terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Os Trastes de Brasília e o Suicídio Altruísta de Durkheim



Por Luciano Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE)

Depois das esdrúxulas imagens dos corruptos de Brasília escondendo dinheiro nas meias e cuecas, e da surrealista oração conjunta de três desses cafajestes agradecendo a Deus a existência de um deles, a minha impressão é a de que não adianta esperar que cheguemos ao fundo do poço; que esse poço não tem fundo; que, portanto, qualquer indignação não tem mais sentido; e que, finalmente, para que os políticos brasileiros tomem jeito, é preciso romper a lengalenga das conclamações por “rigorosas punições” para esses trastes porque todos no país, eles em primeiro lugar, sabem que elas não virão. Que fazer então? Como dizia uma marchinha de carnaval dos anos 50 “pensar / professor / pensar...” Pois bem, comecei a fazê-lo. Sabiam os senhores que em outras plagas nos Estados Unidos, na França e mais recentemente até na Coréia do Sul acontece vez por outra de um corrupto suicidar-se? Foi por aí que o meu pensamento começou a desenvolver uma reflexão que não sei se classifico no departamento da chanchada ou do drama. O leitor que decida! Os fatos, em primeiro lugar.

Fato nº 1: em 1988, na Pensilvânia, Budd Dwyer, ex-secretário da fazenda daquele estado americano, na véspera de ouvir a sentença judicial num processo de corrupção em que estava enrolado, convocou a imprensa e, na frente das câmeras de televisão, jurou inocência, sacou rapidamente um revolver, enfiou na boca e estourou os miolos. Fato nº 2: em 1993, na França, num feriado de primeiro de maio, o ex-primeiro-ministro do segundo governo Mitterrand, um desconhecido entre nós chamado Pierre Bérégovoy (pronuncia-se “bêrrêgôvuá”), meteu também uma bala na cabeça por análogas razões: metido em acusações de corrupção, tinha sido duramente atacado pelos oposicionistas e sentia-se pessoalmente responsável pela fragorosa derrota do Partido Socialista nas eleições legislativas daquele ano. Fato nº 3: em junho deste ano, na Coréia do Sul, um certo Roh Moo-hyun (não sei como se pronuncia), ex-primeiro-ministro daquele país, depois de admitir publicamente ter recebido seis milhões de dólares de uma fabricante de tênis, não conseguiu conviver com a vergonha: pulou de uma ribanceira de 30 metros e morreu. Como fatos, basta. Vamos agora à teoria.

Não sei se o leitor já ouviu falar em Durkheim. Um dos pais da sociologia, ele é autor de um livro instigante, O Suicídio, onde tenta demonstrar a tese de que esse gesto extremo, o mais pessoal que possa haver, também está submetido a determinações sociológicas. Pois bem. Para Durkheim, a auto-imolação de pessoas como Dwyer, Bérégovoy e Moo-hyun entraria na categoria do “suicídio altruísta”, porque eles estariam de tal forma identificados com os valores socialmente aceitos, que não suportariam conviver com a acusação de tê-los infringido. Nesse caso, a inexistência de suicídios desse tipo na sociedade brasileira indicaria a ausência de valores cívicos suficientemente fortes para serem levados a sério. É nesse sentido que precisamos de uma ruptura, um gesto heróico que seja, e que se torne um marco. Como sou contra a pena de morte, comecei a delirar com a possibilidade de um desses corruptos se matar! Seria um choque, sem dúvida. E indicador de uma mudança cultural da maior importância. O sujeito poderia entrar para a história como um dos vultos importantes do Brasil! Infelizmente não acredito que nenhum deles tope a proposta. Para isso, seria necessário que dessem alguma importância a valores que justamente não têm... Como romper esse nó? Socorra-me, Robespierre!

Depois de ter escrito isso, fiquei pensando na hipótese, altamente improvável, é verdade, de um suicídio altruísta ocorrer na “mundiça” do governo do Distrito Federal. E agora? Será que eu poderia ser criminalmente processado? Remoto bacharel em direito que sou, lembrei-me de que no Código Penal tem um delito de “induzimento ou instigação” ao suicídio. Consultei meus advogados e eles me confirmaram. A pena não é tão horrível assim: de 2 a 6 anos de reclusão. Mas mesmo assim... É verdade que tem um dispositivo que vem em meu socorro: segundo o artigo 65 do mesmo Código, se o crime é cometido em razão de “relevante valor social ou moral”, a pena é reduzida. Nesse caso, com sorte, posso pegar uns 4 anos no máximo, e aí eu poderia me beneficiar das chamadas penas alternativas, que evitam que o sujeito vá parar na cadeia. Um juiz compreensivo poderia me condenar a prestar serviços comunitários. Como sou professor, poderia ser condenado a fazer conferências pelo Brasil relatando minha história... O que acha, leitor? Topo?

13 comentários:

Le Cazzo disse...

E está lançada a campanha "Suicida Brasília!" Claro que o slogan pode melhorar, mas a ideia é boa. E já mando o meu primeiro torpedo: "Arruda, eu não falo com você enquanto você não pular ao menos do quarto andar..." Luciano, caro professor, o que fazer com o cinismo dessa escória? É de lascar. Jonatas

Marcelo de Oliveira disse...

