terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Judith Butler e a Colonização do Sexo pelo Gênero



Cynthia Lins Hamlin (UFPE)
Maria Betânia Ávila (SOS Corpo)

Este artigo é um desenvolvimento de algo postado aqui anteriormente sob o título Judith Butler: Drag Queen, Pensamento Crítico e Estratégia Política.

A obra de Judith Butler representa o ápice de um movimento, iniciado na década de 1980, do que poderíamos, na esteira de Habermas, chamar de colonização do sexo pelo gênero. De acordo com esta autora, as distinções sexuais devem ser percebidas como efeitos de gênero, isto é, como algo socialmente construído via discurso. Ao se enfatizar o caráter socialmente construído não apenas do gênero, mas também do sexo, o discurso é concebido como a fonte primária de poder, e projetos emancipatórios são freqüentemente reduzidos a processos de identificação e desidentificação o que, em última instância, pode levar a uma prática política individualista e voluntarista. Com base em uma ontologia realista, argumentamos que embora o discurso tenha um impacto causal na constituição dos sujeitos, esses sujeitos devem ser concebidos como agentes com poderes que também dizem respeito a propriedades materiais extra-discursivas, incluindo seus corpos. Neste sentido, a diferença sexual é percebida como parte integrante do tipo de agente que somos, o que coloca limites e possibilidades às políticas emancipatórias empreendidas.

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“Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Com esta afirmação, Simone de Beauvoir (1989) inaugura uma nova fase nos estudos acerca da desigualdade entre homens e mulheres, uma espécie de paradigma ou de programa de pesquisa cujo foco versa sobre a análise dos fatores sociais e culturais que subjazem àquela desigualdade. As décadas de 1960 e, em especial, de 1970, servem de palco para a desnaturalização da feminilidade e da sexualidade em geral, sendo que uma das principais ferramentas analíticas deste processo, especialmente na tradição de pesquisa anglo-saxã, é a distinção entre sexo e gênero. De um ponto de vista puramente conceitual, no entanto, Beauvoir tem pouco ou nada a ver com esta distinção.

Utilizado como sinônimo de sexo na literatura desde o século XV, é apenas na década de 1950 que o termo gênero perde sua conotação meramente gramatical (Haig, 2004) e adquire um contorno que o torna especialmente útil para a agenda de pesquisa dos estudos feministas e de mulheres disseminada a partir de Beauvoir. Inspirado pelos conceitos de status e de papel sexual desenvolvidos por Talcott Parsons, John Money introduz o termo “papel de gênero” em um artigo de 1955 para dar conta de “todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se revelar como tendo o status de menino ou de homem, menina ou mulher, respectivamente” (Money apud Haig, 2004: 90). Em 1966, refletindo acerca deste conceito, Money afirma ter importado o termo para a sexologia a fim de “tornar possível escrever sobre pessoas que chegavam ao consultório como homem ou como mulher, mas das quais não se podia afirmar que seu papel sexual, no sentido especificamente genital, era masculino ou feminino, na medida em que tinham tido uma história de defeito congênito dos órgãos sexuais” (Ibid: 91).

Inicialmente desenvolvido para lidar com situações de intersexualidade, o conceito de gênero mostrou-se frutífero para o programa de pesquisa feminista das décadas de 1960 e 1970 ao sugerir uma distinção entre o sexo biológico, caracterizado por critérios anatômicos, hormonais ou cromossômicos, e o gênero, relativo àquelas características socialmente construídas relativas a homens e mulheres, como papéis sociais, divisão do trabalho, características psicológicas, comportamentais etc. (Oudshoorn, 2000). Estavam lançadas as novas bases sobre as quais as relações entre o biológico e o social, o natural e o cultural, influenciavam-se mutuamente. Em uma concepção típica do período, Gayle Rubin (1975: 159) define o que denomina de “sistema sexo/gênero” como “o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”. Apesar de concepções como esta apontarem para um certo borramento de fronteiras entre o natural e o social/cultural, está pressuposta uma autonomia relativa das duas ordens em questão e, neste sentido, independentemente do peso causal atribuído pelos diferentes autores aos elementos biológicos ou sociais, a realidade objetiva de fatores destas duas ordens era tida como um dado.




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