( Helena Meireles: mulher incrível)
Jonatas Ferreira
Começaria minha participação nesta mesa redonda agradecendo Ana Paula Portella e às moças do SOS Corpo por terem me convidado para participar deste 'Seminário Biopoder e Tecnologias Reprodutivas: Uma Análise Crítica Feminista'. O convite foi mais específico, Ana Paula me falou que comporia, junto com Ana Reis, Margareth Arilha, Fabíola Rohden e Maria Lúcia Lopes, uma mesa sobre ‘Novas e Velhas Tecnologias reprodutivas: Corpo, Poder Médico e Mercado’. Resolvi aceitar honrado o desafio de retomar minhas notas de mais de cinco anos atrás sobre o tema, mesmo que minha pesquisa atual esteja mais encaminhada para a produção de novos medicamentos, tecnologias de manipulação genética e atômica da matéria, medicamentos inteligentes etc. Há dois motivos para ter aceitado: primeiro, a admiração que tenho pelo trabalho do SOS e, segundo, o fato de ter sido considerado recentemente no PPGS da UFPE como cota de gênero na composição de uma banca de seleção – o que certamente gerou algumas risadas, mas que me deixou honrado do mesmo modo. Ao que parece estou me tornando razoavelmente confiável, num certo sentido. Procurarei fazer jus à fama imerecida.
Devo, entretanto, confessar os limites de minha intervenção. Primeiro, devo lamentar o nível de abstração em que ela foi elaborada, o que devo creditar ao pouco tempo que tive para produzir essa comunicação. Gostaria de analisar e trazer mais dados empíricos, mas tenho certeza que minhas colegas de mesa farão neste ponto um melhor trabalho, dada a larga experiência e expertise que têm na área. Em segundo lugar, devo lamentar não poder tratar da forma como as tecnologias reprodutivas estão sendo apropriadas pelas camadas menos favorecidas da população - ou simplesmente no Brasil. Minha reflexão é em larga medida tributária de uma literatura européia sobre o tema.
A meu ver algo salta aos olhos com respeito ás novas tecnologias relacionadas à reprodução, tais como, a fertilização in vitro, o diagnóstico genético pré-implantação, as perspectivas de produção de órgãos, tecidos humanos pela manipulação de células-tronco embrionárias ou de clonagem. Este algo é a ‘desnaturalização’ do processo reprodutivo; uma certa indistinção entre reprodução e produção. Primeiro uma constatação evidente: essa ‘desnaturalização’ está intimamente relacionada às lutas pela emancipação feminina, à quebra do vínculo secular que havia entre atividade sexual e reprodução, certamente, e inovações nos métodos contraceptivos, como a pílula anticoncepcional, podem aqui ser mobilizados como ilustração. Sem que as mulheres pudessem reivindicar politicamente o controle de seus próprios corpos, de seu próprio prazer, de suas gestações, alguns lugares culturais ao qual o feminino esteve associado dificilmente deixariam de ser percebidos como algo natural. Fabíola Rohden, na Apresentação de seu livro Uma Ciência da Diferença, cita uma passagem de um texto de Monteiro Lobato que usaremos aqui para ilustrar nosso ponto.
Não parece coincidência que essas observações sejam desenvolvidas no espaço de uma discussão acerca da reprodução humana. Ali se afirma que a mulher é matéria, natureza fria e úmida, a ser formada pelo poder civilizador, formador, quente do sêmen masculino. Sempre que o princípio ativo, civilizador masculino não conseguia se impor sobre o mundo natural e material que comporia o feminino, Aristóteles argumenta, um desastre, um monstro há de ser parido. Essa crença pode ser encontrada na Idade Média ou no Renascimento, como o atesta uma rápida leitura do livro Monstros e outras Maravilhas, de Ambroise Paré.
Mas, que interesse específico haveria em retornar a esse texto tão antigo, texto cuja procedência, autoria, aliás, alguns contestam? Não se sabe ao certo se Da Geração dos Animais é um texto aristotélico ou não. O motivo é bastante simples. Por trás dessa naturalização do processo de reprodução humana e da outorga de um lugar específico ao feminino (um ser da natureza, um ser dos espaços privados, um ser que se deixado aos seus próprios impulsos geraria o caos) pressupõe uma série de atos de ocultação, de invizibilização – se vocês me permitam aqui esse neologismo medonho. O mundo da reprodução se apresenta como um mundo não técnico, um mundo em que o ideal cultural masculino fecunda (com sucesso ou não) sem mediação o corpo feminino. Desse universo ficou excluída a própria técnica de reprodução que envolve certamente o conhecimento acumulado de médicos, parteiras, matronas etc. E nesse universo só cabia à mulher se submeter. Na Idade Média, esse conhecimento técnico sobre o mundo natural foi objeto de perseguição da Igreja Católica, como sabemos. O que eram as bruxas senão mulheres que se arvoravam a usurpar o poder civilizador do masculino (Divino) e estabelecer um controle não subordinado sobre os processos de reprodução natural?
