Tom Bottomore e William Outhwaite
Por William Outhwaite - Professor de Sociologia da Universidade de Newcastle, Inglaterra.
Artigo originalmente publicado em Idéias, Campinas, 5 (1) , pp. 155-72, jan/jun 1998. Agradecemos a Ricardo Antunes a permissão de reproduzí-lo no Cazzo.
Tom Bottomore, que faleceu em fins de 1992 aos 72 anos de idade, era um dos sociólogos britânicos mais conhecidos e admirados. Seus diversos livros foram lidos por todos, de especialistas a estudantes de primeiro ano, como um guia infalivelmente confiável para a disciplina e sobre a bibliografia relevante. Ele trouxe para a Sociologia britânica a preocupação com a teoria social - especialmente, mas de forma alguma exclusivamente, marxista - e com o que veio a ser chamado de Terceiro Mundo. Colocou em prática sua abordagem internacional, em muitos anos de trabalho paciente, no desenvolvimento da Associação Internacional de Sociologia, da qual foi presidente de 1978 a 1982.
Nascido em 1920, Tom Bottomore foi educado na cidade inglesa de Nottingham, onde se interessou pelo socialismo como um possível remédio contra a pobreza das comunidades mineiras de carvão, a depressão econômica e o surgimento do fascismo. Foi membro do Partido Comunista por um breve período e, em consequência disso, a este expert em pensamento social norte-americano nunca foi legalmente permitido visitar os Estados Unidos (ele viajou para lá ocasionalmente enquanto morava no Canadá, mas se recusava a completar os questionários especiais requeridos pelas autoridades americanas com a finalidade, como ele certa vez colocou, "de me espionar").
Estudando economia enquanto engajado no serviço de guerra em Londres, Tom Bottomore foi designado para trabalhar no serviço de administração militar britânico na Viena do pós-guerra, cidade da qual ele veio a gostar muito e onde trabalhou na produção de estatísticas econômicas. De volta ao Reino Unido, estudou Sociologia na London School of Economics com o sociólogo evolucionista Morris Ginsberg, defendendo uma tese sobre teorias do progresso. Passagens do seu diário datando desta época mostram que tinha poucas ilusões a respeito do Estalinismo, mas que também estava impaciente com o anticomunismo radical de alguns dos professores da LSE: "Eu cheguei à conclusão de que muitos daqueles que gritam mais alto contra o comunismo estariam entre os primeiros a se acomodar a ele e a buscar posições na hierarquia" [1]. Ele não levava muito a sério Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, publicado em 1948: "Dêem-me críticas sérias acerca do sistema soviético a qualquer hora". Também é dele a piada imortal que diz que, embora seja possível construir o socialismo em um país, é aconselhável morar fora dele enquanto o processo estiver em curso.
A fim de continuar seus estudos em "sociologia, economia, filosofia e literatura" [2], Tom Bottomore recebeu uma bolsa da Fundação Rockefeller. Seu " passado comunista", no entanto, impediu que estudasse nos Estados Unidos, mas foi permitido que usufruísse da bolsa em Paris. Ele e sua futura esposa, Mary, viveram e trabalharam em Paris de 1951 a 1952. Tom continuou seus estudos em teoria marxista e em cooperativas de trabalhadores, assim como conduziu um projeto de pesquisa sobre o serviço público francês [3].
Sua coletânea de Marx, Selected Writings on Sociology and Social Philosophy, editada com Maximilien Rubel, data deste período (1956), e talvez continue sendo a melhor introdução a Marx em língua inglesa. Também publicou, em 1963, uma tradução editada dos trabalhos do jovem Marx (Early Writings). Retornando para a LSE, Tom foi secretário da Associação Internacional de Sociologia de 1953 a 1959, quando viajou extensivamente pela Europa e organizou uma conferência da UNESCO em Moscou, em 1958. Seu importante livro Classes in Modern Society foi publicado em 1955, com novas edições em 1965 e 1991. Uma viagem de seis meses à Índia fez com que seu livro Sociology tenha sido substancialmente dedicado a este país, mostrando uma grande sensibilidade em relação a questões de desenvolvimento global, de forma geral rara na Sociologia Britânica da época. A isto seguiu-se o excelente Elites and Society (Elites e Sociedade) (1964, segunda edição em 1993), que Tom descreveu em seu diário como sendo talvez seu livro preferido.
