quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Testando o positivismo de Durkheim - parte I



O texto é uma recauchutagem de um artigo sobre Durkheim: “A construção social dos sentidos: subjetividade e individualidade em Durkheim” (Perrusi, 2005). Aqui, centrarei mais o foco na questão do positivismo. Devo dizer que me inspirei dos artigos de Cynthia, publicados aqui mesmo no Cazzo. Ela inchará de orgulho, ficará amostrada, contará a Deus e o mundo, mas a vida tem dessas coisas. Meu medo é que ela fale sobre esse assunto na plenária da Anpocs. Aí é demais, convenhamos, e acho até que, diante desse perigo, não irei ao encontro público das vaidades (sociológicas) cariocas e paulistas. Mas a inspiração foi inevitável; afinal, os artigos abordaram um assunto bem interessante: o positivismo de Durkheim.

Digo logo que meu texto será marcado pela complementaridade, pois acho que não há muita divergência, exceto talvez em questões pontuais. De toda forma, foi essa minha impressão, embora não saiba ainda qual será a de Cynthia. Confesso que não acho fácil analisar as posições epistemológicas de Durkheim -- são um tanto ambíguas, na verdade. Por isso, acho que toda prudência é pouca em se tratando do alsaciano. Talvez, dos fundadores da sociologia, o sociólogo francês seja o mais difícil de enquadrar, donde todo o nosso cuidado. Afinal, Durkheim é um realista, um racionalista ou um não-sei-quê? Fundou ou não fundou o método da Sociologia? Um completo positivista ou um pensador que, na prática, não o foi de todo? Um defensor ou um inimigo do individualismo? Um moralista ou um "cientista" da moral?

Claro, não tive a pretensão de resolver a questão acima, embora tentasse "marcar" alguma posição ao longo do texto. Na verdade, o que tentei foi mostrar a complexidade da posição epistemológica de Durkheim, cuja démarche não pode ser reduzida, na minha opinião, a um positivismo curto e grosso. Ofereço dois rápidos exemplos:

- sua discussão sobre o pragmatismo no livro Pragmatismo e Sociologia (2005). Aqui, as posições de Durkheim são bem mais complexas do que sonha As regras do método sociológico (2007)! Na análise crítica que Durkheim faz do pragmatismo, percebo posições filosoficamente bem mais nuançadas daquelas do seu tratado metodológico. E a crítica de Durkheim torna-se mais ainda interessante quando o vemos realçar algumas proposições em comum com o pragmatismo, ao mesmo tempo em que tem a oportunidade de expor suas posições, tornando-as menos doutrinárias. Assim, enquanto o texto Sociologia e Filosofia (1970) seria uma resposta às objeções em relação às suas posições sobre a moral, o Pragmatismo e Sociologia seria uma tentativa de expor suas posições epistemológicas sem o ranço doutrinário. O próprio prefaciador do escrito, A. Cuvillier, reconhece que Durkheim é um racionalista, mas não dogmático, e que sua sociologia não faz concessão alguma à metafísica, muito menos a uma teologia, isto é, sua tese da "consciência coletiva" não se confunde com mundo das idéias eternas de Platão (sei não...);

- a ambigüidade entre suas posições metodológicas manifestas, baseadas nas As regras do método sociológico (1978), e suas posições latentes, como aquelas aparentemente defendidas nas Formas elementares da vida religiosa (1989).

Mesmo assim, seria senso comum sociológico considerar Durkheim um positivista. Não é, decerto, um termo lá muito carinhoso, funcionando mais como um enquadramento negativo. Faz parte dos diversos modos de culpabilização utilizados no meio acadêmico. Chame um coitado de positivista e o condene à fogueira epistemológica (dizem que, comparável ou pior do que isso, é chamar fulano de "cartesiano", forçando-o a uma combustão filosófica instantânea). Uma condenação um tanto estranha já que, muitas vezes, não se sabe exatamente por que diabos chamamos o desgraçado de positivista. Além do mais, positivismo seria uma noção não tão consensual nas ciências sociais e um tanto quanto polissêmica.

Nesse momento, adotarei um caminho diferente do de Cynthia, que analisou o positivismo de uma maneira mais epistemológica; deste modo, abordarei o positivismo de uma forma, digamos assim, mais normativa, isto é, tentando responder a seguinte pergunta: normalmente, que tipo de situação, nas ciências sociais, corresponde ao positivismo? Ou, ainda: o positivismo corresponde a que visão de ciência social? Sei que minha resposta não esgota os sentidos da noção, mas ajudará meu raciocínio.

