Prof. Adjunto do DCS-UFS; Doutor pelo PPGS da UFPE
Por estes dias recebi de uma orientanda uma mensagem com imagens cômicas. O título da mesma era “se nenhum desses resolver seus problemas... Ninguém resolverá!!!”. O conteúdo trazia algumas ofertas de serviços religiosos e alguns testemunhos. Primeiramente a escrita de alguns destes documentos necessitam de uma revisão textual, pois incomodariam qualquer professor de português. Como não é este o propósito deste pequeno texto, peço licença aos puristas da nossa língua e tentarei uma leitura noutra perspectiva.
Na condição de especialista em Sociologia da Religião posso tentar estabelecer, à luz de alguns clássicos e contemporâneos desta seara sociológica, uma leitura interpretativa destes serviços ofertados e experiências relatadas. Isso não implica uma leitura relativista. A partir de uma postura sociológica buscarei compreender algo praticamente “impossível”, que, como diria Émile Durkheim ao interpretar o fenômeno religioso, estaríamos ultrapassando o alcance de nosso entendimento, o mistério, o incognoscível, o incompreensível (DURKHEIM, 1996).
Seguindo nesta linha, poderíamos entender estes exemplos como diferentes da experiência humana. Este sem dúvida é um caráter comum aos sistemas religiosos e se constitui numa primeira interpretação que podemos destacar em relação aos quatro exemplos expostos. Numa primeira imagem um agente religioso intitulado Pai Ambrósio oferece seus serviços para resolução de problemas amorosos, profissionais, de saúde (“até viadagem”), qualquer tipo de vício, além de encontrar cão perdido e tirar unha encravada e fimose. Noutro caso, Pai Arnápio disponibiliza seus serviços para acabar com o sofrimento dos clientes benzendo cobreiro, tirando bicho de pé e unha encravada; batizando filho de mãe solteira; resgatando FGTS; cancelando cartão; tirando “demôneo”; curando “congestã”, “afita” e “hemorróida”; trazendo marido; descobrindo corno. Ao cliente faz necessário apenas “vir com fé”. Os dois exemplos descritos podem ser analisados a partir de uma das tendências que se constata no campo religioso brasileiro. Parte significativa da população utiliza serviços religiosos de um dos tipos ideais de agentes presentes neste campo: o feiticeiro. Neste aspecto, tanto Pai Ambrósio quanto Pai Arnápio respondem a demandas parciais e imediatas, lançando mão do discurso como se fosse uma técnica de cura do corpo entre outras e não como um instrumento de poder simbólico de prédica ou de “cura das almas” (BOURDIEU, 1998).
Os trabalhos ofertados pelos feiticeiros focalizam problemas específicos, tais como os oferecidos pelos dois “pais”. Ambos privilegiam necessidades concretas das pessoas e organizam a “oferta” de acordo com a “demanda”. Atualmente as religiões e agentes que fazem “sucesso” são aqueles que se adaptam às necessidades e desejos de um público alvo. Por outro lado, ao usuário não se faz necessário um vínculo comunitário ou atrelamento moral e estariam associadas a um auto-consumo religioso (BOURDIEU, op cit). Possivelmente entre os usuários destes serviços há uma distancia da noção de “obrigação” fixada pela instituição e esta se reorganiza em termos de “imperativo interior”, de “necessidade” e de “escolha pessoal”. Esta valorização da autonomia da escolha praticante em relação ao constrangimento institucional é também o que permite aos interessados, neste caso, “jogarem com a norma” (HERVIEU-LÉGER, 2005). Deste modo, é possível que entre os clientes atendidos por Pai Arnápio e Pai Ambrósio estejam católicos, evangélicos, espíritas, entre outros.
Os dois exemplos subseqüentes são do Profeta Luís Claudio e do Pastor Herculano. Aqui temos dois casos de testemunhos vinculados a modelos mais institucionalizados de sistemas religiosos. Em relação ao primeiro, podemos entendê-lo como uma notável manifestação de conversão. O anúncio, inclusive, destaca como se deu esta mudança a partir da superação de uma série de “dificuldades”: ex-travesti, ex-presidiário, ex-bruxo, ex-portador do vírus da AIDS. Sua escolha individual, na qual se exprime ao mais alto nível a autonomia do sujeito crente, levou o citado profeta a uma “nova vida”. Talvez uma entrevista com o próprio pudesse nos fornecer mais detalhes deste processo. Mas, é possível que sua conversão esteja associada a três modalidades: 1) o indivíduo que “muda de religião”, seja porque rejeita uma identidade herdada ou assumida para substituir por uma nova, seja porque abandona uma identidade religiosa imposta; 2) o indivíduo que nunca tendo pertencido a qualquer tradição religiosa e descobre aquela em se reconhece e à qual decide finalmente agregar-se, também denominado de “pesquisador espiritual”; 3) indivíduo “refiliado”, “convertido do interior”: aquele que descobre ou reconhece uma identidade religiosa até então formal, ou vivida de forma mínima, de maneira puramente conformista (HERVIEU-LÉGER, 2005).
