Há cerca de um mês, Artur publicou um texto delicioso sobre os embustes de certas vertentes da economia e da psicologia que, sob o manto de uma suposta neutralidade científica, geram posições normativas as mais absurdas e fazem o gosto da grande mídia ao promover explicações fáceis para fenômenos complexos (leia aqui). De um ponto de vista metodológico, esses alvos são tão fáceis de serem atacados que dá até um certo enfado falar sobre eles. Especialistas em formigas e cupins explicando comportamentos humanos relativos a sexo, religião e guerras (Edward O. Wilson, da sociobiologia); economistas utilizando comportamentos típicos do mercado econômico para explicar as escolhas matrimoniais das mulheres (Gary Becker); zoólogos evolucionistas que concebem os genes como uma espécie de "homunculus oeconomicus", verdadeiras máquinas de cálculos dotadas não apenas de razão, mas de racionalidade instrumental (Richard Dawkins). Talvez isso explique a opção de Artur por uma abordagem humorística que expõe o ridículo dessas teorias (apesar da paixonite dele pelo suspeitíssimo Daniel Dannett). Mas de um ponto de vista político, econômico e social a questão é séria e, dependendo do lado em que se está, o enfado acaba sendo substituído por indignação. Foi isso que senti quando terminei de ler a “entrevista” com a psicóloga evolucionista (ou evolucionária) Susan Pinker, publicada pela Falha, digo, Folha de São Paulo domingo passado. Seguem meus comentários indignados.
Cynthia
ENTREVISTA SUSAN PINKER
Folha de São Paulo
São Paulo, domingo, 21 de março de 2010
Mulher é mais feliz quando reconhece diferenças de gênero
Legado feminista ainda barra aceitação de traços psicológicos inatos, diz cientista
APÓS abandonar o feminismo, a psicóloga Susan Pinker adotou um novo olhar sobre as diferenças biológicas que existem entre os sexos. Para ela, o movimento foi bom por ter dado liberdade de escolha às mulheres, mas errou ao afirmar que todas as distinções de gênero eram socialmente construídas. Em seu novo livro, "O Paradoxo Sexual", ela defende que salários de homens costumam ser maiores hoje não por discriminação no mercado, mas porque eles priorizam mais isso.
RICARDO MIOTO
DA REPORTAGEM LOCAL
Professora da Universidade McGill, de Montréal, a canadense Susan Pinker segue a mesma linha de pesquisa que seu irmão Steven. Ambos buscam entender a mente humana no contexto da evolução. Em entrevista à Folha, ela conta por que sente pena de Lawrence Summers, reitor da Universidade Harvard que perdeu o cargo acusado de machismo.
FOLHA - Seu livro fala sobre mulheres em empregos com bons salários, mas que as afastavam dos filhos, tornando-as infelizes. Por que elas quiseram anonimato?
SUSAN PINKER - Acho que as mulheres que fazem essa escolha ainda estão envergonhadas de não estar agindo como homens. Mas não podemos esperar isso delas. Elas não são homens.
FOLHA - Como assim?
PINKER - Existe a expectativa, no Ocidente, de que mulheres devem voltar a trabalhar normalmente quando seus filhos ainda são pequenos sem que se sintam mal por isso. Mas essa angústia tem razões biológicas. Se você der liberdade de escolha, mulheres vão querer trabalhar menos enquanto seus filhos forem novos. Na América do Norte e na Europa, entre as empresas que oferecem aos seus funcionários trabalhos em meio período, 89% dos que aceitam são mulheres. Isso oferece às mulheres mais tempo não só para os seus filhos, mas para seus outros interesses.