Entre 1965 e 1967, Tom ensinou na recém-criada Simon Fraser University, em Vancouver, Canadá. Embora gostasse de lá, eventualmente se irritou com o radicalismo do campus à época e foi desencorajado a ficar mais tempo devido a um desagradável clima de interferência política na universidade por parte de interesses comerciais, dentre outros. Seus programas de rádio, seguindo a tradição do radicalismo norte americano, foram publicados em 1967 com o título de Critics of Society. Neste mesmo ano, Tom retornou à Inglaterra e foi para outra nova universidade, a Universidade de Sussex, em Brighton, onde permaneceu, exceto por curtos períodos no Canadá, até se aposentar. Presidente da British Sociological Association de 1969 a 1971, também foi Vice-Presidente da Associação Internacional de Sociologia e diretor do seu conselho de pesquisa, em cujo papel desenvolveu importantes atividades de publicação.
Tom publicou muito: a uma coleção de ensaios sobre Karl Marx (1973) seguiu-se o seu Modern interpretations of Marx (1981), o livro Marxist Sociology (1975), seus ensaios em Sociology as Social Criticism (Sociologia como Crítica Social) (1975) e Sociology and Socialism (1984), um inestimável volume editado com Patrick Good intitulado Austro-Marxism (1978) e um brilhante livro introdutório, Political Sociology (1979, 2° edição em 1993). No início dos anos 70, trabalhou na tradução do Philosophie des Geldes de Georg Simmel, completada por David Frisby e publicada em 1978. Também retraduziu Finanzkapital, de Rudolf Hilferding (1991) e, comigo, retraduziu o ensaio clássico de Karl Lowith, Max Weber and Karl Marx (1982, 2a edição em 1993). Os anos 80 ainda testemunharam a finalização do seu notável Dictionary of Marxist Thought (Dicionário do Pensamento Marxista) (1983, 2° edição em 1991) e o início, em 1986, do nosso trabalho conjunto no Blackwell Dictionary of Twentieth Century Social Thought (Dicionário do Pensamento Social do Século XX), publicado logo após a sua morte.
Após publicar The Frankfurt School (1984), um pequeno livro grandemente admirado na Alemanha e no mundo de língua inglesa, Tom voltou-se cada vez mais para a sociologia econômica com Theories of Modern Capitalism (1985), The Socialist Economy: theory and practice (1989), e a obra de Schumpeter — em particular Between Marginalism and Marxism: the economic sociology of J.A. Schumpeter (1992). Ele também editou, com Robert Brym, uma importante coleção de ensaios sobre o capitalismo, The Capitalist Class (1989). Esta impressionante produção se acelerou com a aposentadoria de Tom da Universidade de Sussex em 1985, a qual pareceu acolher de bom grado: "Como é bom estar agora absolutamente livre". Uma coletânea de ensaios em sua homenagem, baseados em uma conferência organizada em Sussex por Gillian Rose que contou com a participação de ex-alunos e colegas, intitula-se Social theory and Social Criticism (1987).
No fim de 1986, veio um golpe devastador com a notícia da doença e morte de sua esposa, Mary. Em 1987, Tom gradualmente recomeçou a trabalhar, fazendo a primeira de uma série de visitas à Espanha. Nestes anos, viajou muito à Espanha e à Grécia, e ficou cada vez mais interessado no curso político do sul da Europa, dando início ao seu trabalho na revista Socialismo dei Futuro. No outono do mesmo ano, Brian Taylor e eu o entrevistamos para a revista Theory, Culture and Society (6, 2, 1989, p. 385- 402).
Após publicar estes diversos projetos, notadamente as novas edições de Elites and Society, Classes e Political Sociology, Tom começou a trabalhar em dois livros: um sobre o conceito de planejamento, tópico que sempre lhe interessou, outro sobre democracia socialista, que começou a escrever em outubro de 1992 e no qual trabalhou até sua morte súbita, no dia nove de dezembro. Este manuscrito, que teria sem sombra de dúvida se transformado em um dos livros mais importantes de Tom, exemplifica seu modo de escrever. O que nós encontramos, juntamente com pilhas de livros, revistas e cópias de artigos, foi um primeiro capítulo e as páginas iniciais de um segundo, escritas com apenas pequenas correções, terminando no meio da seguinte frase, particularmente dolorosa, talvez, para os seus leitores russos: Kautsky, Tom escreveu, "previu muito claramente o processo pelo qual a revolução bolchevique degeneraria numa ditadura de partido".
