domingo, 6 de setembro de 2009

Expressões identitárias entre « a turma do bem » e os « radicais chics » : por que Habermas e Laclau não se entendem bem? (parte 1)



Tâmara de Oliveira

Com mais de um ano de atraso, li numa entrevista do Catzo de 09.06.2008 que Frédéric Vandenberghe explica sua vinda ao Brasil como resultado de coincidência ou acidente feliz. Pois bem, acho que eu deveria agradecê-lo pessoalmente por sua entrevista ter sido uma coincidência feliz para mim.

Explico : participei recentemente de uma discussão sobre expressões identitárias contemporâneas, num seminário ocorrido na Universidade Federal de Sergipe (agosto 2009). Para prepará-la andei lendo La guerre des identités – grammaire de l’émancipation (Laclau, 2000), onde o autor afirma que sua perspectiva sobre o momento universal não se ampara em nenhuma condição a priori  independente de uma sociedade particular, como seria, segundo ele, a « situação de ‘linguagem ideal’ de Habermas » (Laclau, 2000, p. 14). Li também um texto de Habermas (Taylor et al., 1994) sobre multiculturalismo, onde ele explicita concordar com quem considera o argumento descontrucionista (reivindicado por Laclau) lógica e praticamente auto-destrutivo. Fiquei matutando se as semelhanças e as divergências entre a ética da discussão habermasiana e o significante vazio laclauniano, ambos úteis para discutir certas tendências essencialistas do definir ou agir identitários, poderiam render um texto razoável, se abordadas a partir de uma diferença de fundo entre eles : a primeira inspira-se em modelos teóricos do consenso social enquanto o segundo em modelos do conflito social. E não é que Vandenberghe tinha proposto reescrever a história recente da sociologia em termos de velhas oposições, entre as quais a do consenso e conflito ? Pois é, se ainda fosse preciso provar, essa entrevista do Catzo o teria feito : andar pra trás pode adiantar.

O mesmo Vandenberghe, apresentando as linhas gerais de um livro que ainda estava escrevendo, expôs sua leitura de três constelações da sociologia contemporânea articulando oposição consenso/conflito à distinção humanistas/anti-humanistas/pós-humanistas. Assumindo usar categorias pouco analíticas, ele classifica herdeiros de Habermas e Appel como « a turma do bem » (consenso/humanismo) e Laclau como uma das estrelas dos « radicais chics » (conflito/anti-humanismo). Gostei tanto da expressividade das categorias nativas de que Vandenberghe faz uso que as entronizei no título. Mas é só tentativa de atrair leitores, não pretendo analisar sua adequação para comparar Habermas e Laclau. Meu objetivo aqui que, diga-se de passagem, aproveita partes do texto escrito para o tal seminário da Universidade Federal de Sergipe, limita-se a tentar isolar aquela divergência central entre eles – abordagem consensualista/abordagem conflitualista – partindo da descrição de como cada um vai problematizar certas expressões identitárias contemporâneas.

E ambos as problematizam sob uma mesma motivação de fundo, a de salvar teoricamente o Universal, nos embates em torno das ressignificações da tensão Universal/Particular que marcam a dinâmica das identidades contemporâneas. Um observador desavisado poderia acreditar que Habermas e Laclau têm motivo pra se entenderem muito bem.

Comecemos então pelo que poderia uni-los. A tensão acima colocada é um núcleo das discussões sobre as “identidades” não só de hoje como de ontem. Em termos banais, ela se refere à clivagem entre a pretensão universalista moderna de integração social e as realidades concretas – movendo-se sob o signo das diferenças e desigualdades de poder, de condições materiais, de conhecimentos, de interesses, de valores, de crenças e de aspirações (Oliveira/Lima, 2007). Embora o princípio universalista de integração idealize uma homogeneidade cultural pelo menos no interior de um Estado-nação, este sempre foi heterogêneo e sujeito a diferentes dinâmicas migratórias. Além disso, é um princípio que se orienta a um cidadão abstrato – sujeito e objeto dos direitos e deveres universais –, enquanto que a realidade da vida é irremediavelmente construída por indivíduos e grupos diferentes e desiguais, tanto em termos simbólicos quanto materiais.

No que diz respeito às expressões identitárias contemporâneas, sabe-se o quanto a tensão universal/particular tem sido profundamente ressignificada pelo que se pode chamar de nebulosa multiculturalista – genealogicamente articulável aos movimentos sociais dos anos 60, estabelecendo afinidades eletivas com correntes intelectuais pós-modernas e efetivamente mediada pelas transformações de sociedades cada vez mais globalizadas. Apesar da diversidade de suas expressões teóricas e políticas (daí o termo “nebulosa”), suas diferentes formas têm em comum a crítica dos princípios modernos universalistas. Estes são refutados como dissimulação da diversidade, visando à reprodução da discriminação e da dominação de grupos e indivíduos minoritários ou marginalizados, pelas elites. Coerentemente, o multiculturalismo militante tem a tendência a fazer da diversidade sócio-cultural o princípio ideal de integração contemporânea e vincula-se às demandas por políticas afirmativas enquanto luta contra a discriminação negativa de minorias e/ou grupos oprimidos.

Mas acontece que a diversidade, outro nome para a categoria Particular, também levanta problemas teóricos e práticos, podendo ser sintetizados também em termos banais: como viver juntos sendo diferentes e desiguais? Como estabelecer os princípios normativos das relações entre os diferentes e, principalmente, quem vai estabelecê-los, impô-los, assegurá-los? Qual seria o fundamento desses princípios? De negociação dinâmica entre as identidades diferentes? De subsunção das diferenças em princípios a elas transcendentes – quer sejam princípios contextualizados ou a priori? De segregação ou exclusão das diferenças consideradas incompatíveis – neste caso, quem vai e como vai definir quais as diferenças incompatíveis?

(continua)

3 comentários:

Cynthia disse...

Oi, Tâmara,

que bom poder contar com sua participação por aqui! Espero que seja a primeira de uma longa série.

Estou ansiosa para ler o resto do texto.

Grande beijo.

Le Cazzo disse...

Faço minhas as palavras de Cynthia. Abraço. Jonatas

Le Cazzo disse...

Faço minhas as palavras de Cynthia. Abraço. Jonatas