segunda-feira, 9 de março de 2009

Rousseau e a Desigualdade – parte 2



Não começarei esse post falando de desigualdade e de Rousseau.

Começarei parabenizando a ação recente de entidades de defesa da mulher e da criança, (SOS Corpo e o Grupo Curumim, em particular) e dos médicos Centro de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) em defesa da vida e da dignidade humana. Acho que muito foi dito na imprensa acerca do estupro e gravidez da pequena pernambucana de 9 anos de idade (pequena mesmo: 1,37 m. e 33 k.) e do terror, terror, terror que significa uma gravidez infantil e em circunstâncias de violência sexual tão flagrante e brutal. Pouco foi dito acerca do significado das atitudes do arcebispo de Olinda e Recife no caso. E que atitudes foram essas: ameaça à família da garota, aos médicos e mulheres que se posicionaram na defesa da decisão clínica e do direito legal e, por fim, a excomunhão de todos, inclusive da mãe. A criança teria sido poupada da fúria santa do arcebispo. O resultado de suas ações, no entanto, conhecemos bem: a criança e sua mãe não podem voltar para a cidade de onde vieram, sob pena de ter de enfrentar a pressão comunidade católica local, da qual foram arrancadas por seu suposto pecado: interromper uma gravidez imposta, indesejada, cessar o risco que ameaçava a vida da criança e livrá-la de uma gestação para a qual ela não teria estrutura física ou psicológica. De pecado eu entendo pouco, grande pecador que devo ser. Entendo um pouquinho mais da violência da intolerância, da crueldade de obedecer a princípios cegos e o perigo que reside nessa violência, crueldade e cegueira. Mas eis que o arcebispo também falou em campos de concentração a favor de sua posição... Abro aqui espaço para comentários dos leitores e leitoras do Cazzo.

E agora passemos ao tal Rousseau. Devo minha interpretação do Discurso sobre a origem das Desigualdades entre os Homens certamente à leitura de um famoso ensaio que Derrida publicou na Gramatologia sobre o homem de Genebra. Ali ele chama atenção para um paralelo, uma influência, entre a obra de Rousseau e de Lévi-Strauss. Nas duas obras existe um momento importante de articulação conceitual, eu diria mesmo de articulação meta-discursiva – ou seja, uma articulação conceitual que torna o discurso antropológico nos dois autores inteligível - que cabe analisar. Esse momento, esse ponto, é precisamente aquele que torna possível especular acerca de uma passagem histórica entre o homem selvagem e o homem civilizado.

A rigor essa passagem constitui uma aporia, isto é, um paradoxo intransponível, e Rousseau a reconhece como tal em várias passagens. Como seria possível que o animal humano se convertesse em animal pensante? Como a cultura pode brotar da natureza? Como a linguagem pode surgir para aquele que já não disponha da razão? Tomemos esse último paradoxo: para raciocinar é preciso linguagem; mas para ter linguagem o ser humano tem de dispor de conceitos, da capacidade de abstrair e, portanto, da razão. O argumento aqui é necessariamente circular. Rousseau oferece a esse paradoxo uma solução pouco convincente: os filhos devem ter ensinado aos pais a linguagem, pois, sendo frágeis, eles teriam manifestado a necessidade. Mas reconhecer em si uma necessidade seria prova de capacidade de abstração e, portanto, de raciocínio. Para tal a linguagem seria fundamental. E voltamos ao ponto de partida.

“Nova dificuldade ainda pior do que a precedente: porque, se os homens tiveram necessidade da palavra para aprender a pensar, tiveram muito mais necessidade ainda de saber pensar para encontrar a arte da palavra; e, quando se compreendesse como os sons da voz foram tomados por intérpretes convencionais de nossas idéias, restaria sempre saber quais puderam ser os intérpretes mesmos dessa convenção para as idéias que, não tendo um objeto sensível, não podiam indicar-se nem pelo gesto nem pela voz”

Na verdade, se quisermos entender a importância da explicação rousseauiana devemos procurar entender o sentido da articulação que ela propõe – o mesmo sendo válido, segundo Derrida, para entender Lévi-Strauss. O que inaugura o ser humano? No fundo essa é a questão: qual a essência do ser humano? A resposta de Lévi-Strauss: o reconhecimento do interdito, do tabu do incesto. Desse reconhecimento provém toda a possibilidade de ‘comércio’ entre os seres humanos. O que inaugura o ser humano, como algo distinto do animal humano, do selvagem, para Rousseau? A resposta também é clara: sair do imediato, tornar-se um ser mediado - por meio de instrumentos, de uma linguagem, pela posse de propriedade. O selvagem não conhece o tempo e por esse motivo ele não conhece a linguagem, a razão, a morte. Só o homem civilizado morre, se vocês me permitem um paradoxo a mais.

“Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal”.

