quarta-feira, 10 de junho de 2009

Nanobiotecnologia

Já que Artur amarrou o bode (cara mais susceptível!!!), passo na frente dele e publico algumas considerações sobre nanobiotecnologia e risco. Trata-se de trecho de um artigo mais amplo que será publica numa coletânea organizada, por Paulo Henrique Martins, a partir de ensaios apresentados no Encontro Pré-ALAS ocorrido no Recife em 2008. Com sorte, deslocado do contexto, o trecho fará sentido - se não fizer, não tem problema: o intuito é só chatear ainda mais Artur.

Jonatas Ferreira



O estado da arte da nanobiotecnologia no Brasil deve ser apreciado no contexto dos horizontes em que este campo de conhecimento abrem no campo da saúde. Em 2003, tomando como base um workshop realizado no estado da Vírginia, e que reuniu “cientistas, engenheiros, e físicos”, a National Nanotechnology Initiative produziu um relatório elencando os principais avanços científicos e tecnológicos que são esperados no campo da saúde como decorrência do progresso das nanociências. Foram identificados sete grandes tópicos onde se esperam progressos: i. na produção novas tecnologias de imagens em nível molecular; ii. “ferramentas analíticas quantitativas” capazes de aprender como a célula regula seu funcionamento e como esse funcionamento “pode ser manipulado de modo previsível”; iii. “integração quantitativa de informação derivada da aplicação de nanosensores combinados com novas tecnologias de imagem”; iv. interação entre genômica, proteômica e nanotecnologia de modo a permitir a obtenção de um “modelo físico da célula como máquina”; v. melhores testes ex vivo e “melhoria na atuais técnicas de laboratório”, de modo a permitir uma detecção e prevenção em estágios iniciais das doenças; vi. Avanços na disponibilização de medicamentos e terapêuticas inteligentes; vii. “em última instância, a nanomedicina irá além da função de restaurar a um estado normal e saudável e proporcionará meios de guiar a regeneração de tecidos, órgãos e sistemas de órgãos com capacidades avançadas de auto-reparação e prevenção de doenças” (NNI, 2003, p. vi e vii).

O cenário apontando especialmente nesse último tópico, cenário de longo prazo, horizonte para onde deveriam se encaminhar o conjunto dos esforços da nanobiotecnologia, parece em grande medida utópico: um mundo de perfeita saúde e neguentropia biológica, um mundo do controle tecnológico. Essas utopias são intensamente exploradas por uma literatura dita pós-humanista ou trans-humanista. Acerca do contra-senso desse tipo de discurso tivemos a oportunidade de nos manifestar anteriormente (FERREIRA, 2004) e silenciaremos aqui. Mas é claro que também podemos falar da importância da elaboração dessas utopias - não apenas no processo de legitimação do discurso tecnocientífico, para quem um controle virtualmente perfeito sobre o mundo natural é um horizonte regulador da própria atividade científica -, como também na garantia de polêmicas - em que utopias para uns são consideradas distopias radicais para outros - que ao fim e ao cabo reforçam a imagem de controle que a tecnociência pretende construir para si.

Acredito que um elemento fundamental desse tipo de legitimação que buscam as ciências da vida está relacionado a uma mudança de ênfase na própria idéia de qual é a missão da medicina e que diz respeito a passagem de um modelo de intervenção restauradora para uma intervenção potencializadora. Para ser claro, não precisamos esperar por um cenário de ficção científica para perceber essa transformação. O uso de medicamento psicofarmacológico ou daqueles que tratam da impotência masculina já se submetem em larga medida a esse novo modelo. O uso de ansiolíticos ou moderadores de humor, o uso de medicamentos que combatem a disfunção erétil, não se restringem ao tratamento de doenças, mas a melhoria da performance. Comentando acerca da idéia de convergência tecnológica nas nanociências, Roco & Bainbridge (2002), observam a esse respeito:

A convergência fornece explicitamente um valor moral comprometido. Esse conceito implica que nanociência e convergência irá romper (deva romper) as fronteiras entre o homem, a natureza e os artefatos tecnológicos. Convergência diz respeito à metáfora de uma máquina pensante e ao ideal de melhoramento.