Inicialmente, experimentarei duas hipóteses, todas as duas relacionadas a duas tradições de pensamento: a francesa e a alemã. Na segunda parte do texto, analisarei a segunda hipótese, de uma forma mais aprofundada, já que bate mais com minhas posições. Assim, vamos à primeira hipótese: na tradição intelectual francesa, o positivismo envolveria duas situações, inspiradas do modelo físico-matemático:

1) apenas as disciplinas que possuem objetos passíveis de matematização e de experimentação têm acesso a um conhecimento objetivo e científico;
2) em tese, nada impede que todos os objetos sejam apropriados pelo conhecimento objetivo e científico, inclusive as categorias de valor.

Creio que Durkheim é simpático ao primeiro ponto, embora não lhe faça apologia, já que seu modelo de adoção não é o físico-matemático, e sim o orgânico ou biológico. Além do mais, ele não utiliza a estatística como uma forma de matematização do fato social e sim como uma forma de buscar correlações passíveis de serem enquadradas num modelo causal de explicação. Já em relação ao segundo ponto... Bem, o positivismo francês é ambicioso e tem a pretensão de eliminar a separação (kantiana) entre fato e valor. Para Durkheim, não existe uma ruptura entre os julgamentos de fato e os de valor. O ideal pode ser tratado cientificamente. Não causa surpresa que o alsaciano quisesse fundar uma “física dos costumes e do direito”, reduzindo o normativo à normalidade, isto é, haveria uma correlação exata entre o normativo e a estrutura social, donde o ideal surge e se constitui enquanto representação coletiva. Na minha opinião, reduzir o normativo à normalidade é nutrir a esperança de que, um dia, a ciência englobará todas as questões relevantes da existência humana, inclusive os fenômenos morais. É uma baita pretensão. Convenhamos, é um positivismo que namora com a possibilidade da (quase) onisciência.

Curiosamente, o debate contemporâneo alemão em torno do positivismo vai de encontro à tradição francesa. Leo Strauss (1999), por exemplo, identifica como positivista a posição de Weber, isto é, justamente sua defesa de que é irreversível o conflito entre os diversos sistemas de valores (a “guerra dos deuses”) e de que há um abismo intransponível entre os fatos e os valores. Os sistemas de valores são racionalmente simétricos ou equivalentes, correspondendo a decisões arbitrárias. Assim, o decisionismo weberiano foi acusado de positivista.

Como seria impossível, de um fato qualquer, retirar alguma conclusão sobre seu valor, pois não há transição alguma entre as duas dimensões, a factual e a axiológica, e como a ciência social tem como objeto os fatos, deduz-se que a ciência social é eticamente neutra; logo, a objetividade só existirá numa ciência neutra e que tem como objeto apenas os fatos, jamais os valores.

Mas não foi apenas Leo Strauss que percebeu o positivismo dessa forma. Na polêmica entre Popper e a Escola de Frankfurt, a famosa “querela do positivismo” sobre a objetividade na ciência social, a defesa weberiana de uma ciência neutra, de uma objetividade no campo factual, de um decisionismo no campo axiológico, foi acusada de positivista.

Ora, Durkheim seria um positivista alemão? Bem... er... talvez, na defesa da objetividade científica, mas não, certamente, em relação à separação entre fatos e valores. Contudo, Durkheim junta fato e valor a partir da premissa da objetividade, isto é, o conhecimento do valor ocorre a partir de sua transformação numa “coisa”, num fato, num fenômeno passível de ser transformado num objeto científico -- o conhecimento do valor só importa quando se transforma em fato. Já a Escola de Frankfurt deseja uma ciência social guiada por valores, a começar pelo principal, a emancipação humana; em suma, uma teoria crítica produzindo um conhecimento emancipador – o conhecimento do fato só importa quando se transforma em valor.

Agora, paro de forma abrupta. Testei acima duas definições sobre positivismo e sua relação com Durkheim. Confesso que não fiquei satisfeito. Quero, assim, testar mais duas definições, operando novamente com a tradição francesa e a alemã, mas de uma maneira um pouco diferente. Creio que, deste modo, ficará mais fácil discutir sobre o positivismo de Durkheim.

Até já!

Artur Perrusi
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DURKHEIM, Emile. Sociologia e filosofia. 2º Edição. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1970.
DURKHEIM, Emile. Formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulus, 1989.
DURKHEIM, Emile. Pragmatismo e Sociologia. São Carlos: Editora UFSC, 2005.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
PERRUSI, Artur. “A construção social dos sentidos: subjetividade e individualidade em Durkheim”. IN: Diniz, Ariosvaldo; Brasileiro, Maria Dilma; Latiesa, Margarida. Cartografias das novas investigações em sociologia. João Pessoa / Granada: Editora Universitária UFPB / Universidad de Granada, 2005.
STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Paris: Flammarion, 1999.