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Tom Bottomore foi um acadêmico, professor, colega e amigo extraordinário. Sua influência pessoal e a de sua obra foi imensa e se espalhou pelo mundo, embora tenha sido marcada por restrições consideráveis. Tom nunca procurou fundar uma escola. Seus ex-alunos de pós-graduação permaneceram heterogêneos em suas orientações intelectuais e políticas; no fim de sua conferência de aposentadoria disse, com uma risada característica, que estava feliz porque nem todos nós nos tornamos marxistas. Uma nota em um artigo de novembro de 1949, escrita após ter conhecido um homem que havia exaltado exageradamente um colaborador, mostra que seu desdém pela condição de "discípulo" se estabeleceu cedo em sua carreira:
Desde a primeira conversa ficou evidente que o que ele quer é um discípulo (...) Choca-me cada vez mais saber, por um lado, o quão difundida é a condição de ‘discípulo’, por outro, o desejo de alguns em impor sua própria doutrina (...) De minha parte, decidi nunca levar minhas próprias crenças e teorias muito a sério e estar sempre pronto a admitir o erro, não pertencer a nenhuma organização de ideologia rígida, nunca me submeter ao dogma e escrever de forma evasiva, mas não obscura. Mas não viver à deriva; existem alguns valores fundamentais aos quais eu me apego, como o valor basicamente igual das pessoas, sua liberdade (portanto a oposição às hierarquias, ao despotismo).
Algumas vezes Tom sentiu o complexo de inferioridade característico dos cientistas sociais, mas a passagem seguinte (23/1/88) o retrata em um tratamento positivo desta questão:
Assisti a um excelente drama-documentário da BBC sobre Crick, Watson et al. e a descoberta da estrutura do DNA, o que me levou a reler The Double Helix e a refletir sobre quão pouco pode ser descoberto nas ciências sociais. Eu pensei nisto particularmente porque Watson estava morando cm Paris em abril de 1952, na época em que Mary e eu estávamos morando lá, e novamente em março de 1953, logo após a descoberta. E o que eu estava descobrindo? No máximo, um novo aspecto importante de Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que depois ajudei a difundir no mundo de língua inglesa. Mas pelo menos há um resultado positivo no reconhecimento da imperfeição das ciências sociais (e minha pequena contribuição a elas): nomeadamente que, assim como nas ciências naturais, o que importa é descobrir algum tipo de estrutura (como Marx, acima de todos, fez), mesmo que ela seja sempre mais vaga, dúbia, etc. Sem isto, tudo é reduzido ao jogo de palavras, aos comentários inteligentes, à exposição de uma ideologia, e assim por diante.
Eu acredito que Tom não afirmaria ter descoberto nenhuma estrutura completamente nova, mas seu trabalho consistia, acima de tudo, na ordenação e mediação de modelos conceituais e estruturas já existentes: entre teoria das classes e teoria das elites, entre o marxismo e (o restante da) Sociologia e, em particular, entre o marxismo e a realidade contemporânea. A capacidade de organização que pode ser observada, por exemplo, em seus verbetes belamente elaborados para os dois dicionários da Blackwell, também era central ao seu método de ensino: em uma série de movimentos ágeis mas sem pressa, o projeto meio formulado de alguém adquirira uma estrutura conceitual clara, acompanhada de seu aparato bibliográfico.
Tom era tudo, menos um marxista ortodoxo. Quando lhe perguntei, na entrevista para a Theory, Culture and Society se ele "acreditava" na dialética, respondeu que nunca havia realmente entendido o que o termo significava. Para ele, o marxismo era uma teoria sociológica e um projeto político, mas a eficácia de cada um deveria ser julgada no campo, na prática - incluindo, embora eu esteja certo de que ele detestava o termo, aquilo que Althusser chamava "prática teórica". Menos ortodoxa ainda, embora antecipada no marxismo neo-kantiano dos marxistas austríacos, era a insistência de Tom na distinção fato/valor. Era, em vários sentidos, um marxista austríaco honorário, atraído pela sua combinação de rigor econômico, sensibilidade política e abertura e flexibilidade teóricas. Embora simpatizasse com o trabalho de filósofos marxistas amigos, como Roy Edgley, István Mészáros e Roy Bhaskar, não se comprometeu com esta linhagem.
Hoje é difícil lembrar quão pouca teoria sociológica era estudada na Grã-Bretanha nas décadas imediatamente seguintes à guerra. O trabalho de Tom sobre Marx, iniciado nos anos 60, juntamente com o fantástico livro de Steven Lukes sobre Durkheim (1973), ou o livro de Giddens que veio a ser conhecido como a santíssima trindade de Marx, Weber e Durkheim, Capitalism and Modern Social Theory (1971), eram incomuns, no sentido de lidarem seriamente com a teoria social clássica. O marxismo, em particular, apesar do importante trabalho que vinha sendo feito em história marxista e em teoria literária, parecia ser encarado como pouco mais que a inspiração ou o ornamento intelectual do comunismo soviético. Foi obviamente a experiência em Paris no início dos anos 50 que ensinou a Tom que havia muito mais em Marx, tanto como objeto de estudo, quanto como um guia para a reflexão contemporânea (olhando para seus livros após sua morte, eu me surpreendi com a quantidade de textos marxistas franceses que recebiam um lugar de honra nos seus estudos, juntamente com o Marx-Engels-Werke).
