terça-feira, 18 de agosto de 2009

O Nascimento da Ciência na Europa (parte 2)



Maíra Acioli e Jonatas Ferreira

Nos Dez livros de Pensamento diversos, publicados no mesmo ano do Novum Organum (1620), Alessandro Tassoni defende a tese da superioridade dos modernos com relação aos antigos. Seu argumento toma como foco o desenvolvimento de novos aparatos técnicos, entre eles, a imprensa: “… essa nobre invenção que introduziu o modo de fazer com que na terra as almas dos homens gloriosos nunca morram...” (apud Rossi, Os Filósofos e as Máquinas). O pensamento medieval não poderia se haver com a imprensa e a potencial divulgação de idéias, saberes novos que esta invenção trazia; o próprio o surgimento desta mostra que os tempos eram mesmo outros.

A defesa de Tassoni antecede a “querela dos antigos e dos modernos" (1688-97). O início da famosa disputa é atribuído por Paolo Rossi a Charles Perrault. Na França essa disputa abordava temas concernentes à modernidade e ao progresso, mas estava mais ligada aos campos literário e lingüístico. Na Inglaterra, os temas em discussão eram os da filosofia natural, das ciências e das artes mecânicas. Se o Renascimento propôs uma ruptura com a cultura medieval a partir de um retorno à antiguidade clássica, a idéia de progresso científico constante fundamenta agora entre os modernos a conclusão de que esses eram tempos de ultrapassar mesmo aqueles gigantes, que o desenvolvimento técnico e científico seria infinito. Esse progresso humano incessante, todavia, só seria possível a partir do exercício crítico com respeito a toda forma de tutela e autoridade intelectual. A partir dessa premissa é possível concluir que o saber transmissível é superior a todas as formas solitárias de sabedoria espiritual. O pensador solitário está parcamente submetido ao exercício crítico e, portanto, ao progresso intelectual.

O exercício critico implica vencer “obstáculos epistemológicos” que se cristalizam sob a forma de dogmas. Uma série de esquemas de pensamento precisava ser superada para dar espaço à essa nova forma de perceber e explicar o mundo e os fenômenos que nele se passam. E um grande passo nessa direção foi elaborar uma nova compreensão da natureza. Se os medievais achavam que o mundo estava repleto de sinais do Divino, e buscavam entender a afinidade oculta que existiria entre os objetos do mundo, o modernos buscam já não mais procuravam uma “afinidade eletiva” entre os seres mais o seu princípio de produção, uma mathesis universalis que abrisse, não a verdade dos seres, mas o conhecimento das causas mediantes as quais seria possível controlar sua produção. A separação entre fé e razão científica é esboçada neste contexto. Uma vez já não procuram no mundo natural uma totalidade de seres ligados por relações secretas, abrem mão das pretensões de obtenção de um conhecimento absoluto e podem avançar na construção do conhecimento a partir de ramos especializados.

Como todos sabemos, a história da física é um exemplo dos desafios enfrentados na construção da ciência moderna. Trata-se não somente de um novo método, mas também de uma nova concepção a respeito do que é o universo físico. Neste sentido, alguns postulados da cosmologia clássica e medieval, sua aparente obviedade, o senso-comum que os legitimavam, foram grandes obstáculos. Essas eram generalizações que possuíam raízes antigas e estavam ligadas à experiência cotidiana, relacionadas ainda a uma concepção antropomórfica do mundo, ou seja, à crença de que Deus havia colocado o homem no centro da criação e que todo o mundo natural fora constituído de modo a afirmar essa posição. Assim, não faria sentido percebermos, por exemplo, o sol girando em torno da terra e supormos que o contrário ocorreria: Deus não colocaria no umbigo do universo uma criatura que não estivesse preparada de modo natural para o saber correto.

A cosmologia aristotélica é considerada aqui um obstáculo epistemológico central à efetivação da ciência moderna. As distinções entre mundo celeste e mundo terrestre e entre movimentos naturais e movimentos violentos dão as bases para a filosofia aristotélica. O mundo terrestre ou sublunar é composto de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. A terra e a água tendem naturalmente para baixo, enquanto que o ar e o fogo tendem naturalmente para cima. Entretanto, a experiência apresenta também outros movimentos que contradizem esse princípio – o fogo pode deslocar-se lateralmente sob a ação do vento, por exemplo. Este tipo de movimento é chamado de movimento violento, pois deriva de uma força externa que se opõe à natureza do objeto. Para Aristóteles, o mundo terrestre é o terreno próprio da mudança, do nascimento e da morte; o movimento que nele acontece é retilíneo, variado e limitado no tempo. O mundo lunar, ao contrário, é o reino da permanência, dos movimentos curvos, perfeitos e eternos. As estrelas e os planetas que giram em torno da terra são formados por um quinto elemento, o éter. Ele é sólido, cristalino, e não está sujeito à alterações. Nesta cosmologia não cabe nenhum movimento circular à Terra: ela está imóvel no centro do universo.

Ao longo de um século, aproximadamente entre 1610 e 1710, cada um dos pressupostos que baseiam essa cosmologia foram sendo superados. Em primeiro lugar foi preciso deixar pra trás a idéia de que o universo estava dividido em duas esferas (mundo lunar e sub-lunar), pois esta distinção mantém a matemática afastada das elaborações da astronomia e da física – a matemática opera a partir da busca de princípios universais, da indiferença qualitativa entre os seres. É somente a partir da percepção de que toda a matéria é regida por princípios únicos, com uma única linguagem explicativa, que essas áreas podem empreender novos avanços. Todo o universo funciona a partir de leis gerais e invariáveis. Citando o Discurso do Método, Merleau-Ponty, em A Natureza, mostra o poder que a idéia de tais leis gerais passa ter no pensamento europeu. Mesmo Deus não pode transgredir os princípios que estruturam o mundo natural.

“Mostrei quais eram as leis da natueza; e, sem apoiar as minhas razões em nenhum outro princípio, que não o das perfeições infinitas de /deus procurei demonstrar todas aquelas sobre as quais pudesse haver alguma dúvida, e mostar que elas são tais que, mesmo que Deus houvesse criado muitos mundos, não poderia haver nenhum onde elas deixassem de ser observadas”.


Às mudanças na forma de entender o universo físico correspondem transformações nas concepções relativas à organização social. Se, mediante o uso da razão e da experimentação, podemos acessar um mundo de verdades universais, demonstrável e portanto certificável, é natural que se conclua estarmos diante de um caminho para o entendimento entre os seres humanos. A ciência pretende ser uma linguagem universal, esta é a sua bandeira ideológica. Pretende-se que a razão possa se tornar um elemento de harmonia entre os povos porque ela é o ratio, o denominador comum a todos os seres humanos, isto é, seres que teriam na razão o seu traço distintivo, sua essência. A partir dessa perspectiva é que se poderá também contestar as rígidas distinções entre grupos sociais vigentes no antigo regime. Para Kant, por exemplo, o iluminismo é a saída do homem do estado de menoridade e tutela; é a possibilidade de emancipação através de uma faculdade que é comum a todos.

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