5 comentários:

Anônimo disse...

Arture,

Como disse Bergson, "N'ecoutez pas ce qu'ils disent, regardez ce qu'ils font" (para Lena não reclamar: "não ouça o que eles dizem, olhe o que eles fazem").

Por mais que Durkheim se oponha a qualquer classificação de sua obra de um ponto de vista filosófico, seria absurdo negar que o maior representante do positivismo na sociologia não é positivista. Aliás, a própria recusa de uma filiação filosófica já é uma preocupação tipicamente positivista, já que se baseia na idéia cientificista de que o conhecimento pode ser reduzido ao conhecimento científico.

A questão é que o positivismo deve ser entendido como um "cluster" de características relativamente variável, mas que tem algumas coisas em comum, como o empirismo, o cientificismo, uma separação entre fato e valor etc. Existem diversas combinações possíveis, com ênfase maior ou menor em algum aspecto específico.

Durkheim defende, ao longo de sua obra, uma série de posições tipicamente positivistas; outras, nem tanto. Ocorre que o positivismo é inaplicável: ninguém, nem mesmo Comte, conseguiu ser um positivista de forma consistente. Uma coisa é o que eles dizem que fazem (ou que deve ser feito); outra, é o que fazem de fato. É por isso que concordo com você quando você afirmou que o positivismo é uma teoria do conhecimento normativa e não descritiva.

Durkheim é um positivista alemão? Hahahahaha! Contradições lógicas à parte, acho que sim. A distinção entre fato é valor é mais enfatizada no positivismo alemão e no americano, mas também aparece no positivismo francês. Na verdade, vem de David Hume (olha aí a força do empirismo de novo) e é reforçada por Kant. Um dia posto aqui a crítica de Bhaskar a isto com base na idéia de "críticas explanatórias".

Estou ansiosa para ver a segunda parte do seu post. Essa semana foi meio pesada, de forma que não consegui terminar os meus. Em breve...

beijo.

Anônimo disse...

Já que estamos falando em teoria clássica, tem uma coisa que nunca me foi muito clara:

Fato X Valor

Weber até onde sei postula que a ciência pode ser algo neutro, a objetividade seria o valor principal... (não é isso?)

Durkheim: para ele toda a realidade pode ser analisada objetivamente, inclusive os valores? Onde e como existiria separação?

E Marx? Ele também acredita na separação entre os dois mais ou menos como Weber?

Anônimo disse...

Ai, meu deus, sempre que vejo as perguntas de Pedro penso "lá vem bomba!". Ainda estou te devendo uma resposta sobre Butler, né, Pedro? Deixa eu começar por essa daqui.

Para Durkheim, que trabalha com representações (idéias, valores, crenças etc), os valores podem ser objeto legítimo de investigação científica. São fatos sociais como quaisquer outros. Como Weber, a única exigência é que o cientista não faça, ele próprio, julgamentos de valor sobre os valores que ele analisa.

Weber vai um pouco além: os valores do cientista podem e devem ser utilizados na seleção daquilo que ele considera relevante para ser investigado. Mas, depois de selecionado o objeto de estudo, o cientista deveria adotar a neutralidade axiológica, assim como Durkheim.

Marx, já que estamos nos três porquinhos, é o único dos clássicos que nega esta distinção. A idéia de práxis, que aparece inicialmente na concepção marxiana de "natureza humana" representa uma crítica à distinção kantiana, incorporada pelas diversas tradições positivistas, entre ser e dever ser, entre uma teoria "científica" da sociedade e uma teoria moral e política. Por ex., quando critica Feuerbach, Marx afirma que a alienação (religiosa) não pode ser transcendida apenas em função do reconhecimento do erro, da fantasia. Uma forma alienada de vida não pode ser entendida como um erro que pode ser dissipado pela crítica, mas requer a abolição do trabalho alienado juntamente com sua manifestação na propriedade privada. Neste sentido, apenas a emancipação dos trabalhadores e o estabelecimento de uma sociedade comunista possibilitariam transcender a alienação. A questão não é mais, portanto, de entendimento e crítica, mas de prática revolucionária: se a propriedade privada gera a alienação, isto é ruim; se é ruim, tem que ser mudado.

Depois coloco uma visão mais contemporânea da crítica a esta distinção entre fato e valor.

Abraço

Anônimo disse...

Cynthia,

obrigado pela resposta.

agora tudo ficou super claro!

Anônimo disse...

Cynthia,
Para Marx, sua posição estaria estreitamente ligada a uma perspectiva ontológica, por isso que ele nega distição entre fato e valor. A práxis seria um dos elementos fundamentais para uma nova visão de mundo...