sábado, 20 de fevereiro de 2010

Terminar a Ditadura


Monumento Tortura Nunca Mais, Rua da Aurora, Recife. Projeto de autoria de Eric Perman, Albérico Paes Barreto, Luiz Augusto Rangel e Demetrio Albuquerque.

Luciano Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE)

Para Celma Tavares, Roberto Efrem Filho, José Luiz Delgado e Silke Weber
pelas concordâncias, mas também pelas eventuais discordâncias.


A ditadura brasileira, que começou como “revolução”, mudou para “regime militar” e agora é tratada pelo nome que verdadeiramente lhe cabe, continua, como uma alma penada, assombrando a vida política do país. Basta ver o que acontece agora com III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e toda a celeuma que têm provocado os dispositivos relativos à memória dos anos de chumbo no que eles têm de mais explosivo: os crimes cometidos pelos torturadores e o destino dos desaparecidos. Produzido a partir de seminários realizados em todo o país com forte participação das chamadas ONGs - Organizações não Governamentais, o Plano reflete razoavelmente o clima de militância que percorre esses eventos, nos quais palavras de ordem costumam receber adesões muitas vezes automáticas e, assim, deslizam sem maiores ponderações para as propostas finais. Ao serem chanceladas pela Presidência da República e se tornarem políticas de governo, podem levantar questões que a sociedade como um todo tem legitimidade para discutir. É o que faço.

No caso, o que me interessa é a questão das violações de direitos humanos durante o regime militar e o tratamento que o Plano propõe para esse candente assunto. Nesse itinerário, porém, expandirei o arco de minhas reflexões para ir além do Plano, até porque considero que ele é apenas mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Mas, ao contrário do que pode sugerir a observação acima acerca dos esqueletos ainda trancados no armário do regime, já não partilho uma visão maniqueísta desse assunto. Passados 25 anos da entrega do poder aos civis, é mais do que tempo de tratarmos a ditadura militar como um objeto irremovível da nossa história. Isso está a exigir uma atitude mais objetiva e serena, e menos militante, dos que se dispõem a pensá-la. Que há exigências inafastáveis, há. O destino dos desaparecidos é a mais importante delas. Isso dito, entretanto, creio que “o direito à verdade histórica” - para usar os termos do Plano - precisa considerar, e não ter medo de enfrentá-los, certos fatos daqueles anos turvos que a nossa boa consciência de derrotados na “guerra suja” prefere esquecer, bem como rever certos mitos envolvendo a luta armada que se tornaram lugares comuns e que, talvez por receio de sermos confundidos com certos órgãos da grande imprensa aplicados na arte do desprezo a tudo que cheire a esquerda - a Veja com sua arrogância habitual é um bom exemplo disso -, não ousamos questionar. Precisamos fazê-lo para, como quer o Plano, “promover a reconciliação nacional”. O que se segue é uma pequena contribuição nesse sentido.

Relembrando rapidamente, o que irritou particularmente os militares foi a Diretriz 23 do Plano, que previa “a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil”. Como sempre, a queixa castrense reporta-se ao que seria a parcialidade do documento. No Brasil teria havido uma guerra, com vítimas dos dois lados. E se um lado praticou a tortura, o outro praticou terrorismo, assaltos, seqüestros etc. Nesse caso, por que a “apuração” apenas do que fez um dos lados? Depois da celeuma provocada pela reação de alto coturno, o presidente Lula assinou decreto mudando a redação: eliminou-se a menção ao “contexto da repressão política” e ficou a previsão genérica de “examinar as violações de direitos humanos praticadas no período”. Com isso, fica aberta a possibilidade de se esclarecerem também os atos praticados pela esquerda armada, que seriam igualmente violações de direitos humanos. A emenda não resolve o soneto.


Um comentário:

Tâmara disse...

Luciano,
Raros de convicções e raros de responsabilidades, os caros congressistas - é uma triste verdade. Bom demais seu texto e muito oportuno também, no momento. No começo fiquei intrigada e não consigo concordar muito que os militares brasileiros tiveram o "opro'brio" como efeito inesperado de sua guerra suja: é o "opro'brio" que me parece exagerado. Mas a argumentação de seu texto é muito séria e bem fundamentada. A distinção que você faz com a dupla weberiana ética da responsabilidade/ética da convicção são de grande valia. O sentido da ação é um horizonte muito mais interessante do que as tecnicalidades juri'dicas ou a pura adesão militante para tratar de sujeito tão grave. Sem falar em sua contextualização da Lei da Anistia: sem consideração do contexto histo'rico, acho que tanto o ser (terreno da sociologia, da histo'ria, da ciência poli'tica)como o dever ser (terreno da tomada de posição, da ação politica) ficam seriamente prejudicados. Seu carnaval 2010 foi bacana demais! Abraço, Tâmara