Entretanto, a difusão e renascimento da teoria social marxista, que foi talvez o principal feito de Tom na Grã-Bretanha, era apenas a parte dominante de um impulso mais amplo em desprovincializar a Sociologia britânica, tanto nos seus recursos teóricos, quanto nas suas preocupações substantivas. Tom era provavelmente mais feliz quando trabalhava fora da Grã-Bretanha, e seu internacionalismo e Wanderlust prático e intelectual garantiram-lhe um lugar estratégico entre os grandes imigrantes que moldaram substancialmente a Sociologia britânica na segunda metade do século vinte: Norbert Elias, Ralf Dahrendorf, John Rex, Ilya Neustadt, Stuart Hall, Zygmunt Bauman e muitos outros. Na época em que retomou à Grã-Bretanha, em 1967, as portas intelectuais e políticas que havia se esforçado por abrir estavam amplamente abertas, representando um período de reconstrução teórica parcialmente inspirado pela situação política vigente. Tom era agora, como já havia sido na Simon Fraser, um agente de influência moderada e também radical que apontava as afinidades entre o marxismo e outras variantes de teoria social e que defendia o trabalho intelectual sério contra a acusação de elitismo.
No início dos anos 90, o pêndulo havia balançado mais uma vez, e uma das últimas aparições de Tom em público foi numa conferência organizada pelos estudantes da Universidade de Sussex sobre os prospectos do pensamento e da política radicais nos anos 90. Argumentando contra o título da sessão, "Pós-Marxismo e Democracia Social", Tom lançou uma defesa vigorosa do marxismo como uma teoria social que oferece uma análise do desenvolvimento e estrutura de classe do capitalismo e de algumas das pré-condições do socialismo, o qual continuou a enxergar como um projeto possível e desejável. Seus livros sobre democracia socialista e planejamento teriam, sem dúvida, desenvolvido este tema.
Neste sentido, enquanto o trabalho de Tom exibe uma consistência impressionante, seus efeitos devem ser entendidos a partir dos contextos históricos cambiantes, na Grã-Bretanha e alhures. Na parte seguinte deste artigo enfocarei sua concepção de socialismo, tal como desenvolvida do final dos anos 30 ao início dos anos 90.
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Conforme mencionei anteriormente, a orientação política da juventude de Tom foi "influenciada pela pobreza que vi ao meu redor nas vilas de mineração, pela ascensão do fascismo e pela Guerra Civil Espanhola, pela aproximação óbvia de uma guerra mais geral e pelas práticas lamentáveis da classe dominante britânica, dentre outras". Para Tom, assim como para muitos outros de sua geração, o serviço militar, durante e imediatamente após a guerra, proporcionava uma oportunidade para a leitura e a reflexão: "Deve ter sido no período 1943/44 que eu realmente juntei a economia e o marxismo naquilo que mais tarde veio a ser a sociologia marxista". Em novembro de 1949 - Tom recordou - escreveu um ensaio sobre socialismo e federalismo, ao qual se seguiram discussões em Valence, na França, com os federalistas europeus. Ele escreveu, na época: "Quanto mais leio e descubro, menos tenho certeza de como o socialismo vai funcionar (dado o exemplo soviético) ou, caso venha a funcionar bem, se nos satisfaria. Portanto, seja modesto em minha defesa".
Num extrato de uma revista citada anteriormente, de novembro de 1949, Tom lembrou sua adesão a "alguns valores fundamentais (...) como a igualdade básica das pessoas, sua liberdade (portanto a oposição às hierarquias, ao despotismo)". No capítulo final da primeira edição de Elites and Society, livro que, como Ettore Albertoni escreveu, "centra sua análise no ponto no qual as tendências políticas deste século se entrecruzam", ele oferece uma crítica restrita, porém vigorosa, do anti-igualitarismo da teoria das elites. A democracia, ele observa,
(...) implica em que deveria haver um grau substancial de igualdade entre os seres humanos, tanto no sentido de que todos os membros adultos de uma sociedade devem ter, tanto quanto possível, uma influência igual naquelas decisões que afetam aspectos importantes da vida em sociedade, quanto no sentido de que as desigualdades de riqueza, de posição social ou de educação ou acesso ao conhecimento, não deveriam ser tão grandes a ponto de resultarem numa subordinação permanente de alguns indivíduos e grupos a outros em nenhuma das várias esferas da vida social, ou de criarem grandes desigualdades no exercício tios direitos políticos. (Elites and Society, 2a edição, 1993, p. 101).
