A obra de Judith Butler representa o ápice de um movimento, iniciado na década de 1980, do que poderíamos, na esteira de Habermas, chamar de colonização do sexo pelo gênero. De acordo com esta autora, as distinções sexuais devem ser percebidas como efeitos de gênero, isto é, como algo socialmente construído via discurso. Ao se enfatizar o caráter socialmente construído não apenas do gênero, mas também do sexo, o discurso é concebido como a fonte primária de poder, e projetos emancipatórios são freqüentemente reduzidos a processos de identificação e desidentificação o que, em última instância, pode levar a uma prática política individualista e voluntarista. Com base em uma ontologia realista, argumentamos que embora o discurso tenha um impacto causal na constituição dos sujeitos, esses sujeitos devem ser concebidos como agentes com poderes que também dizem respeito a propriedades materiais extra-discursivas, incluindo seus corpos. Neste sentido, a diferença sexual é percebida como parte integrante do tipo de agente que somos, o que coloca limites e possibilidades às políticas emancipatórias empreendidas.
“Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Com esta afirmação, Simone de Beauvoir (1989) inaugura uma nova fase nos estudos acerca da desigualdade entre homens e mulheres, uma espécie de paradigma ou de programa de pesquisa cujo foco versa sobre a análise dos fatores sociais e culturais que subjazem àquela desigualdade. As décadas de 1960 e, em especial, de 1970, servem de palco para a desnaturalização da feminilidade e da sexualidade em geral, sendo que uma das principais ferramentas analíticas deste processo, especialmente na tradição de pesquisa anglo-saxã, é a distinção entre sexo e gênero. De um ponto de vista puramente conceitual, no entanto, Beauvoir tem pouco ou nada a ver com esta distinção.
Utilizado como sinônimo de sexo na literatura desde o século XV, é apenas na década de 1950 que o termo gênero perde sua conotação meramente gramatical (Haig, 2004) e adquire um contorno que o torna especialmente útil para a agenda de pesquisa dos estudos feministas e de mulheres disseminada a partir de Beauvoir. Inspirado pelos conceitos de status e de papel sexual desenvolvidos por Talcott Parsons, John Money introduz o termo “papel de gênero” em um artigo de 1955 para dar conta de “todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se revelar como tendo o status de menino ou de homem, menina ou mulher, respectivamente” (Money apud Haig, 2004: 90). Em 1966, refletindo acerca deste conceito, Money afirma ter importado o termo para a sexologia a fim de “tornar possível escrever sobre pessoas que chegavam ao consultório como homem ou como mulher, mas das quais não se podia afirmar que seu papel sexual, no sentido especificamente genital, era masculino ou feminino, na medida em que tinham tido uma história de defeito congênito dos órgãos sexuais” (Ibid: 91).
Inicialmente desenvolvido para lidar com situações de intersexualidade, o conceito de gênero mostrou-se frutífero para o programa de pesquisa feminista das décadas de 1960 e 1970 ao sugerir uma distinção entre o sexo biológico, caracterizado por critérios anatômicos, hormonais ou cromossômicos, e o gênero, relativo àquelas características socialmente construídas relativas a homens e mulheres, como papéis sociais, divisão do trabalho, características psicológicas, comportamentais etc. (Oudshoorn, 2000). Estavam lançadas as novas bases sobre as quais as relações entre o biológico e o social, o natural e o cultural, influenciavam-se mutuamente. Em uma concepção típica do período, Gayle Rubin (1975: 159) define o que denomina de “sistema sexo/gênero” como “o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”. Apesar de concepções como esta apontarem para um certo borramento de fronteiras entre o natural e o social/cultural, está pressuposta uma autonomia relativa das duas ordens em questão e, neste sentido, independentemente do peso causal atribuído pelos diferentes autores aos elementos biológicos ou sociais, a realidade objetiva de fatores destas duas ordens era tida como um dado.
Embora a diferença sexual fosse considerada real, e freqüentemente invocada para dar conta das condições de produção do gênero, ela era também tida como relativamente trivial, já que não podia dar conta dos traços de “feminilidade” e “masculinidade”, nem da opressão feminina. Por outro lado, as feministas de segunda onda da década de 1970 freqüentemente associavam a idéia de feminilidade (gênero) a ser mulher (sexo), na medida em que “mulher” era considerada uma base real para a solidariedade dado que fundamentada em interesses comum e/ou em uma natureza comum. Foi apenas a partir da década de 1980 que algumas autoras questionaram esta unidade, sob o argumento de que ela obscurecia as diferenças entre as mulheres, tornando o feminismo uma teoria de mulheres brancas e de classe média. O universalismo e o essencialismo começaram a ser contestados, gerando uma fragmentação e uma tensão sem precedentes na teoria feminista: se “mulher” era uma identidade fragmentada, então a categoria não mais poderia ser utilizada como base para a solidariedade política. A política do reconhecimento daquelas identidades subordinadas (não-brancas, não-classe média) tornou-se cada vez mais importante e, com ela, abriu-se espaço para a idéia de luta como situada de forma privilegiada na esfera discursiva (New, 2005), o que significa dizer, com base em movimentos de identificação e desidentificação.
