terça-feira, 14 de abril de 2009

Quem Pode Sofrer?

Análise sociológica dos discursos jurídicos relativos aos casos de abortos anencéfalos e suas implicações na vida das mulheres pernambucanas



Por Sheila Bezerra - Doutoranda em Sociologia do PPGS/UFPE
email: mms.sheila@gmail.com

Agradeço mais uma vez o espaço disponibilizado pel@s professores Cynthia Hamlin e Jonatas Ferreira para apresentação de um resumo do artigo que escrevi para concorrer ao prêmio Naíde Teodósio de estudos de gênero. Submeti o artigo nas últimas horas do último dia do prazo já estendido pela comissão do concurso. Comecei a acreditar tarde na possibilidade de escrever algo que pudesse prestar ou que interessasse a alguém num período conturbado de atividades acadêmicas e vida pessoal, mas foi assim que aconteceu.

Sou do movimento feminista pernambucano e brasileiro através de uma participação (atualmente capenga, é verdade) nas reuniões e ações do Fórum de Mulheres de Pernambuco e AMB, e desde 1999 venho trabalhando profissionalmente o problema da violência contra as Mulheres, principalmente através da ONG SOS Corpo. No meio acadêmico, tenho me dedicado, no doutorado, a uma pesquisa voltada para um tema sociológico de inspiração feminista através do estudo das questões relacionadas ao aborto de fetos anencéfalos e as Novas Tecnologias Reprodutivas e, para o concurso em questão, enfatizei o segundo ponto a partir dos discursos jurídicos.

Desejei analisar sociologicamente os discursos jurídicos relativos aos casos de abortos anencéfalos e suas implicações na vida das mulheres pernambucanas, identificando, por assim dizer, a violência sexista justificada pelo imperativo social da maternidade às mulheres e seus corpos. Para alcançar tal objetivo, tracei outros mais específicos como: Analisar os discursos dos ministros do STF, e de outros magistrados, relativos às controvérsias da autorização do aborto de fetos anencéfalos; Identificar a violência sexista nos discursos analisados; Analisar tais discursos jurídicos à luz dos casos de três mulheres pernambucanas que se submeteram ao aborto para interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e tiveram visibilidade pública tanto através das matérias de jornais locais, quanto através da participação direta e indireta nas audiências públicas do STF; e, por fim, identificar a presença dos discursos de outros sujeitos sociais e instituições no discurso jurídico a exemplo da igreja e do movimento feminista.

Exponho a seguir um pouco do desenvolvimento do artigo que foi concluído em dezenove páginas. Fazer isso é um pouco complicado, pois corro o risco de ter a idéia mal entendida, mas vamos lá... de qualquer forma fui informada que o artigo completo será publicado num livro construído pela Secretaria e pela FACEPE (organizadores do concurso) e acho que será disponibilizado para quem tiver maior curiosidade após 29 de abril, enfim...eis alguns fragmentos (que aqui não terão as devidas notas de rodapé e referências bibliográficas presentes no texto), mas que resumem um pouco a idéia:

“O sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana”. Esta frase foi proferida por Cezar Peluzo, um dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao tentar contra-argumentar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF -54) oferecida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde em 2004.

As alegações fundamentadas da ADPF - 54 indicaram pelo contexto de criminalização das mulheres que fazem aborto de fetos anencéfalos, que alguns preceitos da constituição estariam sendo vulnerados, dentre os quais: a dignidade da pessoa humana, o princípio da legalidade, liberdade e autonomia da verdade e, por fim, o direito à saúde. Em outras palavras, significaria dizer que, ao ser obrigada a carregar um feto sem cérebro, a mulher além de correr riscos (no tocante à sua saúde física) estaria ofendida em sua autonomia e dignidade - direito assegurado pela Constituição Federal.

Numa trajetória temporal – 2004 a 2008 – é possível entender melhor os meandros desse processo que tem exposto vidas e corpos de mulheres ao sofrimento, à tortura, enfim, à violência sexista legitimada por discursos que, mais do que nas entrelinhas, nos dizem tal qual Rohdem, que “A gravidez está muito longe de ser vista como um evento do plano pessoal ou privado”, justamente porque tem sido “um acontecimento social na medida em que deve ser de domínio público, [...] no sentido de que produz bens para sociedade”.