O argumento para a igualdade baseia-se no fato de que as diferenças naturais entre os indivíduos são relativamente insignificantes, comparativamente às suas características e necessidades em comum, de que desigualdades sociais e naturais são distintas e, portanto, de que um compromisso com a igualdade ou com a desigualdade é uma questão de ideais sociais ou morais. Para os igualitaristas,
(...) a justificativa última para a nossa opção não é, em si, uma questão de fato, mas o argumento razoável de que a busca da igualdade é passível de criar uma sociedade mais admirável. Ao usar o termo 'nós', eu me refiro particularmente às pessoas que vivem nas sociedades do século XX; era difícil, em qualquer outra época anterior, formar uma concepção de sociedade igualitária prática e durável, dada a insegurança da vida econômica, a ausência de meios efetivos de comunicação, a inadequação da educação e a falta de conhecimento acerca da estrutura social e do caráter individual. O século XX é único no sentido de oferecer, pela primeira vez, a oportunidade de moldar a vida humana de acordo com os desejos humanos, sendo, por esta razão, tanto cheio de esperanças quanto terrível. (p. 102-103)
Conforme Michels e outros teóricos da teoria das elites enfatizaram, Marx não previu "a possibilidade de que, dadas certas circunstâncias, novas distinções sociais e uma nova classe dominante pudessem emergir na sociedade que sucedesse o capitalismo (...) e uma nova força foi dada às suas críticas com as experiências da União Soviética e dos países europeus que se encontravam sob o domínio de Stalin" (p. 107). Mas isto não exclui a possibilidade de uma sociedade igualitária mais descentralizada, que tentaria mitigar as tendências autoritárias e hierárquicas que resultam tanto do capitalismo quanto das economias coletivizadas e, de fato, do industrialismo em si (p. 108-111). Os teóricos da teoria das elites apoiam-se na noção de igualdade das oportunidades, mas isto é "auto-contraditório":
Igualdade de oportunidades, como a expressão é habitualmente empregada, pressupõe desigualdade, dado que 'oportunidade' significa 'a oportunidade de se ascender a um nível mais alto em uma sociedade estratificada'. Ao mesmo tempo, ela pressupõe igualdade, já que a noção implica em que as desigualdades embutidas nesta sociedade estratificada têm de ser contestadas a cada nova geração, de forma que os indivíduos possam desenvolver realmente suas habilidades pessoais; e cada nova investigação acerca das condições de igualdade das oportunidades, por exemplo, na esfera da educação, tem mostrado o quão forte e persuasiva é a influência das distinções de classe nas oportunidades individuais. Igualdade de oportunidades tornar-se-ia realidade apenas numa sociedade sem classes e elites, e a noção em si tornar-se-ia inútil, dado que as oportunidades iguais dos indivíduos em cada geração seriam uma questão de fato, e a ideia de igualdade de oportunidades significaria, não a luta para ascender a uma classe social mais alta, mas a possibilidade de cada indivíduo em desenvolver completamente aquelas qualidades do intelecto e da sensibilidade que ele ou ela apresentam como pessoa, numa associação irrestrita com os outros. (p. 177).
Tom reformulou esta mensagem igualitária em termos globais em "Capitalism, Socialism and Development", no livro Sociology as Social Criticism. Depois de questionar "até que ponto as políticas de desenvolvimento dos países comunistas poderiam (...) constituir uma alternativa real, no sentido de uma alternativa socialista, à expansão do capitalismo" (p. 67), e de levantar a questão de "como acessar o potencial socialista de sociedades nas quais a propriedade pública dos principais meios de produção e um certo grau de planejamento socialista são associados a um sistema político autoritário e frequentemente repressivo" (p. 68), Tom conclui nos seguintes termos:
Existem muitos caminhos para o desenvolvimento, assim como existem diversos caminhos para o socialismo. O que me parece ser a característica mais universal é a força da busca pela igualdade, que agora se ampliou de sua fonte nas sociedades capitalistas do século XIX para envolver a humanidade como um todo (...) Por trás da preocupação com o desenvolvimento e com as relações entre as nações pobres e ricas existe (...) o problema fundamental da igualdade humana; apenas na medida em que este problema é debatido em todas as suas ramificações, e as escolhas políticas são formuladas em relação a ele, é que políticas práticas e efetivas para o desenvolvimento global serão possíveis (p. 70 e segs.).
No ensaio final do livro, "The Prospect for Radicalism", originalmente escrito para o livro em homenagem a Erich Fromm acerca dos movimentos revolucionários de 1968 no Ocidente, Tom calmamente nota a fraqueza de qualquer visão positiva
(...) no pensamento radical contemporâneo. Se nós procurarmos a razão para esta fraqueza, dificilmente deixaremos de concluir que ela se deve à desilusão com o socialismo, que começou no final dos anos 30 e se intensificou com a versão soviética de socialismo, desde o final da guerra, passando pelos anos finais do terror estalinista, até a Realpolitik da ocupação militar da Tchecoslováquia. Pensadores radicais agora devem criticar tanto o capitalismo quanto o socialismo como formas existentes de sociedade, e eles quase sempre são tentados a dirigir sua crítica principal contra o industrialismo em si. A ideia de uma forma alternativa de sociedade torna-se fraca e nebulosa, dado que o que era antes um ideal - o socialismo - agora existe como uma realidade problemática. O que nós devemos fazer para remediar esta situação, coisa que alguns já estão fazendo, é repensar o socialismo, tanto em termos das instituições apropriadas para uma sociedade igualitária, quanto dos movimentos sociais e ações políticas que são capazes de gerá-la, sem que haja o desfiguramento sofrido em função da violência e da repressão. (p. 221).