Voltemos ao ponto: qual o resultado desse gesto que torna o processo reprodutivo algo supostamente não mediado pela técnica? O de tornar a polarização masculino-civilizador, feminino-natural um fetiche, o de tornar em um princípio metafísico de organização da própria possibilidade de vida civilizada aquilo que deveria ser considerado um fato da cultura, um fenômeno portanto temporal e político. Essa polarização nada ingênua retira do âmbito da história uma dominação histórica, oferece de modo arbitrário uma escolha entre natureza e cultura, cuidado doméstico e trabalho produtivo, sensibilidade e razão.
Mas o que acontece quando as técnicas de reprodução tornam-se opacas, adensam-se de um modo tal que já não podem ser desprezadas – sobretudo quando a tecnociência, ou seja, a ciência transformada em atividade ‘empresarial’, legitima e capitaneia esse processo? Um espaço político concreto em que é possível questionar a essencialização do papel da mulher (e também do homem!!!) no processo reprodutivo. Evidentemente a ocupação desse espaço é objeto de lutas profundas - citemos aqui apressadamente a importância do movimento feminista na colonização desse espaço, seu depoimento, por exemplo, acerca da pesquisa com embriões humanos. Interessa-nos, todavia, focar, por alguns instantes, a importância das novas tecnologias reprodutivas na abertura de um espaço político em que a essencialização do feminino pode ser questionada.
Jonatas Ferreira
Começaria minha participação nesta mesa redonda agradecendo Ana Paula Portella e às moças do SOS Corpo por terem me convidado para participar deste 'Seminário Biopoder e Tecnologias Reprodutivas: Uma Análise Crítica Feminista'. O convite foi mais específico, Ana Paula me falou que comporia, junto com Ana Reis, Margareth Arilha, Fabíola Rohden e Maria Lúcia Lopes, uma mesa sobre ‘Novas e Velhas Tecnologias reprodutivas: Corpo, Poder Médico e Mercado’. Resolvi aceitar honrado o desafio de retomar minhas notas de mais de cinco anos atrás sobre o tema, mesmo que minha pesquisa atual esteja mais encaminhada para a produção de novos medicamentos, tecnologias de manipulação genética e atômica da matéria, medicamentos inteligentes etc. Há dois motivos para ter aceitado: primeiro, a admiração que tenho pelo trabalho do SOS e, segundo, o fato de ter sido considerado recentemente no PPGS da UFPE como cota de gênero na composição de uma banca de seleção – o que certamente gerou algumas risadas, mas que me deixou honrado do mesmo modo. Ao que parece estou me tornando razoavelmente confiável, num certo sentido. Procurarei fazer jus à fama imerecida.
Devo, entretanto, confessar os limites de minha intervenção. Primeiro, devo lamentar o nível de abstração em que ela foi elaborada, o que devo creditar ao pouco tempo que tive para produzir essa comunicação. Gostaria de analisar e trazer mais dados empíricos, mas tenho certeza que minhas colegas de mesa farão neste ponto um melhor trabalho, dada a larga experiência e expertise que têm na área. Em segundo lugar, devo lamentar não poder tratar da forma como as tecnologias reprodutivas estão sendo apropriadas pelas camadas menos favorecidas da população - ou simplesmente no Brasil. Minha reflexão é em larga medida tributária de uma literatura européia sobre o tema.
A meu ver algo salta aos olhos com respeito ás novas tecnologias relacionadas à reprodução, tais como, a fertilização in vitro, o diagnóstico genético pré-implantação, as perspectivas de produção de órgãos, tecidos humanos pela manipulação de células-tronco embrionárias ou de clonagem. Este algo é a ‘desnaturalização’ do processo reprodutivo; uma certa indistinção entre reprodução e produção. Primeiro uma constatação evidente: essa ‘desnaturalização’ está intimamente relacionada às lutas pela emancipação feminina, à quebra do vínculo secular que havia entre atividade sexual e reprodução, certamente, e inovações nos métodos contraceptivos, como a pílula anticoncepcional, podem aqui ser mobilizados como ilustração. Sem que as mulheres pudessem reivindicar politicamente o controle de seus próprios corpos, de seu próprio prazer, de suas gestações, alguns lugares culturais ao qual o feminino esteve associado dificilmente deixariam de ser percebidos como algo natural. Fabíola Rohden, na Apresentação de seu livro Uma Ciência da Diferença, cita uma passagem de um texto de Monteiro Lobato que usaremos aqui para ilustrar nosso ponto.