Concomitante a isto, assim como ocorre em outras áreas da ciência, as fronteiras anteriormente estabelecidas entre o natural e o cultural sofrem um novo deslocamento, desta vez, numa espécie de colonização do primeiro pelo segundo, ou do sexo pelo gênero. Não é por acaso, por exemplo, que uma análise das principais bases de dados de citações de artigos científicos do mundo (o Science Citation Index, o Social Science Citation Index e o Arts & Humanities Citation Index) entre o período de 1945-2001 mostra que, a partir daquela década, o número de títulos de artigos contendo a palavra sexo declinou consideravelmente, enquanto que os títulos contendo “gênero” superaram em muito os primeiros, mesmo fora das ciências sociais (Haig, 2004). Este deslocamento refere-se, em parte, à crítica feminista da ciência operada por autoras como Ruth Bleier e Anne-Fausto Sterling, que demonstram como o uso inadequado da categoria sexo pela biologia possibilita que determinadas construções de gênero (por exemplo, a distinção entre homem ativo e mulher passiva com base na presença do Fator Determinante dos Testículos – FDT - no cromossomo Y), passem por fatos biológicos e não por efeitos de gênero, ou distinções culturais calcadas em linhas de poder (Kraus, 2000; 2005). Mais uma vez, as situações de intersexualidade têm se tornado o ponto de partida para o estabelecimento de um continuum sexual entre macho e fêmea e a partir do qual se questiona a existência do dimorfismo na natureza. Entre homem e mulher, macho e fêmea, uma variedade de “sexos” que abala a matriz binária dominante, sugerindo que o sexo é uma categoria tão instável e heterogênea quanto o gênero. De um ponto de vista mais geral, no entanto, o que estamos chamando aqui de colonização do sexo pelo gênero tem uma relação íntima e direta com o construtivismo, uma abordagem que tem privilegiado o discurso como forma social por excelência ao focar as condições de possibilidade da emergência de determinados objetos, conceitos, estratégias e mesmo sujeitos. Em outros termos, o foco recai na desconstrução, e não na reconstrução.
Uma das principais representantes desse movimento, Judith Butler propõe demonstrar que categorias de identidade como sexo e gênero são efeitos de instituições, práticas e discursos, e não a origem ou a causa destes últimos. Mais especificamente, tenta demonstrar que a relação que se estabeleceu entre sexo e gênero foi um efeito de duas instituições principais: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória, instituições que devem ser desestabilizadas caso se pretenda estabelecer uma política de gênero emancipatória (Butler, 2003). Neste sentido, Butler opera um deslocamento radical entre sexo e gênero (no sentido de que o gênero é concebido como absolutamente independente do sexo), em busca de uma outra concepção daquilo que Rubin Gayle denominou “sistema sexo/gênero”. Para ela, contrariamente a Gayle, a relação entre sexo é gênero é absolutamente contingente: o gênero pode se tornar uma espécie de “artifício flutuante”, com a conseqüência de que “homem” e “masculino” podem facilmente significar um corpo masculino ou feminino, e “mulher” e “feminino”, um corpo masculino ou feminino. Assim, enquanto Gayle de alguma forma “amarra” o gênero ao sexo ao pressupor a existência de “necessidades sexuais biológicas” (ainda que estas sejam socialmente transformadas), Butler implode todo e qualquer fundamento biológico e concentra-se nas formas como os atributos flutuantes de gênero são regulados, gerando padrões identitários relativamente estáveis, ou identidades de gênero inteligíveis. Partindo de uma perspectiva genealógica, Butler vai em busca das “condições de possibilidade” da emergência de determinados discursos ou formulações de sexo/gênero; dito de outra forma, daqueles elementos sociais/culturais que garantem a inteligibilidade de certas formulações do que seja “masculino” ou “feminino”, ao passo que impede outras (por torná-las inconcebíveis, ou impossibilidades lógicas, como a existência de outros sexos ou identidades de gênero) (Butler, 1993).