Alguns anos mais tarde, num ensaio intitulado "Socialism and the Working Class", publicado em The Socialist Idea: a reappraisal (London: Weidenfeld & Nicholson, 1974) de Leszek Kolakowski e Stuart Hampshire, e mais tarde republicado em Sociology and Socialism (1984), Tom tirou algumas conclusões a partir de uma frase do Kritische gesellschafistheorie und positivismus, de AIbrecht Wellmer, segundo a qual "já que a história destruiu completamente qualquer esperança acerca de um 'mecanismo' de emancipação com base na economia" (Critical Theory of Society, New York: Herder & Herder, 1971, p. 121), então os processos estruturais são relativamente mais importantes. Foram três as conclusões de Tom. Primeiramente, "que o período de gestação de uma sociedade socialista será provavelmente muito mais longo que o previsto pelos primeiros socialistas, incluindo Marx". Em segundo lugar, que "as atividades dos intelectuais, dos críticos da sociedade e da cultura provavelmente tornar-se-ão mais proeminentes no movimento rumo ao socialismo".
'Em terceiro lugar (...) que não apenas não existe um 'mecanismo' de emancipação com base na economia, mas tal 'mecanismo' não existe de forma alguma. Nós temos que desistir do elemento, presente no marxismo e em outras teorias socialistas, que nos leva a conceber a transição do capitalismo para o socialismo como uma necessidade histórica. O socialismo é apenas um futuro possível. Todas as experiências do século XX mostram quão variados são os obstáculos que o movimento pelo socialismo deve enfrentar - a concentração de poder político em um partido ou burocracia (que se desenvolve mais facilmente onde existe propriedade pública de empresas de grande porte), a obsessão com o crescimento econômico que corrompeu o pensamento socialista em si, o rápido crescimento populacional e a concentração urbana, a grande desigualdade entre as nações e a extensão da rivalidade e do conflito que derivam dos sentimentos e interesses nacionais.
Pode ser que a palavra 'socialismo' tenha sido tão corrompida pelas suas associações com os regimes autoritários, com o planejamento centralizado, com a busca obsessiva de inovação tecnológica e crescimento econômico, que ela não seja mais adequada para descrever os objetivos dos movimentos de liberação no final do século XX. Mas até que um novo termo seja encontrado, nos temos que nos satisfazer com este, apenas tomando o cuidado de interpretá-lo sempre de maneira a exprimir adequadamente a ideia de liberação; isto é, a criação de uma ordem social na qual existe a máxima igualdade de acesso possível, por parte de todos os seres humanos, a recursos econômicos, ao conhecimento e ao poder político, e na qual a mínima dominação possível seja exercida por qualquer indivíduo ou grupo sobre qualquer outro. (p. 189 e segs.).
No ensaio introdutório ao mesmo volume, intitulado "On the Relatíon Between Sociology and Socialism", assumiu o mesmo tom cauteloso. Após examinar as relações históricas e conceituais entre Sociologia e socialismo, conclui que
(...) os dois pertencem a esferas bastante distintas. O socialismo, como pensamento e ação, deriva de interesses e valores políticos; a Sociologia, como uma forma de conhecimento, de valores científicos. No entanto, a Sociologia, como outras ciências (e especialmente as ciências sociais), é necessariamente desenvolvida em um meio impregnado de valores políticos e pode, legitimamente, ser guiada por uma visão socialista que tem um certo papel na definição tanto da imagem da sociedade e da natureza humana, quanto dos seus principais temas de questionamento.
Numa sociedade aberta, democrática e socialista, assim como em uma sociedade capitalista, a Sociologia teria um papel importante (e com toda probabilidade um papel mais importante) como instrumento de investigação crítica das relações sociais reais e dos seus desenvolvi¬mentos. Seu lema mais apropriado, como disciplina científica, seria o favorito de Marx: De omnibus dubitandum (p. 9-10).
