Caspar David Friedrich; Die Winterreise (ca. 1827)
Jonatas Ferreira
“...Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido”.
(Rilke, Elegias de Duíno
“Primeira elegia; tradução: Dora Ferreira da Silva)
“Como é diferente se abandonamos a possibilidade de explicar a natureza e tomamos essa impossibilidade de compreeneder como um princípio de julgamento”.
(Schiller, On the Sublime)
Sempre gostei muitíssimo das Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke, sobretudo a Primeira Elegia, de onde tomei emprestada uma das epígrafes ao presente texto. “Todo anjo é terrível” é um aparente paradoxo e, ao mesmo tempo, algo maravilhosamente dramático de ser dito. Para quem anjos são terríveis senão para aquele que constata seu desamparo diante de um mundo excessivamente definido, uma realidade excessivamente racionalizada? Para ele, ou para ela, também o belo é agora terrível, pois desconfia que este seja um sentimento de certo modo impossível – como os anjos de Rilke que trafegam entre nós sem distinguir muito bem entre vivos e mortos, o belo já não nos é plenamente visível. Na obra kantiana, na Crítica do Julgamento, mais precisamente, uma constatação muito próxima àquela que nos oferece Rilke é apresentada na passagem da Analítica do Belo para a Analítica do Sublime. Falemos um pouco sobre essa obra e permitam-me um pequeno e, espero, útil excurso em minha exposição.
Como é bem conhecido, nesta terceira Crítica Kant propõe investigar um problema que havia ficado aberto na Crítica da Razão Pura, nomeadamente, entender como conseguimos realizar julgamentos tão simples quanto: “Isto é um jarro”, “O céu está azul” etc. Tomemos a primeira dessas frases. Como aplicamos o conceito de “jarro” a um caso particular, isto é, a “este jarro” de modo a juntar tal conceito e tal intuição sensível? A resposta dada na primeira Crítica não solucionava exatamente o problema, ou seja, pensar que dispomos de um esquema do que seja essencialmente um jarro em nossa cabeça de modo a poder adequar conceito e realidade sensível é apenas adiar a dificuldade. A questão se recoloca quando nos perguntamos: e como adequamos tal esquema, supondo que ele exista e que deva dar conta de todo e qualquer jarro possível, ao caso particular: este jarro? A estratégia adotada na primeria Crítica corresponde à definição de um tipo de julgamento que Kant chama de determinativo (faço aqui uma tradução direta de minhas referências inglesas; não sei como em português isso está traduzido, talvez seja assim mesmo). Trata-se ali de adequar casos particulares a regras e vice-versa. Por insuficiente, como vimos acima com a questão do jarro, essa maneira de pensar a questão do julgamento é agora abandonada por Kant na Crítica do Julgamento.
Se a compreensão de um ato tão simples como o de afirmar que tal coisa é um jarro, cadeira etc. resulta em aporias insuperáveis, é porque um momento epistemológico mais fundamental deve ser procurado. E é esse momento que a Crítica do Julgamento busca. Trata-se ali de compreender a produção de julgamentos reflexivos, ou seja, julgamentos que produzimos quando uma regra, um conceito, ainda não podem ser definidos. A capacidade de formular um problema dessa magnitude e especificidade marca a modernidade do pensamento kantiano. O mundo em que julgamentos determinativos não precisam ser problematizados epistemologicamente é um mundo cuja própria estabilidade admite que se cogite algo que soa como uma aberração: a existência de julgamentos em que uma regra, um conceito não é ainda dado.
Para Kant, entretanto, o problema do julgamento é fundamentalmente colocado precisamente ao considerarmos o ato de julgar de maneira reflexiva, isto é, julgar na pressuposição de que um princípio ausente e que deve permanecer como tal. A justificação filosófica de julgamentos reflexivos estéticos está intimamente relacionada com o problema a legitimação de julgamentos em geral, pois, uma vez solucionadas as novas dificuldades que ela implica, já não precisaríamos encarar como aporia a compatibilização de conceitos e intuições sensíveis. Ou seja, encontrar uma área, categoria comum que possibilitasse resolver essa antinomia entre racionalismo (e suas regras do pensamento) e empirismo (e sua ênfase na realidade sensível), como ele havia tentado na Crítica da Razão Pura passaria a ser então uma tarefa de segunda ordem ou mesmo desnecessária.
Ao julgar algo belo, por exemplo, nós afirmamos um gosto que não pode ser derivado de conceitos a priori do entendimento, mas que nos é fornecido pela reflexão. Esta deve então fornecer um tipo particular de 'conceito' “mediante o qual nós não conhecemos propriamente algo mas que serve como regra para o próprio poder de julgar – mas não como uma regra objetiva, ao qual ele poderia adptar seu julgamento, posto que então nós precisaríamos de um outro poder de julgamento de modo a decidir se o julgamento é um caso daquela regra ou não” (Kant, 1987, p. 6). Apesar de julgamentos estéticos dizerem pouco sobre a cognição das coisas, eles são considerados agora “propedêuticos para toda a filosofia”, quer dizer, “para a crítica do sujeito que julga e seu poder de cognição na medida em que esses são capazes de [ter] princípios a priori” (Kant, 1987, p. 35).