Três mulheres pernambucanas falam, a partir de suas histórias, os tortuosos percursos do corpo feminino em sua busca pelo respeito, pela autonomia e dignidade, condições negadas por uma cultura patriarcal legitimadora da violência sexista representada, no caso, pela intransigência moral que vem dominando o debate jurídico no Brasil. Essas mulheres têm nome, elas são Michele de Almeida, Severina Ferreira e Luciana Vasconcelos, e elas estiveram, como tantas mulheres, suscetíveis às decisões judiciais para terem o direito à interrupção de suas gravidezes garantido.

Como diria Diniz, suas histórias são únicas, pois são suas histórias, mas são triviais ao mesmo tempo, pois representam o enredo de muitas outras mulheres torturadas pelo azar de uma gravidez com feto inviável, sob uma legislação que não apenas as obriga a expor publicamente seu sofrimento, como também a negociar suas preferências mesmo em condições absolutamente desiguais de diálogo moral. Elas apresentam diferentes momentos dessa trajetória e será a partir delas que o problema em questão será introduzido.

Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde entrou com a ADPF-54 (citada anteriormente) e, numa liminar de Julho de 2004, o ministro do STF - Marco Aurélio - autorizou o aborto de fetos sem cérebro. Foi graças a essa liminar que Michele de Almeida, que recebeu em 2004 o diagnóstico de que o primeiro filho que esperava tinha anencefalia, pôde interromper a gestação em um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) quando estava grávida de quatro meses. No entanto, em outubro, a liminar que favoreceu Michele foi cassada pelo Plenário do Supremo, e Severina, habitante do Município de Chã Grande, em Pernambuco, que teria sido internada em Recife na tarde da decisão do STF, viu as notícias pelos jornais no dia seguinte e teve que voltar para casa. Três meses depois, já com sete meses de gestação, Severina teve enfim, após tantas viagens e sofrimento, a interrupção de sua gravidez autorizada.

Em 2006, através de um mandado de segurança impetrado pela defensoria pública de PE, Luciana Vasconcelos conseguiu autorização judicial (TJ-PE) para interromper a gravidez. O pedido havia sido negado em primeira instância, antes de ser autorizado pelo TJ-PE e Luciana disse, em matéria sobre o assunto, que na primeira tentativa, o juiz pediu que ela voltasse para casa e rezasse.

De 2001 a 2006, os tribunais de Justiça do País receberam 46 pedidos de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, segundo estudo realizado pelo Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (Prosare). Os dados de tal pesquisa revelam que entre 2001 e 2006, em 54% dos casos, a decisão teria sido favorável à mulher, em 35% o pedido teria sido negado e, nos 11% restantes, os fetos teriam nascido e morrido sem que houvesse decisão judicial relativa ao caso. A pesquisa revelou também que o Sul e o Sudeste têm mais autorizações do que todas as outras regiões juntas e que, o Norte e Nordeste, no caminho contrário, estão no ranking das solicitações negadas - embora os pedidos fossem maiores se comparados proporcionalmente a outras regiões.

Uma vez que o Estado, através da representação do STF abre mão de uma decisão que salvaguarde as mulheres de tantos outros julgamentos morais, as sentenças condenatórias ou absolutórias serão dadas na medida das crenças e da religião de quem julga. Nesse sentido, tem se questionado a influência das Igrejas sobre a sociedade, bem como “essa relação é remetida imediatamente para uma ordem do Estado, por meio do poder político” (ÁVILA, 2006, p.26).

Esse poder não coincidentemente assentado em relações desiguais entre homens e mulheres se reproduz nos discursos que, segundo Foucault, “estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão por dizer”[...]

fragmentos da conclusão

"Afirmar que a gestação é um ato de dever imposto pelo Estado pode ser interpretado de várias maneiras, uma delas é reconhecer a legitimidade do Estado para o uso legítimo da força para coibir as mulheres infratoras. Uma mulher que aborte, que afirme a supremacia da vontade ao dever da gestação, pode ser presa sob a acusação de homicida.[...] É preciso fazer as mulheres crerem que abortar é assassinar futuros filhos. Nem que para isso seja preciso utilizar o poder intimidatório do Estado" (DINIZ, 2006d,p. 4).

