segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Nossa Incivilidade


Fernando da Mota Lima

Sérgio Buarque de Holanda criou um conceito de larga circulação nas ciências sociais brasileiras. Como tudo que se rotiniza, o conceito logo foi incompreendido ou lido de modo divergente daquele proposto por seu autor. O conceito em questão é o da cordialidade. Meu propósito explícito é usá-lo, para os fins deste artigo, como correspondente de incivilidade. Ser incivil é, em suma, desprezar as normas básicas de convívio social; é não submeter nossas disposições livremente egoístas aos limites supostos na relação com o outro em todas as esferas sociais: na casa, na rua, no trânsito, na escola, no shopping... Assim, Sérgio Buarque afirma que somos cordiais. Nos meus termos: somos incivilizados.

O que isso tem a ver com a violência corrente na nossa sociedade? Acredito que tudo. Acredito que essa cultura da incivilidade está na raiz da violência social brasileira. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ou FHC, observou que nossas instituições socializadoras (a família, a escola, a religião) não funcionam, isto é, são incapazes de regular nosso comportamento. É nelas e a partir delas que toda sociedade civilizada se organiza. É nelas que aprendemos a respeitar os direitos do outro, os limites sociais impostos como condição de respeito mútuo e constrangimento coletivo. Desatados de tais limites, nossa tendência espontânea é fazer o que queremos indiferentes aos danos e abusos que impomos ao outro. É mais ou menos nesse sentido que Freud alude à civilização como repressão.

É sintomático o fato de tanto resistirmos a essa forma de repressão socialmente necessária. No Brasil, qualquer norma é sempre encarada como valor puramente negativo, como expressão de abuso contra a liberdade individual. Avessos à normatização das nossas relações sociais, tendemos a encarar a norma como imposição abusiva. Não nos passa pela cabeça o reconhecimento de que as leis do trânsito, por exemplo, visam primariamente garantir a segurança e a vida dos que circulam nas ruas. Daí a inoperância do novo código imposto, segundo as autoridades, com o fim de atualizar o anterior, já defasado. Ora, o problema com o outro código, assim como com o atual, não residia nisso, mas no fato de não ser devidamente aplicado. Veio o novo código, seguido de muita polêmica e conflito nas ruas, iludindo alguns otimistas com a perspectiva de civilizarmos nosso trânsito, mas logo tudo se acomodou e logo regredimos à bagunça rotineira. Aliás, se minha percepção não me trai, mudamos para pior. Aqui em Recife, por exemplo, bem poucos respeitam normas elementares de circulação nas ruas. A polícia não policia, o motorista e o pedestre não são e nem querem ser policiados e assim, a sociedade, afeita ao desregramento, segue indiferente a este e a todos os demais códigos.

Sempre que ocorre algum crime pavoroso, desses que fazem o lucro e a festa da mídia sedenta de sangue e sensacionalismo, voltamos à confusa discussão do nosso estado de alarmante violência social. A maioria acuada, temendo a insegurança geral em que vivemos, confunde violência social com violência policial. Encara apenas como violência, noutras palavras, a que a mídia e a delegacia documentam como tal. Vemo-nos como vítimas de um estado social violento inconscientes de que todos os dias, nas nossas ações mais banais e correntes fermentamos a desordem, as práticas de desrespeito que em muitos casos resultam em crime policialmente caracterizado. Não somos sequer capazes de respeitar os direitos do vizinho e todavia procedemos apenas como vítimas da violência social. Respeito? É aquilo que você dá para poder receber. Quantos brasileiros têm honestamente crédito a cobrar quando a moeda é respeito?

21 comentários:

Le Cazzo disse...

Ele está de volta!!!!!

Cynthia disse...

E em grande estilo!

Débora P. disse...

Sublime. Uma das postagens mais sensacionais que li nesse blog.

Le Cazzo disse...

Êêii!!! (Cynthia, desse jeito nós teremos de aumentar o salário do Professor Fernando Mota...). Jonatas

Cynthia disse...

Deixa de ser invejoso, Jonatas!

Le Cazzo disse...

É mais forte que meu desejo por correção política, Cynthia.

Noves fora, Fernando, fiquei pensando em algo a partir do seu texto. Contra o quê o romantismo brasileiro (e sua influência nas ciências sociais) realmente se insurgiu? Como sei que você entende de sociologia da arte e da literatura, pensei que talvez você quisesse comentar. Na Europa, o Romantismo foi anti-formal, anti-racional, "anti-moderno" e, por isso, modernista e tal. E num país cordial, que recusa a formalização etc., o que as tendências românticas combatem?

