecer que a Revolução é um processo longo e tortuoso, e que desde o instante em que ganhou as ruas e incorporou as massas miseráveis de Paris, o movimento, num determinado momento, mudou de rumo e se radicalizou: em 1793, uma nova Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, hoje praticamente conhecida apenas dos historiadores, via a luz do dia. E, nela, encontram-se já dispositivos que podem ser considerados como precursores dos direitos sociais do futuro welfare state, estabelecendo, respectivamente, o direito ao trabalho e à educação. Fixemo-nos no segundo, anunciado no artigo 22 da nova Declaração, que prescrevia o seguinte::
“A instrução é uma necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder os progressos da razão pública, e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos”.
Essa história mostra como uma experiência exitosa de educação ancora-se numa linha de continuidade que, anunciada no fim do século XVIII e implementada no fim do século XIX, pode servir como contraponto crítico para a nossa pobre e mesquinha experiência. Pobre porque historicamente nunca cuidamos da educação ─ estou me referindo obviamente à educação de base ou fundamental ─ como um bem a ser equitativamente distribuído pelo conjunto dos nossos cidadãos. Mesquinha porque, mesmo quando, como aconteceu nas últimas décadas, conseguimos finalmente estendê-la praticamente a todas as nossas crianças e jovens, ela, a educação ─ repito: de base e fundamental ─ , não tem merecido o cuidado e a prioridade orçamentária que estamos lhe devendo desde que nos tornamos uma nação. Mas retomo o fio deixado lá atrás sobre qualidade de vida.
O sistema de saúde, esse, para quem vinha como eu do Brasil, era simplesmente um sonho. Para começo de assunto, nada de Golden Cross e congêneres. A Previdência Social francesa reúne as vantagens da medicina socializada ─ todo mundo tem acesso a médicos e remédios ─ e da medicina capitalista: as pessoas vão aos médicos que escolhem. O sistema funciona na base do reembolso das despesas efetuadas. Claro, com algumas limitações. Assim, raramente o reembolso atinge os 100% das despesas: as pessoas então, mediante o pagamento de uma mensalidade, filiam-se ao que eles chamam de mutuelle ─ especie de seguro ─, que se encarrega de reembolsar a parte não coberta pela Previdência. Geralmente as pessoas se filiam por categoria profissional: existem mutuelles das enfermeiras, dos estudantes, dos professores etc. Tanto as mutuelles quanto a Previdência têm tarifas de honorários máximos, que de um modo geral são seguidas pelos médicos. Quem escolhe um médico que cobra acima dessas tarifas ─ e eles são obrigados a dar essa informação ao paciente ─, tem de bancar a parte não reembolsável. Nos hospitais, o princípio do acesso ao alcance de qualquer um é o mesmo, com a diferença ─ que no caso é uma vantagem ─ de que, como geralmente se trata de despesas grandes, as pessoas nada desembolsam: na entrada, apresentam a carteira de previdenciário e de sócio de uma mutuelle, e a contabilidade é feita diretamente entre os organismos envolvidos. Existem, claro ─ afinal de contas, a França é um país capitalista ─ clínicas privadas de luxo, para onde vão os realmente endinheirados, onde o sistema não é o mesmo. Mas estou falando é da classe média, da qual fiz parte na França e faço parte no Brasil. Com o que volto à “bricolagem”.
A bricolage francesa, mas não só ela, significa a ausência, na França, do horror atávico que as classes médias brasileiras, de um modo geral, têm pelo trabalho manual. Lavar o carro, ainda vai: tem gente mesmo que passa o domingo todo fazendo isso. Mas consertar pia, renovar a pintura de um quarto, fazer pequenos trabalhos de marcenaria ou plantar tomates, já é demais! E organizar um mutirão com parentes e amigos para renovar uma casa velha, que horror! Essa, como disse no início, é uma prática um tanto comum na pequena classe média francesa: adquirir a preço baixo uma casa velha e, aos poucos, ir reconstruindo-a com a ajuda dos amigos e parentes. Estes, por seu turno, são depois ajudados por aqueles a quem antes deram uma mão. Mesmo quando não se trata de refazer toda a casa, os franceses sempre encontram alguma coisa para reparar. Tipico disso é a mudança do papel de parede que recobre o interior das habitações, e que os franceses têm a mania de mudar mesmo quando o apartamento onde vão morar é alugado. Basta que o papel esteja um pouco estragado, ou que sua cor não tenha agradado ao novo inquilino, e ele organiza um fim de semana para a sala, um outro para a cozinha, e assim por diante. Freqüentemente, os parentes são contatados para saber se podem ajudá-lo na empreitada. É, sem dúvida, um sistema de mutirão, que também existe no Brasil ─ só que, no nosso país, quem faz isso são os pobres, pobres mesmo.