Na segunda imagem uma igreja evangélica anuncia num culto de domingo a presença de um pastor “morto após uma facada testemunhando” e “agradecendo a Deus pelo milagre”. Em ambos os casos o relato que cada convertido dá ao grupo de sua própria experiência e o reconhecimento que o mesmo lhe traz de volta criam um laço muito forte entre a comunidade e o indivíduo, engajamento do corpo na oração, manifestação física da proximidade comunitária e intensidade afetiva das relações entre os membros (HERVIU-LÉGER, 1997).
Em todos estes quatros exemplos há um esforço de manter-se o máximo tempo num universo sagrado. Evidenciam-se situações de definição e delimitação de sacralidades, isto é, de fatos sagrados. Estas manifestações seriam na leitura dos crentes hierofanias e existem e se manifestam em diversos setores da vida, pressupondo uma escolha, uma nítida separação do objeto hierofânico relativamente ao mundo restante que o rodeia (ELIADE, 2001). Por mais absurdo que nos possa parecer, existem evidentemente pessoas que acreditam nestes fenômenos. Isso, sem dúvida, é o traço mais importante ao Sociólogo da Religião. É preciso, deste modo, invocar uma das célebres lições de um dos fundadores desta área sociológica: não há religiões falsas, todas são verdadeiras a seu modo e correspondem de maneiras diferentes a condições dadas de existência humana (DURKHEIM, op cit).
A outra lição que podemos adotar é que para existirem, as religiões necessitam dos seres humanos (DURKHEIM, op cit). Necessitam, sobretudo, de um grupo de fiéis que se sentem tocados por seus agentes e bens simbólicos ofertados. Nesse aspecto, todas as teodicéias são sociodicéias, pois os universos religiosos são construídos e mantidos socialmente (BOURDIEU, op cit). Essa base social é denominada de “estrutura de plausibilidade”. A realidade dos mundos de Pai Ambrósio, do Pai Arnápio, do profeta Luís Claudio e do pastor Herculano dependem da presença de estruturas sociais na qual essa realidade apareça como óbvia e em que sucessivas gerações de indivíduos sejam socializados de tal modo que esse mundo será real para elas. Como diria Pierre Bourdieu, a religião tem o poder de absolutizar o relativo e legitimar o arbitrário (BOURDIEU, op cit).
Quando as estruturas de plausibilidades da religião perdem a sua integridade ou a sua continuidade, seus mundos começam a vacilar e sua realidade deixa de se impor como verdade evidente. Quanto mais firme a estrutura de plausibilidade, mais firme o mundo “baseado” nela. Ao contrário, quanto menos firme se torna, a estrutura de plausibilidade, mais aguda se tornará a necessidade das legitimações para a manutenção do mundo. Isto pode ser exemplificado em algumas mudanças constatadas nos últimos censos demográficos (1991, 2000) quando se verifica a diminuição dos filiados ao catolicismo e o aumento dos evangélicos e dos “sem religião”. É importante que se destaque que parte significativa destas duas últimas tipologias é composta por fiéis que se batizam no catolicismo, estão casando nas igrejas evangélicas ou não freqüentando nenhuma religião institucionalizada. Para estes as estruturas de plausibilidade do catolicismo não atendem mais suas expectativas, não conseguem lhe dizer algo “significativo”. Cada vez mais a escolha é um imperativo (BERGER, 1985). Deste modo, a legitimidade quanto à eficácia dos serviços prestados, bens simbólicos de salvação ofertados e testemunhos relatados estão associados à capacidade destes em construírem e manterem um mundo.
De fato, como observador exterior, não há como não rir dos serviços e experiências religiosas relatados. A princípio eles nos levam a um primeiro julgamento quanto à honestidade dos agentes religiosos ali envolvidos. Evidentemente, uma interpretação racional colocaria em xeque a possibilidade de uma mulher “sem útero” ter filhos e de um pastor que “morreu de facadas” testemunharem sua experiência milagrosa aos fiéis num culto evangélico. Lembro, inclusive, que Antônio Flávio Pierruci escreveu num polêmico artigo publicado em 1996 em que se discutia a possibilidade dos fiéis acionassem o Código de Defesa do Consumidor “no caso de se sentirem lesados por algum pastor, bispo, padre, pai de santo ou guru, poder denunciar seus incompetentes médicos espirituais por fraude, impostura, trapaça, danos morais quando não físicos, coação, violência psicológica, lavagem cerebral, além de sonegação fiscal e outros crimes contra a economia” (PIERRUCI, 1996: 10).