When pleasure is connected with mere apprehension (apprehensio) of the form of an object of intuition, and we do not refer the apprehension to a concept so as to give rise to determinate cognition, then we refer the presentation not to the object but solely to the subject; and the pleasure cannot express anything other than the object’s being commensurate with the cognitive powers that are, and insofar as they are, brought into play when we judge reflectively, and hence [express] merely a subjectively formal purposiveness of the object. For this apprehension of forms by the imagination could never occur if reflective judgement did not compare them, even if unintentionally, at least with its ability [in general] to refer intuitions to concepts. (Kant, 1987:29)
Mais uma vez: a teoria estética apresentada na terceira Crítica representa uma mudança na compreensão kantiana daquilo que constitui a técnica geral do julgamento, isto é, do problema de subsumir casos particulares a regras universais para a “procura de uma analogia e proporção em meio a pluralidade” (Caygill, 1989, p. 302). Em lugar de orientar-se pela violência da regra, da lei, que não pode ser epistemologicamente justificada, Kant acena com a promessa do prazer, com a promessa do belo. O ato de julgar deve ser pensado como uma arte pois ele não procura dissercar ou submeter seu objeto, ele não sonha em se confundir com a lei, ele não “impõe harmonia” (como o faz a faculdade de entendimento), mas tenta experienciar essa harmonia que deve existir entre a imaginação e nossa capacidade de criar conceitos através do jogo livre de nossas faculdades. E aquilo que tal ato nos proporciona é a manifestação de sua essência na própria tentativa de julgar. Essa essência é a possibilidade de vivenciar harmonia entre forma e imaginação – um sentimento de prazer que diz respeito a algo aquém ou além do entendimento e da razão. A 'dedução' de julgamentos reflexivos seriam então a busca de uma harmonia entre nossas faculdades e entre essas e a natureza. Essa é a promessa do belo: vivenciar o mundo a partir de um sentimento livre de harmonia, proporção e ordem. Tal é a origem do prazer a que esse sentimento dá lugar.
A possibilidade de encontrar uma perspectiva de harmonia e proporção independente de garantias transcendentais inscreve a formulação kantiana acerca do sentimento do belo dentro de um contexto moderno. Independentemente do gesto oposto que ele elaborará na Analítica do Sublime, sua tentativa já informa o moderno ao compreensão uma dimensão da experiência humana no mundo que é essencialmente precária na exata medida que abandona tais garantias. A essa fonte, o moderno voltará renovadamente com a esperança de encontrar alguma alternativa ou paliativo a esse sentimento de derrelição que é antes de tudo historicamente determinado. Mas as últimas consequências daquilo que já está implicitamente posto na Analítica do Belo só serão desenvolvidas mais adiante, isto é, na Analítica do Sublime. Aquilo que Kant já observa aqui é de considerável importância e seriedade e só pode ser propriamente apreciado com propriedade pelo gesto que mina as promessas do belo, isto é, apenas por suas elaborações filosóficas em torno do sublime. Ali ele afirmará que o ideal de proporção e harmonia que fundam o belo é determinado pela razão e que a utopia que a razão (um mundo da harmonia e da proporção) determina é impossível quando analisamos a desproporção que estrutura nossa relação com o mundo.
A passagem do belo para o sublime em Kant coloca para a arte ocidental a seguinte questão: seria o prazer o princípio estético mais elevado? Essa indagação simples revela a profunda transformação de uma sociedade na qual as relações entre os seres humanos entre si e entre esses e a natureza estão mudando radicalmente. De que outra forma a provocação artística que marca o modernismo ganharia espaço senão quando essa questão é levada a sério? Apenas nesse contexto a reflexão aparece como um problema que não pode ser solucionado por regras do entendimento ou da razão. Kant é sensível à precariedade, ao sentimento de derrelição que marcará a relação do ser humano com um mundo submetido a grandes transformações políticas, econômicas, políticas, culturais. A harmonia do belo já não tem aqui a última palavra. O sacrifício do belo representa, na obra kantiana, a imolação de um ideal de sociabilidade baseada na proporcionalidade, na ordem e na contemplação.
Esse sacrifício inaugura o moderno como espaço de desproporção.