Jonatas, aproveitando o ensejo e lembrando uma antiga promessa, feita por você aqui no blog, a saber, de escrever um artigo sobre Merleau-Ponty, gostaria de fazer algmas perguntas: como seria possível pensar a questão do cinismo sem cair no principado da consciência desengajada portadora de um cinismo apriorístico? Seria pela via da historicidade? Como estrutura e ação se fundiriam em uma conduta cínica? Quais seriam as possibilidades da reflexão atuar sobre o pré-reflexivo neste caso, se é que teria alguma? Abraços

Wellthon disse...

Acho que para tal atitude altruísta por parte dos politicos, eles deveriam ter noção de quebra de valores, algo que concerteza não faz parte no ninho de rato em que eles se entrelaçam, assim como foi dito.
A sua proposição é instigante e ao minímo patriótica. Entretando a sua condenação e a posteriores reduções seriam um belo exemplo da flexibilidade da justiça, que obviamente seriam bem mais acessíveis aos politicos e não alguém como você. Ocorrendo assim o risco de você se deparar com uma situação bem mais instigante, a de ver algum possivel condenado, o mesmo alvo de seu protesto, sair primeiro de uma possivel condeção que você. Seria mais fácil o mártir ser você por mofar na cadeira,e não por um favor dos politicos a sociedade. Ao Arruda as minhocas.

Le Cazzo disse...

Wellthon,
Ficamos muito contentes (Cynthia, eu e Dom Arturo, onde quer que ele esteja) com a participação dos alunos do DCS da UFPE nesse espaço - óbvio que alunos de outros cursos, professores etc. nos deixam igualmente contentes. Continue nos acompanhando e postando seus comentários, eles são bem-vindos.

Marcelo,

Acho que temos de diferenciar dois tipos de cinismo: o pilantra, patife, que rouba e pede proteção Divina para continuar tendo o direito à graça da gatunagem impune; e o cinismo do cidadão que se sente impotente diante da ausência de opções de civilidade, mecanismos públicos eficientes capazes de barrar a corrupção e diz algo no estilo bandeireano: "a única coisa a fazer é tocar um tango argentino" ou "suicidem-se, por favor!"

A pergunta é: existe uma cumplicidade cultural, histórica entre as duas formas de cinismo? Não necessariamente. No entanto, o que torna possível a ação criminosa dos primeiros e a triste constatação dos segundos é um mesmo cenário político em que mecanismos democráticos de proteção à cidadania não foram desenvolvidos satisfatoriamente. O autoritarismo tem muitas faces, como você sabe. Entre a truculência de um Figueiredo, de um Newton Cruz e a bandidagem de José Arruda et caterva (a expressão sempre me lembra Collor de Mello) existe uma cumplicidade política: nos dois casos, o cidadão não dispõe de mecanismos eficientes de controle do poder. E isso questiona de modo claro a idéia de democracia.

Mas sua pergunta vai numa direção precisa, creio: o cinismo dos segundos é de algum modo uma ação política eficaz contra os primeiros? Como dizia Max Weber, é tão pouco o que o intelectual pode fazer, a não ser procurar e expor essas tais condições pré-reflexivas, de que você fala, em que nossas reflexões e posturas cotidianas se produzem. E nesse caso, acho o texto de Luciano muito interessante. Ele identifica esse sentimento de impotência de modo eficiente: rezamos agora para que os Arrudas tenham um mínimo de dignidade e parem de consumir o oxigênio da Terra.

E é claro que ações políticas contra esse problema grave se colocam para além daquilo que pode fazer e refletir um professor universitário. Por mais brilhante e luminosa que seja a sua prosa, como é o caso do nosso querido Professor Oliveira.

Quanto a Merleau-Ponty, devo, não nego. Quem sabe se agora nas férias não teremos tempo para postar algo sobre fenomenologia... Um dia sai.

Jonatas

Le Cazzo disse...

Acabo de ver as notícias no Jornal Nacional. Estudantes e trabalhadores sendo espancados pela tropa de choque do DF por realizarem uma manifestação pacífica pelo impedimento de JArruda. É o que falei: a corrupção que grassa em nosso país é uma evidência da fragilidade de nossa democracia. Jonatas

Cynthia disse...

Jonatas, meu caro, considerando que tenho pais, irmãos e amigos em Brasília, seu slogan me causou uma certa agonia. Pensa em outro, pensa em outro!

Quanto às suas reflexões sobre o cinismo, eu acho que prefiro caracterizar a posição de Luciano como irônica em vez de cínica. Além de diferenciar as duas posturas (a dele e a da gangue em questão), coloca o mesmo problema relativo ao uso da ironia como estratégia política de subversão de significados que tem me assombrado na obra de Butler.

Ainda bem que as manifestações em favor da ética na política não têm se reduzido a paródias e outras performances irônicas, que só são compreendidas por quem já compartilha dos mesmos valores do ironista. Neste sentido, as preocupações de Luciano, por mais esdrúxulas que pareçam, têm um fundo de verdade.