Em um relatório da Erosion, Technology and Concentration Group, obtemos um comentário semelhante: “É na esfera da performance humana […] que a convergência produzirá seu maior impacto e lucro. O que se tem em mente não é apenas eliminar a incapacidade e curar a doença, mas corpos mais fortes, mais velozes, que apresentarão um melhor desempenho que o corpo que hoje é considerado o mais saudável e atlético” (ETC, 2006, p. 14). E aqui não nos cabe analisar em que medida esses cenários são factíveis, factíveis a médio ou longo prazo. Como já observamos, essa já é a lógica que propõe a indústria farmacêutica para aqueles que podem pagar os seus medicamentos. Interessa-nos, por outro lado, o não refletido da própria idéia de melhoria aqui: a redução da vida ao seu aspecto biológico, a redução da vida biológica a sua regulação molecular, aos princípios que estabelecem tal regulação. Interessa-nos uma reflexão hegemônica da vida como problema técnico. Ora, analisando as ciências da vida do século dezenove, Foucault já alertava para a necessidade de abrir nosso esforço reflexivo para além dessa delimitação histórica. Há uma literatura sobre biopoder suficientemente extensa para que não nos preocupemos em acrescentar aqui esclarecimentos nessa direção. Em lugar disso, focaremos num aspecto específico dessa redução que se opera nas ciências da vida e que diz respeito à própria noção de risco como centro das polêmicas que hoje travam os mais diversos atores sociais em torno da inovação tecnológica.

A primeira constatação a esse respeito é admitir que, embora esse tenha sido um campo onde a ação de atores importantes da sociedade civil foi mais intensa - como tem sido o caso da atuação de entidades ambientalistas com respeito à produção e comercialização de alimentos geneticamente modificados -, o risco constitui um terreno em que embates políticos sempre cedem ao argumento técnico. E isso não ocorre por alguma qualidade racionalizadora de tais argumentos, mas pelos termos em que o debate acerca dos riscos é definido. A esse respeito convém escutar o que Ulrich Beck já dizia na década de 1980. Comecemos pois por uma definição clara: “Risco pode ser definido como uma forma sistemática de lidar com os perigos e inseguranças induzidos pela própria modernização” (1992, p. 21). A identificação de um risco não é a mera identificação de um perigo, mas uma forma sistemática, metódica, técnica de tratar com um efeito da civilização tecnológica. Trata-se, portanto, de uma noção que pressupõe um tratamento técnico para um problema induzido pela própria técnica. Para Beck, o risco não é um efeito colateral da sociedade contemporânea, mas um elemento fundamental na própria lógica reflexiva mediante a qual o capitalismo prospera. Mas há evidentemente muitos problemas que podem ser identificados na auto-referência a partir da qual o discurso do risco prospera: i. ele avalia e mede o efeito que uma substância tem sobre uma pessoa, mas não o que a acumulação de diferentes substâncias apresentar; ii. ele não leva em conta que certos riscos, especialmente os produzidos por novas tecnologias, podem ter efeitos que se colocam para além do ciclo de vida de uma indivíduo – podendo se manifestar em seus filhos e netos, por exemplo; iii. um mesmo agente poluente, por exemplo, pode ter efeitos bastante diversos em diferentes indivíduos – a determinação dos limites de risco desse agente, no entanto, padronizam uma espécie de tipo biológico médio; iv. no que diz respeito às tecnologias radicalmente inovadoras, como as nanotecnologias, a avaliação dos perigos ambientais, biológicos a partir de uma lógica de risco é claramente insuficiente na medida em que nos faltam referências técnicas para calcular o efeito que a introdução de novos materiais, com propriedades novas, teriam sobre a vida biológica.

Um efeito subliminar da lógica do risco, no entanto, seria a forma como ele se incorpora em nosso cotidiano. Se a lógica científica caiu do Olimpo de legitimidade em que vivia na sociedade tecnológica, ela o fez sobre a vida cotidiana, buscando delimitar nossas possibilidades de pensar politicamente o mundo em que estamos. O risco, em sua sistematicidade, em sua 'auto-referencialidade', penetra nossa relação com a ciência e a reduz a uma avaliação de custo-benefício. Não pensamos 'que tipo de sociedade é essa que polui e desmata, que instrumentaliza nossa relação com a natureza?'; limitamo-nos a procurar identificar se os meios técnicos para solucionar eventuais desastres estão disponíveis. O risco é uma questão técnica e, como tal, de competência da ciência especializada. Por esse motivo mesmo, prospera o número de periódicos e artigos científicos dedicados ao tema (ver, por exemplo, LINKOV et. Al, 2008, TERVONEN et al., 2008).