E apesar de invejoso, sou seu fã confesso. Jonatas

Fernando disse...

cynthia e jonatas:
Vou engrossar a corrente dos comentários para falar de algo que nada tem a ver com o meu artigo sobre nossa incivilidade. como cynthia não me dá importância, nem mesmo para me escrever um e-mail reiteradamente solicitado, aproveito este espaço para pedir o e-mail de jonatas, que não encontrei nem no currículo lattes. também aproveito, claro, para cobrar de público aumento de salário. jonatas, sério: me envei seu e-mail. prometo considerar a questão que você me propõe no comentário precedente.
Fernando Salário Mínimo

Careca disse...

Vou me juntar aos elogiadores do artigo. Embora o finalzinho carregue nas tintas do plural majestático e pareça um mea culpa generalista, do tipo atire-a-primeira-pedra.

Cynthia disse...

Fernando,

mil desculpas, mas é que nos últimos dias só tenho respondido aos emails estritamente urgentes. Como suas mensagens são sempre verdadeiras obras literárias, sempre deixo para responder em um momento de folga que nunca aparece. Hoje segue o email de Jonatas.

Cynthia disse...

Careca,

Bom ver você por aqui.

Marcelo de Oliveira disse...

Caro professor Fernando,

meu nome é Marcelo, sou aluno de Ciências Sociais da PUC do Rio Grande do Sul e admiro muito o trabalho de vocês publicado aqui no blog. Ao ler o seu texto algumas ideias me ocorreram. Peço desculpas desde já caso pareça ingênuo, mas não podia deixar de fazer minhas considerações e, assim, sanar algumas dúvidas. Em primeiro lugar, pergunto: os principais problemas relativos à violência que perpassam nossa sociedade são decorrências de um problema maior, de ordem moral? Não pretendo com esta pergunta estabelecer nenhuma espécie de dicotomia entre problemas morais e problemas materiais, muito antes, gostaria de saber, simplesmente, como o senhor pensa a formação dessa moralidade, ou talvez seria melhor dizer, dessa eticidade. A segunda questão, é atinente ao tema da oposição entre indivíduo e sociedade. Tanto na passagem que o senhor cita FHC falando sobre as instituições socializadoras, quanto na passagem que o senhor opõe nossas disposições livremente egoístas (desculpe mas lembrei muito de Hobbes) aos limites impostos, ou supostamente impostos, pela relação com o outro, me parece que o senhor pressupõe sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, como polos aprioristicos de uma relação, dotados de qualidades essencialmente distintas e conflitantes. Pergunto se esta oposição, alem de basear-se em uma concepção essencialista da maldade humana, não acaba por separar por completo a moralidade da vida cotidiana, só conseguindo reconstituí-la nas relações interpessoais pela via da internalização de normas? A terceira questão se dirige à pertinência do uso do conceito de cordialidade na análise da sociedade brasileira. Esse conceito, desenvolvido por Sérgio Buarque, remete, se não estou enganado, a idéia de uma certa aversão, por parte dos brasileiros, a uma conduta ritualizada; a cordialidade, muito antes de ser uma interpretação tupiniquim da gentileza britânica, passa a ser vista como um conduta social que não se utiliza de nenhum mediador estandardizado como parametro para relação com o outro. Na minha opinião, isso traz problemas por dois motivos principais: um relativo ao teor etnocênctrico que, justamente por não levar em consideração o processo genético de constituição intersubjetiva da moralidade na sociedade brasileira, vê na negação de uma conduta moral pautada na "civilidade" européia a negação de toda e qualquer forma de conduta moral; e um segundo de ordem mais epistemológica ou seja, será que os tipos ideais, (ah uma pergunta dentro da pergunta: o senhor considera o conceito de homem cordial como uma construção típica-ideal, ou como uma afirmação ontológica?) são válidos como axiomas que permitem deduções dentro de um sistêma formal, ou devem ser constantemente revistos e reconstituidos de acordo com o processo histórico? Ou ainda, será que uma análise mais acurada da sociedade brasileira não nos revelaria um contexto onde muito antes de existir incivilidade existiria "n" formas distintas de civilidade? Por enquanto é isso, desculpe talvez pelos diatribes inseguros de um "aprendiz de feiticeiro".