Ao focar o discurso, Butler não pretende negar a materialidade dos corpos, mas sugere que ela deve ser concebida como um efeito de poder dissimulado, como efeito de normas reguladoras heterossexistas ou da instituição da heterossexualidade compulsória. A divisão dos corpos entre masculinos e femininos é uma interpretação política desses corpos (não existem corpos sem marcadores sexuais) e o sexo é compreendido como uma categoria normativa, e não simplesmente descritiva, que produz, circunscreve e regula os corpos ao possibilitar ou impossibilitar determinadas identificações que, por seu turno, “produzem” corpos sexuados culturalmente inteligíveis (Butler, 1993). A relação entre sexo e gênero, ou mais especificamente a construção do sexo como um efeito de gênero, dá-se pela noção de performance, ou um conjunto de gestos desempenhados sob a superfície do corpo, mas que instituem as fronteiras desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. Em outras palavras, o sexo é materializado por meio da performatividade dos agentes sociais, inclusive por meio de práticas sexuais que “abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras do corpo (Butler, 2003: 190).
De uma perspectiva política, a performance adquire o papel central no processo de transformação. Partindo da definição usual de atos performativos de J. L. Austin (sentenças que, ao serem proferidas desempenham uma certa ação e exercem um poder coercitivo, como sentenças legais, declarações de propriedade etc), Butler (1993: 225) conclui que o “performativo é um domínio no qual o poder age como discurso”. Mas o poder do discurso é circunscrito: como mencionado acima, para que materialize seus efeitos ele deve estar em consonância com seu poder de circunscrever o domínio da inteligibilidade. Isto nem sempre ocorre. A força normativa da performatividade, ou o seu poder de estabelecer o que conta no domínio ontológico (corpos masculinos ou femininos, por exemplo), opera por meio da reiteração das normas e também por meio da exclusão (não há nada fora do dimorfismo, por exemplo). Assim, as identidades de sexo e gênero são concebidas como práticas e os sujeitos, como “efeitos de um discurso amarrado por regras” (Butler, 2003: 208). A capacidade de mudança reside no fato de que, embora as performances sejam consideradas como constitutivas do sujeito, este sujeito não é determinado pelas regras (assim como os corpos não são gerados pelos discursos). De fato, as repetições das regras via performance nunca são simples repetições, mas sempre geram uma espécie de excedente, pequenas variações que abalam os significados instituídos dessas normas, o que abre espaço para sua desestabilização e, em última instância, para o fim do binarismo que regula a heterossexualidade compulsória. A agência crítica está, portanto, intimamente ligada à possibilidade da desestabilização das normas a fim de que se possa rearticular os termos da inteligibilidade e da legitimidade simbólica via discursos políticos que mobilizem categorias de identidade. Isto é feito por meio de identificações e desidentificações que possam servir a objetivos políticos definidos, embora os marcadores de identidade não sejam considerados um pré-requisito para a participação política (Butler, 2004). Talvez fosse mesmo mais adequado afirmar que, no caso de Butler, é a desidentificação que possibilita uma transformação hegemônica dos horizontes que garantem a inteligibilidade. Isto porque as categorias politicamente disponíveis para a identificação restringem de antemão o jogo da hegemonia. No entanto, dado que a desidentificação não pode ser considerada um mero processo psíquico - o que “transformaria a psicanálise no ponto final da política” (Butler, 2000: 156), a importância da identidade é mantida na medida em que se faz necessário conhecer como determinadas formas de instabilidade se abrem dentro do campo político em virtude dos próprios processos de identificação. É por esta razão que a autora considera possível uma política feminista sem a existência de um sujeito “mulher” (mesmo no plural), uma concepção que, segudo ela, deve ser combatida na medida em que se apóia na heterossexualidade compulsória e em seus mecanismos de exclusão. O que não fica claro, no entanto, é como as trajetórias de identificação que possibilitam a viabilidade dos sujeitos políticos podem se converter naquilo que ela chama de “resistências desidentificatórias” (Ibid.), gerando a suspeita de que o processo ocorre, de fato, num nível individual. Colocando a questão de outra forma, o que, afinal de contas, possibilita a relativa resistência ou plasticidade das estruturas sociais e biológicas, tornando-as passíveis de serem transformadas pela agência humana?