A mesma coisa para a prática de tomar conta de filhos de vizinhos ─ o baby sitting. É comum as garotas francesas de classe média, para engordar a mesada, irem na casa de uns e outros tomar conta de crianças, enquanto os pais destas vão ao cinema, saem para uma festa etc. Nos quadros de aviso que existem nos lugares públicos (escolas, centros comerciais etc.) é comum "classificados" do tipo: "Jovem de 17 anos em férias, com experiência nisso e naquilo, procura crianças na faixa de 3 a 4 anos para cuidar durante o mês de julho. Telefonar para…" Capitalismo é capitalismo e, na França, realmente, "amigos, amigos; negócios a parte". Eles têm até um ditado que corresponde exatamente a isso: "As boas contas fazem os bons amigos". E é a sério. Uma mãe de família trabalha e precisa que uma vizinha vá à escola buscar o seu filho e tome conta dele até sua volta do emprego? Pois isso é trabalho, e é pago. E as mulheres que não têm emprego fora e portanto podem exercer esse tipo de atividade em casa, põem também seus "classificados" nos quadros de avisos. Isso se chama faire la nourrice – isto é, ser babá. Tudo no maior profissionalismo.
Essa atitude não depreciativa em relação ao trabalho contrasta tão fortemente com a mentalidade brasileira que na literatura memorialística das mulheres que passaram pelo exílio durante o regime militar encontram-se depoimentos dando conta da descoberta desse contraste. A professora Emilia Viotti da Costa, ensinando em Yale, Estados Unidos, depois de ter sido aposentada compulsioramente pelo AI-5, observa: "Um aspecto positivo é que a maioria dos estudantes trabalha. E trabalha em qualquer emprego. Não existe uma conotação negativa ou depreciativa associada a certos empregos como existe no Brasil. Nesse sentido a sociedade é mais democrática do que a nossa jamais foi". Uma certa Alice, mãe de familia escrevendo no tempo em que ainda estava exilada na França, dá um depoimento sobre suas filhas que é uma beleza: "Elas tomam conta de crianças, levam os filhos dos outros ao cinema, fazem faxina e ganham com isso. São trabalhos remunerados, quase profissionais, que fazem com a maior seriedade. E o que é mais importante, incorporam na prática que nenhum trabalho é feio. (…) Quando escrevi à minha família contando essas coisas todas, as pessoas ficaram atônitas e perguntaram o que é que está ocorrendo. Já veio carta da minha mãe dizendo que acha isso um absurdo, etc. e tal, coitadinhas das crianças". Ainda uma vez mais, nada disso é estranho ao Brasil. Criança tomando conta de criança, vizinha sendo paga para cuidar de bebê da outra que teve de sair para trabalhar, tudo isso se vê no nosso país ─ mas entre os pobres, nas favelas!
Também outros hábitos que no Brasil são exclusivos das classes populares, na França são bastante espalhados pelas classes médias. Por exemplo, ir à praia ou fazer uma viagem ou passeio levando a própria comida. No Brasil, isso é coisa de "farofeiro". Na França, quando as famílias levam as crianças a um parque de diversões, é mais do que comum levarem também uma sacola cheia de sanduíches. Os próprios parques já têm uma área com mesas, bancos e outros apetrechos para as pessoas fazerem seus piqueniques. Nas viagens de trem, é a mesma coisa: na hora do almoço está todo mundo mordendo alguma coisa – muitas vezes com todo o savoir-faire francês: primeiro a entrada (um tomate, por exemplo), depois o prato de consistência (um sanduíche de queijo ou de presunto), e finalmente a sobremesa (uma fruta, um chocolate). Tem gente que não dispensa nem o vinho para acompanhar, enquanto outros, mais modernos, preferem a comodidade de uma coca-cola em lata. Findo o almoço, todo mundo enrola os restos nos guardanapos descartáveis e põe seu paquotinho de lixo num pequeno depósito que para esse fim existe ao lado das poltronas. Mesmo em Paris, em plena Champs-Élysées, talvez o lugar mais chique do mundo, ao meio dia, as pessoas passeiam comendo o delicioso pão francês com alguma iguaria dentro.