Mais recentemente, algumas releituras críticas do trabalho de Beck foram produzidas. Uma dessas críticas refere-se ao risco tecnológico ser concebido como um fato consumado, algo já produzido, uma caixa-preta já fechada. “Considerações históricas da ciência e da tecnologia têm frequentemente ignorado as particularidades técnicas da prática científica. De fato, as elaborações internas da ciência foram tradicionalmente fechadas numa “caixa-preta”. O pressuposto é que não pode haver 'má ciência', apenas 'má tecnologia' (KEARNES et al, 2006, p. 25). Em oposição a esse fechamento, Kearnes et al. falam da necessidade de engajar a opinião pública num diálogo antecipado com os cientistas acerca de suas práticas, produtos, dos sentidos éticos, políticos, sociais, econômicos dessas práticas e produtos. Essa seria a forma de evitarmos a delimitação do diálogo entre a ciência e a sociedade a um campo bastante restrito: o risco. E é claro que esse diálogo não pode evitar tal questão premente; sua virtude seria colocá-la num espectro mais amplo de problemas.

Nesta direção, gostaria de indicar, numa mesma direção teórica que tomam Kearnes et al. que nas nanociências e nanotecnologias a noção de risco não se estabilizou, ou seja, ela é objeto de controvérsias no campo de convergência tecnológica a partir do qual novos produtos, terapêutica etc. são criados. Esse é precisamente o caso que da rede brasileira de nanobiotecnologia, como vimos em depoimento de uma cientista no tópico anterior. Acreditamos que, de fato, a teoria do ator-rede (de Latour e Callon poderia dar uma contribuição importante para seguir as tensões que colocam a noção de risco em perspectiva. Seguir os cientistas em suas práticas aqui também também constitui a oportunidade de abrir uma discussão que apresenta implicações éticas, econômicas, políticas e culturais. E alguns desses pontos também nos foram indicados nas entrevistas indicadas ao longo do texto. A medida em que essas tensões vão se tornar políticas, no sentido produtivo da palavra, no entanto, dependerá de um envolvimento da opinião pública na discussão dos rumos que devem tomar a ciência e a tecnologia que não podem ser garantido nos limites estreitos dos laboratórios. Talvez seja ilustrativo lembrar das discussões que cercaram a votação da Lei de Biossegurança brasileira, especialmente no que toca a pesquisa com células tronco-embrionárias. Ali também cientistas, políticos, opinião pública, organizações não-governamentais, Igreja Católica etc. um ponto fundamental das discussões seria a busca de estabilização do estatuto ontológico do daquele tipo de célula. A não estabilização do significado ético, científico, econômico das pesquisas envolvendo embriões com poucos dias de desenvolvimento configurou grande parte da polêmica política em questão, embora o grau de democratização das discussões tenha sido limitado (FERREIRA e AMARAL, 2006 e 2008).

É preciso portanto aproveitar a polêmica gerada em torno dos riscos que cercam as nanotecnologias em geral, e as nanobiotecnologias, em particular, para abrir espaços políticos que se coloquem para além do espaço de legitimação técnica que a própria noção de risco implica. Se essa não estabilização é uma oportunidade política, nossa capacidade de garantir um processo de discussão democrático das relações entre sociedade civil e produção científica e tecnológica não estão garantidas apenas pela existência de tal oportunidade. Tampouco estariam ali garantidas a possibilidade de abrir discussões mais amplas acerca do sentido da tecnociência em nossa sociedade.


Referências


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FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2006. “Das Gesetz zur Biologishen Sicherheit in Brasilien: Prähumane, humane und nichthumane Körper als Verhandlungszonen der Moderne”. In Das Moderne Brasilien. Gesellshaft, Politik und Kultur in der Peipherie des Westens. Berlin, Verlag für Sozialwissenschaften.


FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2008. “A Lei de Biossegurança no Brasil: negociando a modernidade em corpos pré-humanos, humanos e não-humanos”. In (Costa Lima, editor) Dinâmica do Capitalismo Pós-Guerra Fria: Cultura tecnológica, espaço e desenvolvimento. São Paulo, UNESP.


FERREIRA, Jonatas e Rosa PEDRO. 2009. “Biossociabilidade e biopolítica: reconfigurações e controvérsias em torno dos híbridos nanotecnológicos”. Redes. No prelo.