O que parece faltar aqui é uma concepção mais robusta dessas estruturas do que uma simples referência à instituição da heterossexualidade compulsória. Algumas dessas estruturas são efetivamente extra-discursivas, no sentido de que estão localizadas em um nível ontológico distinto do cultural. Ainda que se possa aceitar que as fronteiras do corpo são, em algum sentido, discursivamente formadas, isso não dá conta daqueles elementos que estão, por assim dizer, fora do domínio discursivo. Parte do problema é que Butler, assim como a maioria dos pós-estruturalistas, não considera como real aquilo que esteja fora do domínio do discurso (para uma exceção importante, ver a noção lacaniana de Real e sua apropriação por Slavoy Zizek): o sexo, concebido como uma categoria natural, seria nada mais do que uma ficção “talvez uma fantasia, retroativamente instalada em um lugar pré-lingüístico ao qual não se tem acesso direto” (Butler, 2004: 5). É interessante, neste sentido, que freqüentemente a categoria sexo seja utilizada por ela de forma intercambiável com a de sexualidade, que é geralmente entendida como uma prática. O constrangimento que se impõe sobre estas práticas são, por seu turno, também da esfera discursiva, não havendo nada em nossos corpos que possa, em princípio, escapar a esta regra, ou pelo menos nada acerca do que se possa afirmar alguma coisa. Embora Butler reconheça a existência de um “excedente” da realidade em relação ao discurso (daí o subtítulo altamente ambíguo de um de seus livros, “sobre os limites discursivos do sexo”, o que deve ser compreendido não apenas no sentido dos limites do corpo impostos pelo discurso, mas também dos limites do discurso em relação ao sexo como referente), ela se nega a fazer quaisquer afirmações a respeito deste excedente: assim como o Real lacaniano, ele é não-tematizável. Nenhuma possibilidade, portanto, de justificar a existência extra-discursiva de algo por meio de observações (geralmente indiretas) dos efeitos deste objeto, ainda que não se saiba exatamente o que ele é.
Assim, pouco importa que nossos corpos “funcionem” independentemente do tipo de conhecimento que temos acerca deles, ou que diversas de nossas performances de gênero sejam restringidas (e também capacitadas) por esses limites não-discursivos. Não se trata, de acordo com a nossa perspectiva, de defender posições como a de Lacan, para quem “a inteligibilidade cultural requer a diferença sexual” (Lacan apud Butler, 2000: 150), mas de reconhecer que a diferença sexual assume um status (quase) transcendental, no sentido específico de que ela não apenas coloca limites em relação à plasticidade dos corpos, mas também que o tipo de constrangimento social e cultural relativo ao que ela chama performances (relativas ao gênero) é diferente daquele exercido pela anatomia, fisiologia etc., relativo ao sexo. Por exemplo, a identificação do corpo de um transexual pós-operado como feminino ou masculino é culturalmente contingente, mas qualquer política social relativa ao acesso a técnicas de modificação sexual deve levar em consideração as diferenças sexuais (cromossômicas, anatômicas, hormonais, corporais, enfim) para que seja eficaz. Existem determinados clusters de características manifestas associados ao sexo (timbre de voz, distribuição e quantidade de pelos corporais, presença de uma genitália com características especificas, massa muscular, distribuição de gordura etc) que, embora isoladamente não sejam distintivos dos sexos, tendem a aparecer juntos. E isso se deve à presença de determinados mecanismos causais que, embora possam não se manifestar devido a sua interação com outros mecanismos contravenientes (gerando situações de intersexualidade), devem ser levados em consideração como algo distinto das interpretações acerca das propriedades desses mecanismos.
Assim, por exemplo, embora a presença ou ausência do hormônio FDT (Fator Determinante dos Testículos) não possa ser considerada uma causa de comportamentos ativos ou passivos, ou seja, que a descrição dos “poderes causais” deste hormônio efetuada até o momento seja inadequada, sua presença ou ausência, assim como sua interação com outros elementos causais da esfera biológica, terá conseqüências distintas. O problema real que se coloca não diz respeito apenas à adequação de nossas descrições ou à relação de adequação empírica entre o signo e seu referente, mas, de maneira muito mais profunda, à consideração de um domínio ontológico distinto de um domínio epistemológico (discursivo). É possível, por exemplo, imaginar um mundo sem seres humanos e, portanto, sem discurso, assim como a existência de doenças como o câncer antes que elas fossem descobertas e concebidas.