Na época em que Sociology and Socialism foi publicado, Tom estava trabalhando em The Frankfurt School, embora estivesse claramente ansioso por "descer" a tópicos mais substantivos, como os que tratou depois em Theories of Modern Capitalism e The Socialist Economy. Neste último livro, reitera, com mais detalhes, suas críticas anteriores à maneira pela qual a teoria e a prática socialista tornaram-se excessivamente preocupadas com as questões econômicas:
Uma economia socialista é apropriada a uma sociedade socialista; a racionalização da produção, com a finalidade de se alcançar um fluxo crescente de bens materiais, não deve ter prioridade absoluta, independente de considerações a respeito de, por exemplo, condições e jornada de trabalho, meio ambiente e depredação de recursos naturais, ou se aquilo que é produzido altera de forma positiva a qualidade de vida e o nível da civilização. (p. 6).
Enquanto rejeita a afirmação de Schumpeter, em Capitalism, Socialism and Democracy, de que o socialismo é tão "indeterminado culturalmente" que só pode ser especificado em termos econômicos, enfatiza a diversidade dos socialismos possíveis. "O socialismo, assim como qualquer atividade ou forma de vida humana, é um fenômeno histórico, e ninguém pode fingir prever de maneira racional como ele vai evoluir (...)" (p. 7). No final do Capítulo l, no artigo The Nineteenth Century Vision", ele escreveu:
"Ao acessar a restruturação e reavaliação atual do socialismo, nós não precisamos adotar nenhuma de duas posições extremas: uma que se apega obstinadamente à ideia de uma transformação milagrosa da sociedade e da natureza humana 'no dia seguinte à revolução'; outra, que rejeita, juntamente com qualquer visão utópica, quase que o passado inteiro, com o intuito de se acomodar àquilo que parece possível, seja no longo ou no curto prazo. Nem devemos temer as reformas e posturas críticas que ocorrem agora, ou as interpretar como sintomas de uma crise profunda e talvez terminal. O socialismo, assim como o capitalismo, é um fenômeno histórico, sujeito a todos os tipos de mudanças e processos de desenvolvimento e decadência, e toda geração encontra novas situações, problemas e oportunidades - em grande parte herdados do passado, certamente - com os quais têm de lidar da maneira mais inteligente e resoluta possível. Ninguém pode prever exatamente que tipo de mundo os seres humanos habitarão daqui a cem anos, se eles ainda tiverem um mundo para habitar, mas ao menos nós podemos ter confiança, eu acho, em que a visão de socialismo do século XIX tornou-se uma parte duradoura dos acessórios da mente humana e em que a ideia e a prática do socialismo permanecerá efetiva por um longo tempo, não importa o quão modificada por novas experiências.
Tom não previu o colapso súbito dos regimes socialistas dos estados europeus quando escreveu em 1988 e no início de 1989, mas notou a conjuntura de sérios problemas económicos e políticos (p. 68) e a "possível (...) emergência de forças influentes pró-capitalistas que tendem à restauração, ou à restauração parcial, do capitalismo" (p. 72). Ele previu e esperou uma transformação mais moderada, que envolvesse a democratização política e a descentralização dos processos decisórios econômicos e na qual a propriedade dos recursos produtivos e a mistura precisa de mercados e planejamento pudesse ser elaborada de maneira prática e racional.
Tom não comentou sobre estas revoluções de 1989 em seu diário, embora tenha anotado, em junho de 1990, que pôde adicionar alguns comentários sobre estas mudanças à nova edição de Classes in Modern Society. Registrou que uma característica particularmente deprimente da situação atual era "a destruição do socialismo em grande parte da Europa do Leste (não apenas do stalinismo, que já estava vencido há muito, mas de qualquer tipo de socialismo democrático)". Numa análise de longo alcance sobre as estruturas emergentes das sociedades pós-comunistas, Tom escreveu:
Os movimentos nacionalistas c o retorno ao capitalismo são em grande medida compreensíveis como uma reaçâo contra quatro décadas (e mais tempo na União Soviética) de regimes autocráticos, stalinistas e neo-stalinistas, os quais fatalmente mancharam a ideia de socialismo. Mas o nacionalismo e o neo-capitalismo produzirão novos conflitos, ou restaurarão antigos, e nestas novas sociedades capitalistas a política de classes também ressuscitará. A transformação das sociedades do leste europeu (...) reintroduz (...) todos os problemas e conflitos que advêm de desigualdades de renda e riqueza, de dominação de classe, flutuação e inseguranças económicas e desemprego generalizado. (Classes, p. 97-98).