Existe toda uma mitologia em torno da sovinice do francês, geralmente considerado um povo pão-duro. Quando eu telefonava para os amigos no Brasil e dizia que não podia falar mais do que dois minutos por causa do preço da ligação, eles perguntavam se eu tinha virado francês... Com efeito, o personagem típico que atrevessa a obra de Balzac, o francês médio que conta seu rico dinheirinho, centavo por centavo, existe. Père Goriot – assim como Harpagon, o personagem d'O Avarento, de Molière – encarnam um dos arquétipos da alma gálica. Como acontece com todo mito, também nesse há uma parte de exagero que convive com um fundo de verdade. De fato a relação do francês médio com o dinheiro – como ganhá-lo, como guardá-lo, como gastá-lo – faz aparecer um personagem que está sempre fazendo cálculos miúdos e pensando em como fazer para gastar menos. Para tudo resumir numa fórmula – aliás bastante utilizada para definir o caráter francês de um modo geral ─, eu diria que eles têm com o dinheiro uma relação cartesiana. Ora, direis, todo mundo tem. Em nenhum lugar do mundo alguém sai de casa para ir ao cinema sem saber se tem no bolso dinheiro suficiente para as entradas, por exemplo. Mas o francês médio é muito mais cartesiano do que nós. Ele não vai preocupar-se apenas com o dinheiro da entrada, ele vai planejar sua ida ao cinema. O filme está passando num cinema da Champs Elysées e também num cinema de subúrbio: qual é o mais barato? – o do subúrbio. Mas o bilhete do metrô para chegar ao subúrbio é mais caro do que para ir aos Champs Elysées. A diferença compensa? E por aí a fora. A mesma coisa com comida. Não se faz comida para sobrar. Se são três pessoas convidadas, a dona da casa conta mais duas, ela e seu marido, e faz comida para cinco pessoas, nem mais nem menos. Ninguém mais vai aparecer de improviso, nenhum convidado leva “penetra”, porque isso não existe. Tudo é planejado. O próprio dinheiro que vai ser gasto no jantar é contado, tintin por tintin... Sem dúvida, parece coisa de “farofeiro”!
Falar nisso, não conheço ninguém no Brasil que não esteja a favor da redistribuição de renda. Mas me pergunto se as pessoas estão realmente concientes do que isso significa, na medida em que redistribuição de renda não é aumento de salário para todo mundo, que não redistribui coisa alguma… Ora, o nosso senso-comum raciocina assim: eu não estou ganhando muito, o povão é que esta ganhando pouco. O raciocinio é reconfortante, mas é falso. Pois o diabo é que a dialética existe e às vezes, como aqui, ela está certa: se se considera a economia de um país como uma totalidade, a condição necessária para que eu ganhe 10, 15 ou 20 vezes mais do que ganha um trabalhador, é que ele ganhe 10, 15 ou 20 vezes menos do que eu! Fora disso, é o milagre dos pães e dos peixes ─ que, como se sabe, aconteceu apenas uma vez, há dois mil anos, na Galiléia...
Falando sério: estamos todos de acordo no que diz respeito a uma maior remuneração do fator trabalho? Pois devemos estar conscientes de que isso quer dizer pagar mais às nossas empregadas domésticas, ao porteiro que nas horas “vagas” lava o nosso carro, ao pedreiro que reforma nossa casa, ao gari da prefeitura e ao faxineiro da empresa onde trabalhamos. Redistribuição de renda, a sério, entre outras coisas quer dizer uma mão-de-obra mais cara. E não adianta chiar, porque estamos todos chorando de barriga cheia. Cheia, por exemplo, da cerveja que consumimos generosamente na sexta à noite, sábado e domingo nos bares e restaurantes da vida. Já falei que o francês médio não usufrui do nível de conforto material que no Brasil temos a nossa disposição. Essa história de mesa de bar é um bom exemplo. Ninguem de classe média na França tem condições de tomar 10 chopes no bar como a gente faz brincando no Brasil. O preço não permite. Não o preço da cerveja em si, mas do serviço prestado. Estourando, uma cerveja no Brasil custa, no bar, duas vezes o preço que ela custa no supermercado. Falo de um bar comum, é claro. Na França, uma garrafa pequena de cerveja simples como a que eu bebia em casa custava, no supermercado, 1,60 francos (na época, a moeda ainda era o franco). Essa mesma garrafinha de cerveja, nos bares mais simples de Paris, custava em torno de 12 francos – isto é, acima de 7 vezes mais!
Pode? Lógico que não. Por isso o francês toma uma cerveja e vai pra casa. Ir almoçar fora? Isso na França é um programa excepcional e não, como ocorre no Brasil, um hábito tradicional dos domingos porque a empregada está de folga. A verdade é que nos acostumamos a um nível de conforto que, comparado com o que se passa nos outros países mais ricos e socialmente mais justos, são evidentes distorções. Tornou-se comum no Brasil os apartamentos de classe média terem três sanitários: um para os pais, outro para os filhos e outro para a empregada. Na França isso simplesmente não existe. Pelo menos nos meios que freqüentei ─ é bem verdade que eu nunca fui a uma recepção na casa do barão de Rothschild… ─, é um sanitário só e acabou. Paciência, mas ainda aqui um pouco de dialética não faz mal a ninguem: três sanitários na minha casa, significa dois sanitários a menos na favela… Estamos concientes disso? Acho que não, e algumas reações inesperadas a alguns ganhos que as empregadas domésticas tiveram com a aprovação da Constituição de 88 parecem indicar que, de fato, essa conciência não nos interessa. Como diria Machado de Assis, suporta-se com paciência a cólica do próximo!