[Aff, nem sei por onde começar. Vejamos. Se o argumento dela não foi editado pelo brilhante jornalista, temos aí uma perfeita non-sequitur: a maioria das mulheres prefere trabalhar menos quando têm filhos pequenos, ergo, a angústia que sentem quando têm que trabalhar normalmente tem causas biológicas. Se você acha que está faltando algo neste argumento, tem toda razão. O que está faltando é o pressuposto implícito de que comportamentos sociais generalizados são universais e, sendo universais, devem ser biológicos. Impressionante uma cientista incorrer nesse tipo de falácia lógica. Mais impressionante ainda é uma cientista com formação psicológica não perceber que essa falácia resulta de um mecanismo de distorção cognitiva, freqüente na vida cotidiana, conhecido como hipergeneralização. Outro problema com o argumento de Pinker é concluir que as mulheres as mulheres sempre aceitam trabalho em meio período porque preferem trabalhar menos e ficar com seus filhos. Embora isso seja verdade para algumas parcelas do mercado feminino (aquelas que participam do mercado de trabalho primário, na classificação de David Gordon), sabe-se que trabalhos em meio período tendem a ser precarizados, com baixos salários, instabilidade no emprego e poucos benefícios. Esse mercado de trabalho, composto em sua maioria por mulheres, imigrantes e trabalhadores não-qualificados, decorre do menor poder de barganha desses grupos.]
FOLHA - Ganhar um salário menor é o preço que as mulheres pagam para satisfazer seus sentimentos?
PINKER - Sim. Fui entrevistada por uma jornalista na Holanda, onde há leis que dizem que, se você quer trabalhar só meio período, não pode ser demitido. A maioria das mulheres na Holanda não trabalham o dia inteiro, tendo filhos ou não. Essa jornalista trabalhava só quatro dias por semana. Ela dedicava as sextas para tocar piano, e achava que não seria feliz sem isso. Então não se trata apenas de cuidar dos filhos, mas também de ter uma vida mais equilibrada. Para as mulheres, a vida não é apenas trabalho, salário e promoções, ao contrário do que pensam muitos homens, que acham que tudo isso vale a pena quando compram um novo carro. Incomoda a muitos deles pensar que outras pessoas estão ganhando mais dinheiro, que moram em um lugar mais legal. São mais competitivos, gostam mais de assumir riscos. Não todos, mas eu diria que 75% dos homens são assim.
[Oxe! Eu pensei que as mulheres gostavam de trabalhar menos porque são biologicamente programadas para sentirem angústia longe dos filhos pequenos. Mas já que a preferência feminina se universalizou e que todas as mulheres, tenham elas filhos ou não, preferem trabalhar menos, que mecanismo biológico explicaria isso? E a competitividade masculina? Seria o consumismo fruto da testosterona?]
FOLHA - Ou seja, não é regra. [Parabéns! Finalmente uma conclusão lógica sem erro de inferência!]
PINKER - Eu sempre deixo claro que cada pessoa é um indivíduo único. Ciência é estatística, pessoas são únicas. Então, quando você estuda ciência, está analisando probabilidades. Sempre existirão exceções. Compare com a altura. Em geral, homens são mais altos, mas existem várias mulheres mais altas do que muitos homens.
FOLHA - Mas ainda existe muita resistência à ideia de que as diferenças entre os gêneros não são apenas socialmente construídas.
[Gênero, por definição, diz respeito a construtos sociais, caso contrário seria sexo. Mas como recriminar um jornalista por ignorar isso, se alguns neurologistas se preocupam em comprovar que “o gênero está no cérebro”, como li em uma revista médica recentemente?]
PINKER - As mulheres foram discriminadas por tanto tempo que as pessoas têm uma aversão à ideia de que existe uma diferença natural, biológica. Acham que falar sobre diferenças é voltar a pensar como antigamente, quando, na verdade, não tem nada a ver com discriminação. É bobo ignorar as evidências científicas porque você tem medo do que elas vão dizer.
[O problema é que diferenças são essas no nível comportamental... A cor da pele, por exemplo, é biologicamente determinada, nem por isso gera diferenças comportamentais, exceto, talvez, uma certa aversão ou atração pelo sol...]
FOLHA - Mas pode soar como "acabou a festa, todas de volta para a cozinha, os afazeres domésticos"...