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LINKOV, Igor; Jeffery Steevens; Gitanjali Adlakha-Hutcheon; Erin Bennett; Mark CHAPPEL; Vicki COLVIN; J. Michael DAVIS; Thomas DAVIS; Alison ELDER; Steffen Foss HANSEN; Pertti Bert HAKKINEN; Saber M. HUSSAIN; Delara KARKAN; Rafi KORENSTEIN; Iseult LYNCH; Chris METCALFE; Abou Bakr RAMADAN; F. Kyle SATTERSTROM. 2009. “Emerging methods and tools for environmental risk assessment, decision-making, and policy for nanomaterials: summary of NATO Advanced Research Workshop”. Journal of Nanoparticule Research. 11: 513-527.


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14 comentários:

Rodrigo Tavares disse...

Gostaria muito de ver uma manifestação do Cazzo sobre os últimos acontecimentos na USP.

Intelectual que não defende bandeira - seja ela qual for -, principalmente nessa nossa seara do conhecimento, resume-se a especialista, né?

Abraço.

Anônimo disse...

Caro Professor,

Há um diálogo entre você e o professor Laymert dos Santos?

Le Cazzo disse...

Não entendi. A pegunta se dirige a mim ou ao Rodrigo. Acho que é pra mim. Gosto muitíssimo do trabalho de Laymert e temos de fato uma afinidade grande no que concerne à avaliação de que as TICs são um paradigma para pensar vários campos de produção tecnológica (a saúde, as políticas da vida, de uma forma geral). Creio que entendemos também que a idéia de um biopoder na contemporaneidade passa por ali. Mas, devido às tantas ocupações da vida, tenho perdido contato com as coisas que Laymert tem feito recentemente. Última vez que entramos em contato faz uns três ou dois anos, não lembro. Naquela oportunidade identificamos uma agenda de interesses comuns. Ele está trabalhando com nano também? Caso esteja, a afinidade se mantém.

Só que Laymert é um homem mais culto que eu. Eu o admiro muito. Quando comecei a trabalhar com tecnologia da vida, há uns dez anos, entrei em contato com um artigo que Laymert escreveu na Folha de São Paulo. Pra mim foi uma inspiração. E deixo aqui um abraço público para o colega de Campinas.

Rodrigo, vou procurar me informar sobre o assunto, mas ando terrivelmente envolvido com outros temas: indústria farmacêutica, democracia digital, pudor, biotecnologia e com uma agenda apertadíssima.

Abraços, Jonatas

Artur disse...

Beeeé! Sou eu amarrando o bode (ou a mula?).

Discussão interessante sobre o risco. Eu mesmo pesquiso a negociação do risco entre casais sorodiscordantes (casais nos quais um dos membros é portador de HIV, isto é, soropositivo). O curioso aqui é que a política pública normatiza a negociação do risco, colocando ou impondo, para o casal, uma única forma de acesso à prevenção: uma conduta baseada numa racionalidade instrumental; isto é, uma adaptação entre meios e fins para evitar o risco de contágio. Ora, essa tecnificação do risco ou sua instrumentalização (a noção de risco implica, necessariamente, a técnica?) ocorre raramente nos casais entrevistados (outras imterpelações aparecem, inclusive religiosas), daí um certo fracasso de algumas políticas públicas no campo da saúde.

Essa utopia que rege a maximização do corpo, de sua constante perfectibilidade, pode ser chamada de "utopia da saúde perfeita".

Rodrigo: minha posição sobre o que ocorreu na USP. Acho um absurdo chamar o choque para o campus universitário -- por definição. Não importa aqui se parte do movimento sindical e algumas facções do movimento estudantil façam parte de um radicalismo de extrema-esquerda que despreza qualquer noção de convívio democrático. Polícia não deve entrar na universidade (exceto em situações bem definidas: roubo, crime, etc e tal), nem mesmo para "reintegração de posse", como alega a reitora da USP. Universidade é diálogo e abertura de negociação pública, o tempo todo, até mesmo para isolar as posições extremistas.

Le Cazzo disse...

Oi, General.

Risco é sempre uma noção técnica, tal qual a entendem Beck, Giddens, Lupton, Wynne etc. E gostaria que você falasse mais sobre risco em casais sorodiscordantes - nome bonito da gota! Não ficou muito claro e eu fiquei interessado. O bom mesmo seria um post sobre o assunto... mas a gente se contenta com uma ampliação do comentário. Jonatas

Artur disse...

Merecia um post... Ainda farei, ô, nanodoido!