Ah… as nossas empregadas domésticas! Estou cada vez mais convencido de que falta na ensaística nacional uma grande obra sobre essas criaturas e que ─ numa atualização perfeita de Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre ─ bem poderia chamar-se Suíte e Quarto de Empregada. Ainda aqui o olhar antropológico, o estranhamento do familiar mostra-se de uma grande fecundidade. A primeira vez que ouvi alguém "estranhar" esse fenômeno foi numa conversa já antiga com o professor Afonso Nascimento, da Universidade Federal de Sergipe, um velho amigo que, tendo passado algum tempo estudando na Europa, tinha voltado ao Brasil. Foi antes da minha ida à França e estavámos nós dois ─ velhos esquerdistas do tempo da faculdade ─ trocando impressões sobre a vida em torno de uma garrafa de cerveja quando ele, a propósito dos nossos revolucionários de botequim, observou: "Todos têm um discurso de esquerda, mas estão com a casa cheia de empregadas". No ato não entendi o que tinha a ver uma coisa com a outra mas, não querendo passar por reacionário, não dei seqüência ao assunto. Só muito depois, já estando eu mesmo na Europa, foi que comecei a perceber todas as implicações do que ele havia dito: o Brasil é, ainda hoje, uma sociedade escravocrata, e o nosso contingente de empregadas é a melhor prova disso. E como não quero passar por "bonzinho", aviso logo: sim, no Brasil eu sempre tive empregada! Isso não impede que, enquanto analista, eu lance um olhar crítico sobre um fenômeno no qual estou imerso e sobre uma categoria social da qual eu mesmo faço parte. Para usar uma justificação que não é uma simples frase de efeito, quem escreve estas páginas não é uma pessoa fisica, é um sujeito epistêmico... E continuo.
Todos nós conhecemos a dura vida das empregadas domésticas brasileiras: baixos salários, horários escorchantes, direitos trabalhistas não respeitados etc. O fato de que a empregada é sempre uma pessoa paupérrima circulando num ambiente de relativa abundância (comida na geladeira, dinheiro nas gavetas, jóias nos armários), faz nascer um inevitável ─ e, é claro, às vezes fundado ─ sentimento de suspeita por parte das patroas. É essa a feição mais anacrônica do trabalho doméstico: não se trata de uma relação de trabalho capitalista como as outras, onde, mesmo se a exploração econômica existe, o empregado, uma vez findo o expediente, é um cidadão como os demais, dono do seu tempo e do direito de beber sua cervejinha como um ser soberano. As empregadas, além de muitas vezes não terem o seu tempo livre claramente delimitado, têm também muitas vezes de prestar contas à patroa das suas horas de folga: o que faz, com quem anda, com quem está namorando etc. Ou seja: ela nunca é uma pessoa inteiramente adulta como as demais. Mesmo quando a sua empregadora é aquilo que o jargão do oficio chama de uma "boa patroa", trata-se de uma situação próxima da servidão, análoga à situação do escravo que tinha a sorte de cair na mão de um "bom senhor".
Em resumo, trata-se de uma situação existencial de permanente dilaceramento, pois mesmo se a patroa a trata bem, a doméstica vive numa casa que não é a sua, dorme num quarto que não é o seu, convive com uma familia da qual não faz parte etc. Transcrevo aqui o depoimento de uma doméstica que se casou com um americano e foi embora para os States, e que depois escreveu à revista NOVA relatando sua experiência: "Comecei a trabalhar com 8 anos e nunca pensei que o pesadelo ia terminar. No meu quartinho cheio de detergentes, vassouras etc, eu sonhava em ter um dia um trabalho decente e, ao terminá-lo, poder ir para a minha casa, fazer o jantar do meu preto, e domingo poder ir ao cinema ou a uma praia, sem precisar sentir vergonha de minha profissão. Poxa, gente, isso aconteceu e está acontecendo! Hoje sou faxineira nas horas vagas, estudo e cuido de meu gringo. Nao sinto vergonha de dizer de mim. Deixei de ser o bode expiatório, a hóspede incômoda e necessária. Sou uma mulher que trabalha para ter um dinheirinho a mais. Não tenho mais o grito do samba, o batuque e a glória da avenida, mas também não tenho mais a madame. Só sinto pelas outras empregadas domésticas, que não sabem o que é liberdade". E se assina Regina Martins Pippins. Mais sorte do que ela, so Mary Poppins, que já nasceu fada...
Ainda haveria muito o que que dizer. Mas, como diria Macunaíma, “Ai... que preguiça! Tem mais não”