Bem, na condição de pesquisador do fenômeno religioso não me cabe a averiguação das verdades e falsidades das experiências aqui analisadas. Isso, inclusive, ultrapassa a minha condição de cientista social. Penso que ao enfocarmos os fenômenos religiosos devemos assumir uma visão mais ampla, cultivando a imaginação, libertando-nos da imediaticidade das circunstâncias pessoais e apresentando processos religiosos em contextos mais amplos. A imaginação sociológica permitirá que pensemos fora das nossas rotinas familiares, investigando as conexões entre o que a sociedade faz de nós e o que fazemos de nós mesmos. Possibilita, sobretudo, não o julgamento das crenças, mas a compreensão/interpretação de sua eficácia social. Penso que outros profissionais poderão analisar de forma mais competente a eficácia dos resultados e a veracidade dos processos relatados. Se quiserem, por exemplo, podem chamar até o padre Quevedo – sacerdote católico e parapsicólogo que ficou famoso por se apresentar em diversos programas televisivos desvendando supostos charlatanismos. Não sei se seus julgamentos seriam imparciais.
Encaminhei a mensagem recebida a um amigo que está concluindo tese de doutorado em Sociologia. Também é um pesquisador do fenômeno religioso. Imediatamente o mesmo perguntou se sabia de alguém que atendesse no auxílio religioso à elaboração de uma tese. Ainda não encontrei. Quem souber, por favor, entre em contato, pois considerando as tensões e dificuldades para se concluir uma tese, não vão faltar clientes.
Referências
BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. A economia das trocas simbólicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 27-78.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Lisboa: Gradiva, 2005.
_____. Representam os surtos emocionais contemporâneos o fim da secularização ou o fim da religião? Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, agosto 1997, p. 31-47.
PIERRUCI, Antônio Flávio. “Liberdade de cultos na sociedade de serviços: em defesa do consumidor religioso”. Novos Estudos CEBRAP. N. 44, mar. 1996, p. 03-11.
5 comentários:
Ei, Péricles, seja bem-vindo ao Cazzo! Ainda não tive tempo de ler seu texto, mas pelo jeitão dele, vi que você está por dentro do mercado de oferta de mandingas e congêneres.
Dava pra me indicar alguém capaz de um sortilégio poderoso contra certas organizações burocráticas ligadas às Universidades??? E também alguém que cure TPM, exaustão e bursite por LER. Um massagista também serve.
beijão
Péricles,
Fico feliz em deixar de ser a u'nica representante do DCS/UFS a colaborar com o blog de nossos colegas mezzo pernambuco-mezzo parai'ba. Estava quase passando da hora!
E vou colocar uma du'vida que ficou com a leitura de seu texto. Se bem entendi, você trata de dois tipos de expressão religiosa - o "feiticeiro", de auto-consumo religioso;o "modelo mais institucionalizado". Depois, você vai explicar o conceito de estrutura de plausibilidade que, fundamentando um mundo religioso, sera' o critério do grau de legitimidade dos seus serviços e bens simbo'licos. Então, considerando que o modelo do "feiticeiro" é pouco institucionalizado (seus clientes podem pertencer a mundos religiosos diferentes)e que fundamenta-se no auto-consumo e não no atrelamento moral (tanto que cato'licos, evangélicos, espi'ritas, etc., podem consumir), pergunto: eu poderia entender que o conceito de estrutura de plausibilidade é menos operacional para a ana'lise dos mecanismos de legitimação das pra'ticas feiticeiras? Abraço, Tâmara
Prezada Tâmara,
agradeço pelas felicitações. Segue sua resposta, pelo menos uma tentativa. Quando adoto o conceito de feiticeiro estou utilizando uma das tipologias formuladas por Max Weber e retomadas por Pierre Bourdieu. Na taxonomia de Weber existem três tipos ideias de atores religiosos: o sacerdote, muito ligado a instituição social; o profeta, que em muitos casos seria um tipo que questiona a religião e a revoluciona; o mágico ou feiticeiro, um tipo free-lancer religioso que não necessariamente estaria vinculado institucionalmente a um único sistema religioso. Tanto o mundo construído e os serviços oferecidos pelos feiticeiros podem ser compreendidos a partir do conceito de plausibilidade. Pensemos, por exemplo, naquele célebre texto de Claude Levi-Strauss sobre a magia e feiticeiro. Obviamente o feitiço terá efeito apenas para aqueles que acreditam nele. Deste modo, mesmo entre aqueles que não estariam vinculados institucionalmente os acontecimentos religiosos (hierofanias) e os serviços ofertados só terão eficácia se forem considerados legitimados. Como, por exemplo, acreditar na capacidade mágica de Pai Arnápio ou Pai Ambrósio significa estar imbuído dos elementos que estes nos apresentam para construção do mundo.
Beijos
Prezada Cynthia, agradeço pelas felicitações. Ainda não encontrei um profissional da religião que resolva os problemas relatados. Penso que seria uma boa pesquisa. Acho que o massagista é mais fácil.
Beijos.
Não precisa mais, Péricles. Roubei a acupunturista de Jonatas que, além de ótima, prefere torturar a coordenadora a um pobre professor romântico... Existe justiça, afinal!
Cynthia
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