O “homem é o ser indireto”, dirá Hegel uns cem anos depois (creio que no Sistema da Vida Ética). Ao descobrir o tempo e a morte (como isso teria acontecido? Como teria sido possível?), aprendemos a abstrair, inventamos a linguagem. Falamos porque já não vivemos segundo a lei universal da natureza, já não habitamos no tempo atemporal, instantâneo, do imediato. Para Rousseau, esse afastamento da natureza é a origem da desigualdade moral e política. Ora, ao falar, raciocinar, entender a vida no tempo, abstrair, o ser humano instaura um convívio com outros seres humanos que já se funda na desigualdade.

“Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava. Logo, deixando de adormecer na primeira árvore, ou de se retirar nas cavernas, encontraram-se certas espécies de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que ocorreu, em seguida, endurecer com argila e barro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, de onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates”.

A propriedade privada é apenas uma expressão secundária da vida mediada pela linguagem, razão e tempo. Aqueles que pensam e procuram prover seu inverno de cereais serão não apenas os primeiros a cultivar a terra, mas a cercá-la e subsumir essa terra num conceito: meu.

Em escritos posteriores ao que consideramos nesse post, como o Contrato Social, Rousseau acrescentará que é possível construir uma sociedade igualitária - ou seja, raciocinar, falar, viver de modo civilizado e ao mesmo tempo igualitário. Em sua tese complementar, Montesquieu e Rousseau: Pioneiros da Sociologia, Durkheim vai ao ponto ao observar:

“Se nas sociedades atuais as relações fundamentais do estado de natureza foram perturbadas, é porque a igualdade primitiva foi substituída por desigualdades artificiais e, como resultado, os homens se tornaram dependentes uns dos outros. Se em vez de ser apropriada por indivíduos e personalizada a nova força nascida da combinação de indivíduos em sociedades fosse impessoal e se, consequentemente, transcendesse todos os indivíduos, os homens seriam todos iguais em relação a ela, já nenhum deles poderia dispor dela a título privado. Assim, eles dependeriam não uns dos outros, mas de uma força que, por sua impessoalidade, seria idêntica, mutatis mutandis, às forças da natureza”.

Se na citação acima a idéia de desigualdade deixou de ser co-extensiva à de civilização (pois é possível tornar a vontade geral, mediante contrato, numa força universal), a articulação básica que funda o Discurso continuará carregando o pensamento de Rousseau com suas conseqüências. Falemos um pouco sobre isso à guisa de conclusão.

As aporias de que falamos acima e sua articulação mediante o recurso de um elemento fundador da cultura (como o tempo, a linguagem ou o interdito) resultam na construção de dois campos radicalmente distintos: de um lado o mundo imediato, ingênuo, puro e forte da natureza de outro o mundo mediado, artificial, decadente e desigual da civilização. O problema com essas polaridades é que ela sempre concebe o ‘selvagem’ (os caraíbas de que fala Rousseau, por exemplo) como seres desprovidos de cultura, razão, técnica. O mesmo raciocínio que os concebe como “bons selvagens” associa-os à infância, à incapacidade no campo da civilização – mas esse é precisamente o terreno onde suas vidas serão decididas pela modernidade ocidental. O estado de natureza não é apenas um afirmação teórica, de caráter especulativo, mas uma afirmação política. Não é fortuito, portanto, que diferenças de gênero sejam naturalizadas no Emílio, neste livro que trata da educação dos jovens.

A aproximação entre natureza e ingenuidade (ingenuidade aqui no sentido romântico, no sentido que esse termo tem em Schiller, por exemplo), entre o selvagem e a criança tem conseqüências políticas bastante importantes. Antes de Derrida, foi a leitura de um estudioso de Rousseau que me chamou atenção para essa proximidade teórica. O nome impronunciável desse teórico é Bernard Groethuysen. Num livro de 1949 (Idées), ele observa:"Mas a natureza está de fato tão longe de nós? Não nascemos nós todos, de alguma forma, homens naturais? Não nascemos todos nós crianças?" BG prossegue citando o próprio Rousseau:

"Se eu fiz algum progresso no conhecimento do coração humano, é o prazer que eu tinha de ver e observar as crianças que me valem este conhecimento"

Em um certo sentido, a postura do Rousseau maduro de crença num contrato social, na razão colocada a serviço do interesse público, já está preparada quando ele associa o bom selvagem a uma ingenuidade não civilizada. São crianças maravilhosas, mas quem quer, ou pode, ser criança o resto da vida? Do ponto de vista das implicações práticas dessa aproximação é claro que está legitimada uma atitude paternalista com relação a populações ditas mais próximas da natureza - e falo aqui não apenas dos ditos selvagens, dos povos do "meio-dia", do não-europeu, mas também da mulher, como já mencionamos acima.

Mas agora, cansei. Posto assim mesmo e amanhã melhoro.

Jonatas

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