Como notou em The Socialist Economy, quando a restauração do capitalismo parecia apenas uma remota possibilidade, esta evolução destrói a noção marxista original de um movimento unidirecional e irreversível para o socialismo (Classes, p. 98; The Socialist Economy, p. 72): "Mas o principal elemento da obra de Marx era uma análise realista das origens do capitalismo e do seu desenvolvimento posterior, da origem do movimento da classe trabalhadora, dos conflitos crescentes entre as classes. E este é o tipo de análise que ainda deve ser efetuado, em novas condições." (Classes, p. 98). Termina o livro com o mesmo tom cauteloso de muitas das passagens citadas anteriormente:
(...) Existe, neste fín de siècle, uma confusão de imagens sobre o futuro. As demandas de grupos e indivíduos por maior igualdade de condições e por mais democracia, especialmente no sentido de uma maior participação em todos os processos de 'produção da sociedade', ainda são fortes. Mas serão estas demandas satisfeitas? A experiência dos países socialistas mostrou que o caminho para uma sociedade 'sem classes' não é nem direto nem tranquilo, e que as novas classes e elites, assim como os regimes ditatoriais, podem muito bem aparecer no caminho. Então, tornou-se relativamente fácil apresentar as vantagens de um capitalismo dinâmico e democrático, apesar de suas desigualdades e incertezas econômicas gritantes; e concomitantemente mais difícil esboçar, em termos que sejam apropriados para o tempo presente, a estrutura de um novo tipo de sociedade. A oposição de interesses de classes nas sociedades capitalistas - entre os proprietários de capital e os sem propriedade, os poderosos e os subordinados, 'aqueles que vivem na luz e aqueles que vivem na escuridão' - não mais se manifesta de maneira tão evidente nos conflitos de classes, e a expressão política futura destes interesses dependerá, mais crucialmente que antes, da forma em que uma alternativa para o capitalismo seja concebida e implementada, num processo gradual através do debate critico e à luz da experiência de políticas diferentes. Isto é necessário, acima de tudo, em relação à estrutura econômica de uma sociedade socialista. (p. 110-111).
Em um dos últimos trabalhos que completou, a segunda edição de Political Sociology, Tom conclui com as seguintes palavras:
(...) em toda teoria social científica existe um componente que Schumpeter chamou 'visão', mas que também poderia ser descrito como as ideias de fundo de um paradigma, que influencia na determinação do foco de atenção e na escolha dos elementos centrais de análise. A interpretação da política global que eu desenvolvi aqui deriva em parte de tal paradigma, no qual enfatizo a importância, ao longo do século XX, da oposição entre o capitalismo e o socialismo e, mais geralmente, entre aqueles processos e políticas que levam, ou ao aumento, ou à diminuição das desigualdades em suas diversas formas nas sociedades e no mundo como um todo. A importância desta oposição será enfatizada, eu acredito, se os movimentos socialistas do futuro forem capazes de expressar de maneira mais precisa, convincente e espirituosa, suas concepções de uma economia alternativa viável e de uma nova ordem social em escala mundial, como um ideal realístico que pode ser abordado gradualmente em circunstâncias variáveis. (p. 109).
A versão de socialismo de Tom não era, portanto, nem a de um fundamentalista, nem a de um realpolitiker; era cautelosa, falibilista e aberta a novos insights dos pensamentos feminista e ecológico. Seu socialismo era alimentado por um impulso igualitário que chamava a atenção de todos os que o conheciam como sendo um elemento central de seu estilo pessoal. Como muitos no Ocidente, ele era levado por uma preferência plenamente racional para o socialismo descentralizado baseado na autogestão, em detrimento de uma centralização estatal que apostava, mais do que poderia ser justificado, no sistema Iugoslavo e nos prospectos de uma revolução semelhante no Leste Europeu e na União Soviética. Mas ele nunca percorreu o caminho fácil, de muitos socialistas ocidentais, de descartar o "socialismo existente" como algo sem nenhuma relevância para seus projetos intelectuais e políticos. Nisto, assim como em muito mais, permaneceu completamente lúcido e honesto, comprometido com as vocações tanto da ciência quanto da política.
Notas
[1] Sou extremamente grato a Katherine, Eleanor e Stephen Bottomore por terem lido e comentado um rascunho deste artigo e por sua permissão em citar o diário pessoal de Tom.
[2] Diário, introdução à seçao 1949-50: Tom cultivou um grande interesse por filosofia, assinando dois periódicos filosóficos, e por literatura, especialmente pelos trabalhos de Robert Musil e Virginia Woolf.
[3] "La mobilité sociale dans la haute administration française", Caiher Internationaux de Sociologie, vol. 13, 1952.
Um comentário:
Eu li esse post hoje, 18 de junho, pela manhã. A's 17:00 mais ou menos, conectando-me para ter noti'cias da Copa, fiquei sabendo que Saramago morreu. Um na sociologia, outro na literatura, duas pessoas que envelheceram e morreram sem vergonha de seu humanismo de esquerda. Sinto-me o'rfã, de alguma forma. Que feliz-triste coincidência a do Cazzo: falar de um quando o outro estava morrendo serenamente ao lado de seu amor. Abraço.
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