quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O Nascimento da Ciência na Europa (parte 1)



Jonatas Ferreira e Maíra Acioli

Entro no Google e procuro informações sobre Paolo Rossi, o eminente filósofo e historiador da ciência. A homonimia entre o escritor de mais de vinte livros bastante conhecidos, muitos deles publicados no Brasil, e o célebre jogador de futebol italiano dificultam minha tarefa. Dificultam emocionalmente, quero dizer, pois lembro daquele 3 a 2 com os quais a "azurra", sob o comando do outro Paolo Rossi, desclassificou a “esquadra canarinha” na Copa de 1982. É melhor, portanto, concentrar no escritor de A Chave Universal, de O Filósofo e as Máquinas, de O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, nas aulas de epistemologia científica no Departamento de Ciências Sociais da UFPE e naquilo que deve ser discutido: a mudança epistemológica que faz nascer a moderna ciência européia e da qual participaram nomes tão significativos quanto Bacon, Galileu, Giordano Bruno, Kepler, entre tantos outros.

Por vezes é difícil convencer o(a) aluno(a) de ciências sociais a apreciar a dimensão dessas mudanças e o caráter desses pioneiros diante da crítica que hoje podemos fazer a duzentos anos de cultura científica e tecnológica: afinal, sem a ciência e a técnica modernas seriam possíveis duas guerras mundiais, a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, o efeito estufa, a depredação da vida na terra etc. etc?


Uma primeira tarefa para esse(a) aluno(a), portanto, é se permitir o gesto hermenêutico e buscar entender a contribuição desses cientistas em seu tempo, isto é, a coragem de ruptura com o que estava posto que cada um deles manifestou - e por vezes com uma convicção trágica, como é o caso de Giordano Bruno. Algo importante a ser considerado, é que a constituição da ciência moderna, de um espaço público de saber científico, de uma experiência racional e crítica, ocorreu em condições sociais e políticas bastante particulares. Rossi menciona a Guerra dos Trinta anos e as convulsões sociais que sacudiram a Europa do século XVII como contra-ponto para entender a força de um ideal de racionalidade que se apresentou como a possibilidade de uma linguagem comum para todos os seres humanos. No período de plena atividade dos tribunais inquisitoriais, a mãe de Kepler ficou encarcerada durante 5 anos sob acusações de bruxaria, lembra Rossi, as associações de cientistas e pensadores buscam oferecer a força da razão como denominador comum a todos os homens, como possibilidade de harmonia entre os povos. Uma só língua e denominador comum: a razão científica. É nas academias e sociedades científicas que toma força a idéia de que a verdade não está ligada a autoridade daqueles que a enunciam, mas deve ser objeto de verificação, comprovação, crítica por qualquer um que esteja disposto a testá-la, desafiá-la.


Quais os desafios epistemológicos que a nova cultura científica tem de suplantar para fazer valer a esperança de um mundo de bem-estar e harmonia promovido pela ratio científica? Algo realmente fundamental foi confrontar a idéia de que a ciência deveria se dedicar a contemplação do mundo e em seu lugar oferecer o conhecimento útil como valor cultural central. No Novum Organum, salvo lapso de memória, Bacon afirma que é necessário abandonar o blá-blá-blá diletante dos filósofos medievais, sua busca pela essência do mundo, pela pergunta que busca o “quê” das coisas, e abraçar a idéia de um conhecimento útil, claro, que se ocupe em descobrir o “como” das coisas. Obrigar a natureza a confessar os segredos, ele diz, para transmiti-los e utilizá-los em benefício de toda a humanidade. Nas primeiras páginas do Novum Organum, por exemplo, lemos uma passagem que ilustra o que viria a ser essa nova forma de conhecimento:


Nosso método, contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrin do e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que também divisaram os que tanto concederam à dialética. Tornaram também manifesta a necessidade de escoras para o intelecto, pois colocaram sob suspeita o seu processo natural e o seu movimento espontâneo. Mas tal remédio vinha tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente ocupada pelos usos do convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais vã idolatria. Pois a dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em nada modificando o andamento das coisas, mais serviu para firmar os e rros que descerrar a verdade. Resta, como única salvação, reempreender-se inteiramente a cura da mente. E, nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma, mas permanentemente regulada, como que por mecanis mos. Se os homens tivessem empreendido os trabalhos mecânicos unicamente com as mãos, sem o arrimo e a força dos instrumentos, do mesmo modo que sem vacilação atacaram as empresas do intelecto, com quase apenas as forças nativas da mente, por certo muito pouco se teria alcançado, ainda que dispusessem para o seu labor de seus extremos recursos.


A própria clareza de enunciação que esse tipo de ciência requer e promove contradiz o postulado medieval de que o saber não deve ser aberto a qualquer um, mas apenas para os iniciados. O esoterismo do saber medieval, por outro lado, resulta no fato de que a transmissão de conhecimento se dá a partir de uma ritualística limitada para poucos: a verdade é transmitida através da comunicação direta entre o mestre e o discípulo. É impossível recusar, hoje que o conhecimento se transformou em mercadoria fundamental, essa postulação da ciência moderna: abrir suas portas para que o exercício crítico seja ao mesmo tempo esclarecedor e capaz de fomentar o desenvolvimento humano.

Essa idéia de desenvolvimento, obviamente, está intimamente ligada à idéia de produção de utilidades – o que, evidentemente, representa um ponto de estrangulamento claro ao exercício crítico. Nos séculos XVII e XVIII, entretanto, essa circunscrição do campo de validade do conhecimento significava muito claramente: a defesa de uma ética do trabalho, uma relação de complementaridade entre ciência e técnica. Ora, aqui também percebemos uma transformação drástica: a técnica, e os técnicos, engenheiros, artesãos, passam a ser considerados como elementos fundamentais da produção de conhecimentos e de utilidades. Uma ética do fazer está em curso.

A crença na existência de um saber secreto, por outro lado, teve força considerável durante muitos séculos na cultura européia. A natureza, percebida a partir dessa cultura seria uma realidade total, com uma alma própria. Todas as coisas que compõem esse mundo natural possuem elementos ocultos que as ligam ao todo, sendo assim impregnadas pelo divino. O homem, enquanto espelho do universo, é capaz de entender essas correspondências secretas. Mas só uma categoria de homens é capaz de penetrar nesse sistema complexo de correspondências, pois esse mundo mágico não se abre facilmente. É essa cosmologia que dá as bases para a distinção entre os sábios e a massa dos incultos, e ela também que legitima a constituição de uma linguagem cujo hermetismo seria derivado da complexidade dos fenômenos que descreve. Seu fechamento, por sua vez, realiza a função de indicar aqueles que são capazes de alcançar as verdades, pois só quem as compreende apesar de tal linguagem pertence à classe dos eleitos. Como esta forma de perceber o saber se haveria com a invenção da imprensa?



(continua)

3 comentários:

Pedro disse...

Estava recentemente conversando com um amigo e mencionei o Negros Mulheres e outros Monstros. Como ele mostrou interesse mas não tem acesso regular à internet fiquei de entregar o texto impresso. Só então reparei que há duas versões, publicadas em duas séries de posts diferentes, sendo uma série assinada por Cynthia outra por Jonatas. E agora?!

Le Cazzo disse...

Pedro,

A série de posts feitos por Cynthia e por mim corresponde ao primeiro esboço de um artigo que estamos concluindo em parceria. Recomendo que você imprima o material na ordem que aparece pois há, no fundo, uma cronologia implícita e um argumento que se desenvolve ao logo das minhas contribuições e de Cynthia. E em breve vocês poderão ter o texto em sua forma definitiva (não sabemos ainda qual revista nos publicará). Abraço. Jonatas

Rui Filipe disse...

como se chama a imagem?

obrigado,
Rui Filipe