PINKER - Estou muito longe dessa mensagem [Você nem imagina o quanto!]. O que acontece de bom quando as mulheres aceitam que existem diferenças biológicas naturais é que elas se sentem muito menos isoladas com seus sentimentos. Se ignoramos as diferenças, estamos forçando mulheres a assumir cargos e trabalhos nos quais boa parte delas não serão felizes, talvez como executivas ou engenheiras. Muitas mulheres me disseram: "Graças a Deus você fez esse livro. Eu achava inaceitável aquilo que eu sentia". É difícil para elas gostar de trabalhar com pessoas, mas saber que empregos assim não são tão bem pagos quanto os que envolvem lidar com "coisas", como engenharia. A maioria das mulheres gosta de trabalhos como assistência social, pedagogia, profissões na área de saúde, mas salários nessas áreas costumam ser menores.
[Ah, entendi: nós mulheres não gostamos mesmo é de trabalhar: escolhemos trabalhar com pessoas porque gostamos ainda menos de trabalhar com “coisas”. Pelo jeito, ela não entendeu o conceito de guetos sexuais. Só não entendi uma coisa: os trabalhos que supostamente gostamos, como assistência social, pedagogia e profissões na área de saúde não envolvem pessoas? Tô começando a desconfiar que ela fumou alguma coisa estragada antes dessa entrevista.]
FOLHA - Mas, se as mulheres gostam de áreas que pagam menos, não há nada a fazer, então?
PINKER - Precisamos remunerar melhor as mulheres pelos trabalhos que elas preferem. Ou seja, começarmos a pagar aos professores tanto quanto pagamos aos engenheiros. Muitas mulheres esperam que as suas conquistas sejam reconhecidas sem que tenham de pedir aumentos. E, por isso, têm menos chances de ver os seus salários subindo. Se eu sou um chefe e recebo um homem em meu escritório dizendo "veja o que estou fazendo, eu mereço um salário maior", tenho mais propensão a oferecer um aumento a ele do que a outra pessoa que faz o seu trabalho sem reclamar.
FOLHA - O que a sra. pensava sobre as diferenças de gênero quando era jovem? Leu Simone de Beauvoir?
PINKER - Sim, claro, como todo mundo naquela época. Estamos em um ponto alto do movimento feminista. Quando eu estava na universidade, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, a expectativa era que homens e mulheres fossem idênticos, que nós deveríamos fazer as mesmas coisas, trabalhar a mesma quantidade de horas, no mesmo tipo de emprego, ter o mesmo tipo de vínculo emocional com o trabalho doméstico e com as outras pessoas. Eu acreditava muito nisso, li todos os livros das principais feministas. Foi só quando eu fui trabalhar e quando meus filhos nasceram que percebi que havia um buraco entre a minha abordagem intelectual do assunto e os meus sentimentos.
[Surpresa! Nenhuma feminista jamais pensou nisso!]
FOLHA - Então deveríamos agora esquecer "O Segundo Sexo" [livro de Simone de Beauvoir, de 1949, marco do feminismo]?
PINKER - "O Segundo Sexo" era interessante em sua época, mas está ultrapassado. A ciência avançou muito desde então. Não tínhamos ressonância magnética nem o mapeamento do genoma humano, não sabíamos metade do que sabemos hoje. Hoje estamos entendendo como os hormônios afetam os comportamento humano. [O que adianta se ter um mapa que não se sabe interpretar? Remeto, aqui, ao artigo de Jonatas, O Alfabeto da Vida]
FOLHA - Como foi a experiência da sra. em um kibutz?
PINKER - Eu tinha 19 anos e fiquei um ano num kibutz porque eu era socialista. Era um lugar interessante para perder noções irrealistas. Existiam trabalhos que a maioria das mulheres não queriam fazer, que exigiam muito esforço físico ou eram perigosos. Existia uma divisão natural de trabalhos por sexo, ainda que os kibutzim tivessem sido planejados para que isso não existisse.
[Isso deve explicar o fato de haver tantos neuro-cirurgiões do sexo masculino e tantas empregadas domesticas do sexo feminino nos dias de hoje... Ah, esqueci! Os homens não são apenas mais fortes: também são mais inteligentes.]
FOLHA - Quando Summers perdeu o cargo em Harvard após dizer que a falta de mulheres em ciência é questão de aptidão, o que a sra. pensou?
PINKER - Foi assustador, porque eu tinha acabado de decidir escrever o meu livro quando vi o que aconteceu a esse pobre homem. Ele foi atacado simplesmente por comentar as evidências que a maioria das pessoas que trabalham com biologia e antropologia evolutiva vêm dizendo há anos.