É verdade que Butler, assim como outros pós-estruturalistas (cf. Laclau e Bhaskar, 1997), não considera que os discursos constituem os objetos naturais em um sentido forte. Em uma entrevista originalmente publicada em 1998, Butler (apud Prins e Meijer, 2002:157) afirma que se enfurece com “as reivindicações ontológicas de que códigos de legitimidade constroem nossos corpos no mundo”, mas ela não parece muito preocupada em tentar determinar quais são os limites (materiais) para a construtividade. Isso não seria um problema em si mesmo se ela não estivesse preocupada em gerar mais do que um projeto epistemológico (ou, mais apropriadamente, desconstrutivista). Existe, na verdade, um projeto ontológico em sua obra, mas ele é marcado, como a própria Butler reconhece (Ibid.: 160), por uma série de contradições performativas: ao mesmo tempo que ela afirma que existem determinados tipos de corpos, defende que eles não têm “reivindicação ontológica”.
Tal contradição performativa é entendida por ela como um projeto essencialmente político: uma forma de instituir novas ontologias (por exemplo, determinados tipos de corpos considerados abjetos e, por esta razão, não inteligíveis de acordo com as normas culturais vigentes). Como Frédéric Vandenberghe já disse em algum lugar desse blog, ocorre que o social não pode ser reduzido ao político. A isso, acrescentaríamos que as relações entre os objetos (incluindo as pessoas) não são meras relações de poder (no sentido usual do termo) e que qualquer política que se pretenda minimamente eficaz deve levar isso em consideração. De fato, para que a “existência” de determinados corpos considerados abjetos possa ser defendida num projeto político, como quer Butler, não basta apenas postular sua existência: é preciso justificar as bases segundo as quais essa crença ontológica pode ser sustentada e considerada, de alguma forma, mais adequada do que outras concepções acerca do que o mundo é. E isso Butler se recusa a justificar: seus pressupostos, ao contrário daqueles cuja ontologia desconstrói, são mantidos implícitos. Em nossa visão, a construção de discursos contra-hegemônicos implica o estabelecimento de uma ontologia que diga respeito aos mecanismos de diversos níveis da realidade, como o nível biológico, o psicológico, o cultural, social etc.
Uma explicação típica da relação sexo/gênero concebida em termos da interação dos mecanismos de diversos níveis da realidade é a efetuada por Caroline New (2005: 9-10) para dar conta da bandagem de pés das mulheres chinesas entre o século X e meados do século XX. Pode-se começar fazendo referência a alguns elementos discursivos, como o fato de o imperador Li Yu haver ordenado a suas concubinas amarrassem seus pés em um determinado ponto da história e, em outro momento, Mao Tse Tung ter proibido a prática. Mas para que as demandas de um homem (se é que elas de fato existiram) possam ter se tornado uma moda que findou por se transformar em uma instituição social durável, muitas coisas devem tê-la tornado possível:
No nível dos mecanismos biológicos, o dimorfismo sexual deve se manifestar de tal forma que as mulheres tendem a ser menores do que os homens (ou teria que haver outra origem contingente para a significância simbólica desta prática). Os pés humanos devem apresentar determinados poderes e possibilidades, de forma que se a maioria dos artelhos fossem quebrados e envolvidos em bandagens quando a criança tivesse cerca de três anos de idade, o pé permaneceria pequeno. [...] No nível psicológico, a sexualidade humana deve apresentar tal maleabilidade cultural que um andar com passos diminutos possa ser imbuído de significado erótico. Em particular, as diferenças que expressam ou simbolizam as diferenças sexuais e de gênero (tais como o exagero do tamanho relativamente pequeno dos pés femininos) teriam que ter a tendência a causar excitação. No nível cultural, crenças acerca da diferença sexual teriam que legitimar tal prática, e associações simbólicas teriam que torná-la inteligível e capaz de ser sexualmente carregada. No nível social, a estrutura de classes, incluindo a autoridade, poder papel simbólico do imperador, deveriam capacitá-lo a lançar modas. As relações de poder entre homens e mulheres, adultos e crianças, teriam que ser tais que as mulheres da família desempenhariam o ato inicial (“caso contrário, nenhum homem bom vai querê-las”) e a criança e as diversas testemunha permiti-lo-iam. A economia deveria possibilitar a incapacitação da maioria das mulheres de classe média e alta. Estes e muitos outros mecanismos em diversos níveis teriam que exercer seus poderes emergentes de formas particulares e com base em relações particulares entre si para que esta instituição possa ter se desenvolvido e perdurado.
O exemplo possibilita perceber que a diferença sexual não causa, por si só, nem as diferenças nem as desigualdades de gênero que a teoria feminista se propõe a explicar e transcender. No entanto, deixa claro que qualquer projeto emancipatório que se pretenda eficaz deve levar em consideração os limites e possibilidades efetivamente colocados pelos mecanismos relativos aos diversos níveis da realidade, sendo um deles o biológico.
Bibliografia
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