“O belo e o sublime são similares em alguns sentidos”. Ambos são julgamentos estéticos, eles não determinados por uma sensação, com o sabor agradável que encontramos em uma comida, ou por conceitos “como acontece com o nosso gostar do bem” (Kant, 1987, p. 97). A transição da Analítica do Belo para a Analítica do Sublime, todavia, é marcada por contrastes. Enquanto a apresentação de um 'objeto' do ponto de vista do belo nos remete a temas como forma, limitação [boundedness] desse objeto, o sublime apresenta-o sob a forma de uma totalidade ilimitada, da própria ausência de forma. O belo é um conceito indeterminado do entendimento, enquanto que o sublime é um conceito indeterminado da razão. O sentimento do belo nos remete ao sentimento da “vida sendo expandida”, enquanto que no sublime experienciamos “uma inibição de nossas forças vitais acompanhada imediatamente por um bem mais forte extravasamento destas” (Kant, 1987, p. 98). Se o belo promete uma harmonia entre nossas faculdade mentais e a natureza, e nesse sentido ele acena subjetivamente com uma promessa de um propósito [purposiveness] das formas naturais, o sublime, por outro lado, age contra os propósitos de “nosso poder de julgamento, [sendo] incomensurável com nosso poder de exibição [isto é, de circunscrever formalmente um objeto], e, por assim dizer, violento com nossa imaginação, e mesmo assim nós o julgamos mais sublime por isso” (Ibid., p. 99)
O caminho do sublime, o caminho de uma violência formal, de uma certa desesperança com relação à nossa capacidade de encontrar proporção, harmonia em nossas relações com o mundo, será o caminho a ser trilhado pelo romantismo em sua crítica às esperanças estéticas e classicistas. Ao fazê-lo o Romantismo contribuirá para aprofundar o elemento reflexivo que Kant percebeu como fundamental não apenas quando se debruçou sobre o belo, mas também quando considerou o sublime. E é essa reflexividade, essa inquietação com relação às suas próprias formas, com relação ao sentido de uma arte num mundo em constate transformação, que marcará a contribuição que o Romantismo alemão dará ao modernismo como todo e às ciências sociais em particular. Para discutirmos isso, todavia, precisaremos dar outro passo, precisaremos redigir um novo post.
[Alguns trechos desse post foram aproveitados de um escrito meu com mais de dez anos de idade.]
(por editar)
7 comentários:
Gadiel,
Perdoe-me a ansiedade. Deveria deixar o seu ótimo texto sobre Bento e a Tamarineira por alguns dias em evidência. É que estou usando esses pequenos textos que estou publicando como material didático e achei melhor publicar logo esse post para ver se termino essa minha estória com o Romantismo. Abraço, Jonatas
Dada a influência acachapante das abordagens empiristas (que não problematizam minimamente a relação entre sujeito e objeto) nas ciências sociais, fiquei curiosa para saber de que forma o Kant da terceira crítica é apropriado pela sociologia alemã. Estaria aí a "resolução" do que sempre encarei como um nó górdio na teoria do valor de Rickert, Weber et al. (por que valores como base da objetividade, relação entre valores universais e particulares, objetivismo e subjetivismo etc)? Mas dado que existe um debate infindável entre os filósofos acerca desses problemas no próprio Kant, desconfio que continuaremos na mesma...
Jonatas, talvez valesse a pena dfinir termos como "entendimento", "experiência" e "razão". Essas distinções sempre me confundem, especialmente qdo os autores usam o termo no original. Imagino que deve confundir outras pessoas também.
Beijo
Oi, Cynthia.
Obrigado pelo comentário. Vamos ver nos próximos posts como isso tudo será apropriado pelo romantismo e depois, pelo historicismo e hermenêutica romântica. Acho que darei especial atenção à idéia de reflexividade - algo cuja força perde-se mais adiante, mas que ainda está presente em Novalis, por exemplo.
Quanto ao conceito de razão no texto, vamos a alguns pés-de-página aqui mesmo. Esse conceito refere-se a nossa faculdade de produzir ideias capazes de transformar o real, ideias práticas, éticas, como a do bem, do dever. O entendimento ou compreensão é a nossa faculdade cognitiva. Dispõe-nos a procurar analisar como as coisas são e não como gostaríamos que fossem. Ao diferenciar essas duas faculdades, Kant objetiva, entre outras coisas, situar contribuições empirista e racionalista: que não se confundam as ideias perfeitas e plenamente "intuíveis" do mundo do dever ser com o processo limitado, sempre incompleto do conhecimento das coisas da natureza. São dois processos distintos.
O problema na terceira Crítica é exatamente fechar as feridas produzidas por essa divisão, fundamental, se você pensa por exemplo o seu sentido histórico - não encham o saco dos cientistas impondo-lhes pressupostos morais quando eles estão lidando com algo de outra ordem, ou seja, o conhecimento da natureza - mas que acarreta problemas lógicos perto da esquizofrenia.
Quanto à ideia de experiência, eu a uso aqui livremente, como sinônimo de vivência - o que é de certo modo uma heresia. Abração e obrigado. Jonatas
Heresia só porque os caras que escrevem em alemão têm trezentas palavras para isso. Mas quando traduzidos, você está na companhia de outros hereges como Hegel, Dilthey e Gadamer.
Com toda desgraça, ainda é melhor do que colocar a palavra em alemão entre parênteses, o que sempre me faz correr atrás de um glossário de termos filosóficos alemães na minha edição inglesa da Introdução às Ciências do Espírito. Depois da trilionésima consulta, simplesmente cheguei à conclusão de que I Kant. Kant you?
Mas obrigada pelas distinções. Dava pra colocar em alemão também?
:)
Daria, mas o bombardeio das Forças Aliadas está interferindo na transmissão... Jonatas
Jonatas, teu orientador também prendia o riso quando você pronunciava Kant como "Cunt"? Menino, passei anos fazendo meu orientador corar sem saber o motivo...
Eu me referia ao filósofo como Immanuel. Jonatas
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