O casal sorodiscordante (onde existe um soropositivo -- portador de HIV -- e um soronegativo) está numa situação na qual há uma probabilidade mais ou menos previsível de dano, isto é, está diante de uma situação de perigo: a contaminação, pelo vírus HIV, do soronegativo. Logo, em tese, o casal precisa gerir uma circunstância que envolve um risco.

Na pesquisa, estamos percebendo que a adaptação à condição da sorodiscordância envolve um processo complexo, cuja hierarquia não é definida a priori e nem construída do ponto de vista de uma ação racional. Quando falo aqui de uma "ação racional", refiro-me a uma série de procedimentos de adequação entre meios e fins (mudanças de práticas sexuais, uso de camisinha, cuidados preventivos, monitoramento pessoal constante, etc e tal). Essa adequação entre meios e fins implica, na minha opinião, um tipo de racionalidade, que chamo de "instrumental" (de acordo com uma velha tradição sociológica). Ela é "técnica"? Sim, de uma certa maneira, já que o casal precisa neutralizar uma série de hábitos para otimizar a gestão do risco. Precisa ser eficiente; precisa otimizar a conduta para gerar um resultado: a prevenção. A conjugalidade sorodiscordante vira um empreendimento da prevenção.

Ora, esse tipo de ação racional é o desejo de todo gestor que formula uma política pública; aliás, as políticas públicas implicam, geralmente, uma adequação entre meios e fins, isto é, impõe uma lógica de ação instrumental (essa lógica de ação pode implicar, digamos assim, uma "biopolítica") que normatiza "tecnicamente" uma conduta em detrimento de outros comportamentos. Uma forma bastante eficiente de controlar uma ação é instrumentalizá-la a partir de procedimentos técnicos. Um gestor de política pública padece de uma compulsão em instrumentalizar ações -- "tecnificar" uma ação é a normatização dominante nas políticas públicas.

O problema é que, empiricamente, os casais não se ajustam, de forma automática, à gestão técnica do risco. Há em jogo uma multiplicidade de crenças e representações do próprio risco que depende do contexto e da situação de conjugalidade.

Um casal entrevistado, por exemplo, colocava a situação de sorodiscordância como um castigo de Deus e que o risco de contaminação seria gerido pelas ações divinas -- há uma consciência do risco, mas sua gestão não será realizada pelo casal, e sim por Deus. O casal, assim, não utilizará nenhuma técnica de ajustamento de conduta que faça a adequação entre meios e fins para obter o resultado esperado, a prevenção. O empreendimento será realizado por um agente externo: o Grande Gestor, através de técnicas provavelmente misteriosas e incognoscíveis. Deus, convenhamos, não é um "gestor" que baseia a sua conduta tomando como referência uma "ação racional".

(por exemplo: a gestão divina da Querela da Maçã foi tudo menos racional. Aliás, do ponto de vista técnico, foi uma gestão estúpida. Pergunte a Cynthiazoca o que ela acha disso...)

A pergunta que me faço: esse casal tem uma representação do risco ou da gestão do risco que não implica uma visão técnica do risco? Há uma consciência do risco, mas não uma gestão de fato, já que todo risco é uma técnica?

Posso entender que, no mundo científico, mundo onde a técnica é supervalorizada, o risco seja uma questão técnica, mas... e no "mundo vivido"? São perguntas, que não tenho, claro, as respostas, pois preciso, primeiro, terminar a pesquisa (hehe).

Por isso, a equipe de pesquisa "suspendeu" seus juízos sobre a noção de risco, adotando uma análise pragmática na qual a construção das hierarquias nas lógicas de adaptação e de ação estariam inscritas na dinâmica dos processos identitários e relacionais. Bora ver no que vai dar...

Le Cazzo disse...

General,
Agora entendo. A primeira coisa é distinguir o que a cambada que citei chama risco de perigo. Para eles, risco é sempre uma administração racional, técnica da "Fortuna". Assim, distinguem a postura do cara que diz "Tá mão de Deus" (Mão no singular porque com a outra está tocando piano, regendo a Sinfônica de Londres e ajudando o Náutico a se manter na Primeirona) da postura do empresário que diz "precisamos analisar o desempenho do mercado, o risco Brasil etc etc antes de dar um aumento para minha secretária". Beck observa que a "gestão do risco" também conta com seus pressupostos não-racionais, mas a separação entre as duas posturas é mantida.

Creio no entanto que você desconfia dessa separação tão didática... Mas deixar na mão de Deus seria mais conviver com o perigo (no entender de Beck) do que lidar com o risco. Jonatas

Cynthia disse...