[Também achei assustador. Finalmente concordamos em alguma coisa.]
8 comentários:
Hahahahahaha
É rir pra não chorar com umas opiniões dessas...
É surpreendente esse tipo de comentário.Logo agora que estava procurando texto sobre gênero para minha monografia me deparo com um absurdo desse tipo.Fiquei até reflexiva e indaguei: O que podemos esperar de pior depois disso? Só mesmo se as feministas convictas se declararem agora ex-feministas.
Cara Patrícia,
Tem pior, sim. Tem Camille Paglia.
Essa "dissecação" do texto foi ótima!
Acho que vou imprimi-lo para mostrar todas a vezes que, em rodas de amigos,
alguém vem com qualquer estudo que aponta as desigualdades como naturais.
Brincadeiras a parte, um comentário:
- Ela fala que os homens são mais dispostos a reivindicar aumento salarial.
Mas (por experiência própria e estudos) é notável que muitas vezes em que uma mulher aumenta a voz no trabalho
é sinônimo de falta de controle emocional...
Hehe... gostei do "texto delicioso". Eu me senti um doce de goiaba.
Muito bons os comentário sobre e contra o "reducionismo" (uso um eufemismo qualquer) de Susan Pinker.
Como vc disse, o problema não é apenas teórico e acadêmico, é fundamentalmente político. Fico tb espantado com o desprezo desse pessoal pela ciência social. É como se não existisse.
Sabe dizer se ela é parente de Steven Pinker, psicólogo cognitivo, que tem vários livros traduzidos no Brasil?
De fato, eu gosto muito de Dennett, mesmo discordando bastante do cabra. Embora, no campo da biologia evolutiva, defenda posições parecidas com a de Dawkins, Dennett é mais interessante.
Seu livro sobre religião ("quebrando o encanto") é bem mais sutil do que o de Dawkins ('Deus é um delírio"), embora, sendo eu um ateu cercado por carolas por todos os lados, gosto do radicalismo de Dawkins. Mas, entre Dawkins e Stephen Jay Gould, gosto mais do último (ao contrário do velho Gadie).
Recomendo três livros de Dennett:
A perigosa ideia de Darwin
Brainstorms
A estratégia do interprete
Arture, você é um doce, só não sei se de goiaba.
Você acertou na mosca: a questão fundamental é o reducionismo. Na verdade eu até tinha intenção de argumentar por aí, mas deu preguiça (depois que Jonatas trouxe o espírito de Macunaíma para este blog, a coisa anda meio devagar). E o pior é que este reducionismo se dá não por alguma convicção ontológica ou epistemológica coerente, mas por pura má vontade e ignorância em relação ao que é produzido pelas ciências sociais.
No caso da Susan Pinker (sim, ela é irmã do Steven - que é melhor do que ela) fica clara a ignorância em relação à maioria das questões sociológicas e econômicas a que ela se refere, por exemplo, a flexibilização do trabalho ou as diferenças entre "escolhas" em países como a Holanda, cujo Estado de bem-estar social ainda funciona, e o resto do mundo, onde "optar" por trabalhar em meio-período é a diferença entre ter ou não um emprego.
Mas outro ponto que eu deveria ter desenvolvido e a preguiça não deixou foi que a tendência contrária também é complicada: isso que eu chamo de colonização do sexo pelo gênero, onde tudo passa a ser construto social.
Eu acho que existem autores extremamente interessantes que conseguem fazer a ponte entre as ciências biológicas e as ciências sociais sem incorrer em nenhum desses erros, caso de Stephen Jay Gould, que vc menciona, Oliver Sacks, o neurologista, e Anne Fausto-Sterling, a bióloga feminista (embora Fausto-Sterling às vezes escorregue para o que eu acredito ser um construtivismo exagerado). E os dois primeiros fazem isso em obras de divulgação científica, o que é ainda mais difícil.
Gadiel é fã de Dawkins??? Pra que você me diz essas coisas?
PS.
CADE MEU MR. DARCY????
Certo, certo, vc venceu. Colocarei Mr Darcy no blog para o seu gáudio.
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