Uma vez que o Estado assume tal posicionamento diante de mulheres, como Maria dos Santos, que teve seu processo arquivado pouco depois que pariu o bebê que faleceu imediatamente após o nascimento (DINIZ, 2003p.142), milhares de mulheres assumem o risco e abortam em situações inseguras e de extremo risco à saúde e à vida.
Poderíamos dizer em relação a esse fato, tal qual Benjamin ao analisar Kafka em O Processo, que o “adiamento da sentença”, “a interpretação final” ou a “não resposta” seria a esperança do acusado (no caso, da acusada) ou, mais apropriadamente para o contexto aqui explicitado, que: “a punição se antecipa cronologicamente ao crime”. (ANDERS, 2007,p. 73).

Essa inversão corresponderia ao julgamento do acusado, como se fosse dito às mulheres, como ao campesino que esteve esperando por anos (até sua morte) a possibilidade de ter acesso ao portão em “Ante la ley”: “Nadie más podía entrar aqui, porque esta entrada estaba destinada a ti solamente. Ahora cerraré”.
As asserções de Kafka de que a lei existe para quem a cumpre, bem como sua “linguagem de protocolo” como linguagem de uma modernidade burocratizada que denotaria um mundo ‘“belo”, limpo e preciso’, tal qual nos diz Anders, mas que “não seria outra coisa senão o dossiê que confere, ao caso nele registrado - mesmo o mais criminoso - a aparência de uma coisa que, de agora em diante, por estar registrada, está em ordem” nos leva a Roberto Machado quando nos diz que “A singularidade da arte apolínea é a criação de um véu de beleza que encubra o sofrimento”, e que esta dimensão estética da beleza estaria “intrinsecamente ligada a uma dimensão ética”.

Essas mulheres que se expuseram nos apresentam, com sua tragédia, a dimensão ética nas linhas e entrelinhas dos discursos jurídicos e apresenta-nos, tal qual Foucault, a constatação de que não é à toa que em torno do discurso haja disputas, pois é por meio dele que se expressa a “vontade de verdade” que “apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos [...] uma espécie de pressão e como que um poder de coerção”, ou seja, o discurso seria a pura representação do poder de quem se autoriza e é autorizado (institucionalmente) a expressar sua verdade (ou sua ilusão moral) de forma a também coagir o outro que não compartilhe de sua crença.

Assim, o que poderia nos dizer o discurso do ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluzo - “O sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana”, a partir da história de Severina? Talvez ela dissesse muitas outras coisas, mas o sentido alcançado a partir da questão “quem se constitui, numa determinada sociedade, como alvo preferencial da dor moral?” colocada ao início dessa breve dissertação, é que a possibilidade de resposta para esse Quem poderia ser a palavra Outro, ou mesmo estrangeiro, ou exótico, ou estranho, enfim o Unheimlich, traduzido para o contexto, como o outro Mulher.

Mais especificamente, para casos como o de Severina, Michele e Luciana, talvez pudesse ser traduzido como a Outra - a mulher pobre, negra, nordestina e usuária do SUS, cujo corpo “dócil” em visibilidade tornaria visível, por assim dizer, aquela ou aquelas que podem sofrer.

4 comentários:

Joao Paulo Filho disse...

Sheilinha, mais uma vez parabéns pelo texto e prêmio. E também pela luta, daqual sempre compadeço sem poder padecer como. Beijos.

asadebaratatorta disse...

Opa ^^

Uma coisa engraçada pro Jonatas ver:

http://fragma.br.tripod.com/cabanalacan.html

Le Cazzo disse...

Eita, Lacan era a cara de Fernando Henrique - que Deus os tenha. Gostei da animação.

Anônimo disse...

Valeu Jampa...depois continuamos a polêmica! Abraço!!Sheila.