Fernando disse...

Caro Marcelo:
Leio seu comentário dez minutos antes de sair para um encontro social obrigatório. Portanto, aviso que serei breve. Antes de tudo,é com prazer que leio um comentário dessa natureza. Aliás, seu comentário é quase um artigo acrescido de uma cadeia de questões que, você há de convir, é impossível responder satisfatoriamente neste espaço. Além disso, confesso não ter resposta segura para tudo o que você me interroga ou propõe. Aludindo a detalhes em meio a tantas questões complexas, você não tem por que desculpar-se da alusão a Hobbes. Ela é absolutamente pertinente. Voltarei noutro momento para discutir melhor com você. Acho no entanto que se essa discussão importa tanto para você, o melhor seria prossegui-la através de e-mail. Afinal,

Marcelo de Oliveira disse...

Professor Fernando,
é com imenso prazer que leio seu comentário, minha admiração por vocês do blog, que ja era grande, não para de aumentar. Quanto a possibilidade de discussão via email, não só aceito de imediato como fico agradecido e lisonjeado. Muito obrigado pela atenção, meu email é
marcelo.lopes.001@acad.pucrs.br

Le Cazzo disse...

Fernando,

Faz pelo menos um resumo das respostas que você está dando via Email para Marcelo. É que achei as questões dele muito interessantes. Jonatas

Marcelo de Oliveira disse...

Muito obrigado professor Jonatas.

Puchkin disse...

Eu concordo com o professor Fernando da Mota Lima no diagnostico, embora considere que o professor Lima como todo sociólogo pequeno-burguês viu o galo cantar mas não sabe onde. E o galo cantou na luta de classes, querido professor. Só com o advento socialista teremos de fato uma sociedade organizada, onde a civilização se fie não por imposições do estado repressor, mas como civilização que brota de dentro pra fora, numa sociedade onde o dever-ser e o ser já não se digladiam num hiato dialético, mas encontram a morada tranquila da auto-identidade.

Fernando disse...

Para Jonatas e Puchkin:
Jonatas: claro que darei a atenção devida aos comentários e questões de Marcelo. Só que decid, com a concordância dele, transferir a discussão para o plano da correspondência privada. Se não procedesse desse modo, iria tomar demasiado espaço do blog, que evidentemente não existe apenas para mim e para Marcelo.
Quanto a Puchkin, declaro que admiro profundamente a obra do original, pelo menos concordamos quanto ao diagnóstico. Nisso, fica claro, o revolucionário e o sociólogo pequeno-burguês, até pensei que esta expressão houvesse desaparecido do dicionário, concordam.
Fernando.

Dirceutavares disse...

Professor Tiridá: Oia, quem vem ali! Né ele? Minha gente, né ele?

A platéia: É ele... É ele sim... É o Nêgo Simão!

Pandeirista (tinha um pandeirista, ganzazeiro, e um triângulo como coro entre a tenda de mamulengo e a platéia): Professor... Professor Tiridá? É de certeza o Nego Simão, que quando o senhor foi trabalhar no engenho ele botou prá lascar em você...

Professor Tiridá: Ele está de volta!!!!!

Essa recepção "cordial" ao Nêgo Simão, inicialmente com palavras dúbias na doçura e na ironia, acabou em surra, espancamento, paulada, serra no pescoço, e ridicularização por não agüentar essa pancadaria como se fosse uma "produção fabril" do Professor Tiridá. Vi essa encenação feita pelo Mestre Ginú, na Casa da Cultura, ex casa da Detenção, nos então idos de 1978. Mestre Ginú como Homero, saiu conduzido pela sua idosa mulher e uma filha de oito anos a conduzi-los cego pelos labirintos da Cultura.

Espanta que nossa cordialidade continue tão monotonamente cordial, mesmo já bem encaminhados num novo século. Oh! habitus danado...

Cynthia disse...

Endoidou de vez, Dirceu?

Anônimo disse...

Cys,
Se endoidou de vez, sais pas! Mas que Dirceu sempre tem que colaborar com alguma coisa nonsense que esfria o clima, isso ele faz...

Cynthia disse...

Geninha, a sumida. Ô, não diga isso do nosso querido Dirceu. Ele gosta de semear a cizânia, mas com as intenções mais nobres...

Apareça, moça!