Arture,

Você sabe que nós mulheres temos uma relação complicada com as maçãs. Sempre que a gente se envolve com uma, rolam pequenas catástrofes, como a expulsão do paraíso e a Guerra de Tróia.

Mas você tem razão: as soluções divinas para os variados pomos da discórdia são tudo, menos racionais. Aliás, pensando no mito de Adão e Eva e no de Eris ou Discórdia, cheguei à conclusão de que Deus é um hermeneuta heideggeriano, fortemente avesso à técnica e à razão instrumental. A verdade, para esse sujeito que adora piadas de mau-gosto, tende a se esconder do conhecimento (Erkenntis), revelando-se por meio das traduções mal-ajambradas de Hermes, o pregador de peças. Não foi por acaso que Zeus mandou Hermes levar Pandora e sua caixa como presente para Epimeteus, irmão de Prometeu, o carinha que roubou o fogo e se apropriou da técnica. Sabendo que a danada era curiosa e que abriria a caixa que continha todos os males da humanidade, Zeus se vinga da família de Prometeu e nos deixa a esperança (ou a antecipação), uma espécie de “esquecimento” que faz com que não tenhamos que conviver com o conhecimento de nossa própria morte e que mantém os filósofos e ocupados até hoje.

E por falar em Éris e Pandora, estamos pensando em um nome legal para o nosso grupo de teoria e epistemologia feminista. Achamos Pandora mais sonoro e mais ambíguo, o que pode servir bem às nossas propostas críticas... Que tal?

Artur disse...

Minha tendência é concordar contigo. No início, realmente, pensava assim o risco; com as entrevistas, fiquei na dúvida. De todo modo, terei de fazer algumas diferenciações na interpretação do material empírico.

Um pouco de viagem na maionese:

Existe uma diferença entre risco e gestão de risco? Risco seria lidar com qualquer situação de perigo -- digamos assim. Para acontecer, de fato, uma gestão do risco, tal procedimento envolveria, necessariamente, uma administração racional da situação. Logo, se toda gestão implica uma administração racional, o casal exemplificado não estaria implementando uma gestão do risco, e sim um outro tipo de procedimento (utilizar a magia para prevenir o perigo, por exemplo -- embora, aqui, a magia seja uma "técnica". Na verdade, o casal abdicou de qualquer "técnica", deixando a "gestão" na mão de Deus -- tal ação não seria propriamente uma gestão, seja da parte do casal, seja da parte de Deus -- hehe).

Acho que é o termo "gestão" que impõe a tecnicalidade à noção de risco. Num mundo onde a técnica é predominante, toda prevenção do risco é baseada na administração racional dos procedimentos preventivos. Por isso, "risco" na contemporaneidade implica ou é quase um sinônimo de "gestão do risco". A gestão capturou o risco e o tornou um fundamento do controle social.

Claro, parto do princípio que gestão significa, necessariamente, administração racional. Gerência sobre, administrar, dirigir, gerenciar, logo, implica uma racionalidade instrumental.

Ainda pensarei muito nesse assunto.

Cynthia disse...

Sobre risco, vale a pena dar uma olhada em Luhmann, a base de Giddens e também de Beck.

Artur disse...

Como sou francófilo, boa parte de minhas reflexões sobre o risco vem de Robert Castel: "la gestion des risques: de l'antipsychiatrie a l'après psycanalyse" -- um livro de 1981! Conhecia superficialmente as posições de Beck, numa tradução espanhola. Foi ótima essa discussão, pois ampliei o aporte bibliográfico. Cynthia: qual é o livro de Luhmann?

Cynthia disse...

Aí vai:

http://books.google.com/books?id=l21zCBp-cbYC&dq=luhmann+risk&printsec=frontcover&source=bl&ots=AUBfMOQjSB&sig=DawpywJ2oe18uBFtssWi_a4OZeE&hl=pt-BR&ei=QJYySu2FDsyktwf_zo3BCQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=2#PPP1,M1

Lena disse...

"Por isso, a equipe de pesquisa "suspendeu" seus juízos sobre a noção de risco, adotando uma análise pragmática na qual a construção das hierarquias nas lógicas de adaptação e de ação estariam inscritas na dinâmica dos processos identitários e relacionais".

Artur, o que é que isso quer dizer na prática? Aliás, na metodologia?

Anônimo disse...

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