Foi isso que te fez mudar o final do artigo, Lulu?

Eita, entreguei!

Cynthia disse...

E já que esse é um blog de teoria e metodologia, algumas considerações teóricas.

Embora Durkheim caracterize o hairakiri e o sati (o costume segundo o qual as viúvas indianas entram na pira funerária do marido morto) como suicídios altruístas, creio que o que os caracteriza como altruístas não é uma identificação intensa com os valores socialmente aceitos, mas a intensidade das interações entre os indivíduos. (Em termos Durkheimianos, uma identificação intensa com os valores socialmente aceitos seria a socialização quase perfeita e, portanto, não condizente com aquilo que os funcionalistas chamam de desvio social).

Claro que, em alguma medida pelo menos, essas coisas andam juntas: tendemos a interagir mais com pessoas que compartilham os mesmos valores que nós, mas este não é necessariamente o caso, como atestam as diversas formas de interações belicosas.

É preciso considerar que tanto o hairakiri quanto o sati, que são formas rituais de suicídio, são características de sociedades feudais e de castas; nos termos de Durkheim, sociedades cuja "densidade moral" caracteriza-se por um alto grau de integração e de regulação sociais. Neste sentido, o suicídio altruísta (assim como o fatalista - aquele gerado por um excesso de regulação social) são típicos de sociedades de solidariedade mecânica. Em sociedades complexas como a nossa, os tipos de suicídio possíveis são o egoísta (fraca integração social) e o anômico (fraca regulação social).

Moral da história: para que o traste do Arruda se matesse, seria necessário que a ausência dos tais valores cívicos na comunidade dos políticos brasileiros gerasse nele o sentimento de ausência de significado em sua existência. E neste caso o suicídio em questão seria anômico.

Acho que isso torna as coisas ainda mais improváveis...

Anônimo disse...

Valeu, Cynthia.
Acho que era necessário esclarecer que os tipos de suicídio em Durkheim são vinculados à sua distinção histórico-evolutiva de tipos de sociedade. E o de Arruda, tanto por razões históricas como por razões sociológicas (ausência de significado) só poderia ser anômico (você foi teoricamente precisa). Com todo o respeito à indignação de Luciano, a instigação a um suicídio altruísta, no caso colocado, é durkheim-logicamente impossível. Acho melhor contratar uns bons pistoleiros sergipanos de olho amarelo - dizem que são de uma eficácia redoutable. Tâmara

Le Cazzo disse...

Cynthia,

Pensei no que você me disse hoje de manhã e que reproduz no comentário acima.

Bem, eu adoraria pensar que Luciano está querendo dizer exatamente o que disse (e não o contrário) etc. Não sou um grande apreciador dos "ironistas", dessa espécie de estrabismo intelectual. Como Dom Oliveira nunca postará um comentário para esclarecer essa pendenga, proponho um acordo: o desapego a convenções e pudores sociais necessários para postular o suicídio de Arruda estão lá no texto - logo a postura não é desprovida de cinismo. E isso me agrada porque no caso denuncia a tal impotência política de que falei acima, visto que o desejo oliveireano não é mesmo factível. E é possível, neste caso, ver também ironia no texto, uma vez que ele fala "suicide-se" para dizer algo diverso: "que opções políticas temos diante da corrupção, da patifaria e cinismo (do mau) desses caras?" Há ironia também.

Quanto a Judith Butler e Cia, gosto muito da analista e muito menos da filosofia política suposta em idéias como paródia, ironia etc. Mas me calo nesse ponto porque sei que Butler está de algum modo mais próxima de seus interesses que dos meus - ao menos é o que penso, a gente se conhece teoricamente tão pouco, não é?

Quanto ao povo de Brasília, você tem toda razão. Há pessoas lá que eu amo muito e não vale a pena atirar com essa espingarda que espalha tanto chumbo e arriscar uma tragédia. E machucar, por exemplo, uma morena muito linda e jornalista e que é o orgulho do tio. Jonatas

well disse...

Obrigado pela receptividade e apesar de não conseguir compreender tudo dito no Blog, gosto bastante das "compreensíveis". As vezes tenho receio em fazer perguntas, mas por enquanto ficarei apenas como observador.

Cynthia disse...

Tâmara,

Pistoleiro do olho amarelo deve ser terrível. Dá até medo.

Jonatas,

A gente se conhece teoricamente o suficiente para eu saber que você gosta de ler umas coisas engraçadas. Não engraçadas ha ha, se é que você me entende.

Wellthon,

Como você pode ver do meu comentário para Jonatas, eu também não entendo tudo o que postamos por aqui. Às vezes, nem mesmo o que eu própria posto. ;)

Anônimo disse...

Eu proponho uma tese pós -durkheiminiana:...o Homicídio Fraterno Auditivo ---Um carro de som tocando Axé em todas as alturas no ouvido do arruda et caterva, até a surdez total...deles..é claro

Cynthia disse...

Ou então o carro de som dos migolutianos da UFPE: "Vamos a Migolute!"