“Dá a natureza dois momentos divinos à mulher: o momento da boneca –preparatório -, e o momento dos filhos – definitivo. Depois disso, está extintaDurante muitos séculos o pensamento ocidental se estruturou sobre uma oposição básica entre o mundo masculino (público, previsível, civilizado, da cultura) e um mundo feminino (privado, material, imprevisível, natural). A essa forma de estruturação do saber, da cultura e do poder que privilegiam o masculino em oposição ao feminino convencionou-se chamar falogocentrismo. Um dos textos clássicos que trazem à tona os comprometimentos de gênero do pensamento ocidental (de seu fundamento francamente falogocêntrico) é o Da Geração dos Animais, pequeno texto atribuído a Aristóteles. Ali a oposição masculino-civilizador, feminino-natural já está claramente delineada. A mulher é para Aristóteles um ser liminal, um ser colocado nas fronteiras da civilização, um ser cuja principal função social (a reprodução, afirmação renovada na citação de Monteiro Lobato, reproduzida acima) a liga ao mundo natural – ligação que sempre será objeto de fascinação e temor masculinos. Por constituir um ser em contato direto com a natureza, Aristóteles argumenta, a mulher estaria mais próxima de um monstro que de um ser humano, isto é, de um homem.
a mulher”
Não parece coincidência que essas observações sejam desenvolvidas no espaço de uma discussão acerca da reprodução humana. Ali se afirma que a mulher é matéria, natureza fria e úmida, a ser formada pelo poder civilizador, formador, quente do sêmen masculino. Sempre que o princípio ativo, civilizador masculino não conseguia se impor sobre o mundo natural e material que comporia o feminino, Aristóteles argumenta, um desastre, um monstro há de ser parido. Essa crença pode ser encontrada na Idade Média ou no Renascimento, como o atesta uma rápida leitura do livro Monstros e outras Maravilhas, de Ambroise Paré.
Mas, que interesse específico haveria em retornar a esse texto tão antigo, texto cuja procedência, autoria, aliás, alguns contestam? Não se sabe ao certo se Da Geração dos Animais é um texto aristotélico ou não. O motivo é bastante simples. Por trás dessa naturalização do processo de reprodução humana e da outorga de um lugar específico ao feminino (um ser da natureza, um ser dos espaços privados, um ser que se deixado aos seus próprios impulsos geraria o caos) pressupõe uma série de atos de ocultação, de invizibilização – se vocês me permitam aqui esse neologismo medonho. O mundo da reprodução se apresenta como um mundo não técnico, um mundo em que o ideal cultural masculino fecunda (com sucesso ou não) sem mediação o corpo feminino. Desse universo ficou excluída a própria técnica de reprodução que envolve certamente o conhecimento acumulado de médicos, parteiras, matronas etc. E nesse universo só cabia à mulher se submeter. Na Idade Média, esse conhecimento técnico sobre o mundo natural foi objeto de perseguição da Igreja Católica, como sabemos. O que eram as bruxas senão mulheres que se arvoravam a usurpar o poder civilizador do masculino (Divino) e estabelecer um controle não subordinado sobre os processos de reprodução natural?
Voltemos ao ponto: qual o resultado desse gesto que torna o processo reprodutivo algo supostamente não mediado pela técnica? O de tornar a polarização masculino-civilizador, feminino-natural um fetiche, o de tornar em um princípio metafísico de organização da própria possibilidade de vida civilizada aquilo que deveria ser considerado um fato da cultura, um fenômeno portanto temporal e político. Essa polarização nada ingênua retira do âmbito da história uma dominação histórica, oferece de modo arbitrário uma escolha entre natureza e cultura, cuidado doméstico e trabalho produtivo, sensibilidade e razão.
Mas o que acontece quando as técnicas de reprodução tornam-se opacas, adensam-se de um modo tal que já não podem ser desprezadas – sobretudo quando a tecnociência, ou seja, a ciência transformada em atividade ‘empresarial’, legitima e capitaneia esse processo? Um espaço político concreto em que é possível questionar a essencialização do papel da mulher (e também do homem!!!) no processo reprodutivo. Evidentemente a ocupação desse espaço é objeto de lutas profundas - citemos aqui apressadamente a importância do movimento feminista na colonização desse espaço, seu depoimento, por exemplo, acerca da pesquisa com embriões humanos. Interessa-nos, todavia, focar, por alguns instantes, a importância das novas tecnologias reprodutivas na abertura de um espaço político em que a essencialização do feminino pode ser questionada.
(continua)
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