segunda-feira, 12 de julho de 2010

BBB (Bruno Brasil Barbárie)


Fernando da Mota Lima

Quem conhece algo da tradição dramática e literária relativa ao crime sabe o que é o mito do crime perfeito. Ele consiste na fantasia do planejamento e execução do crime indesvendável, o crime que nenhum Sherlock Holmes teria a inteligência e o poder de decifrar e portanto punir. Uma das coisas que me horrorizam nos grandes crimes correntemente praticados no Brasil é a presença do ingrediente de brutalidade sem cálculo. Mata-se não apenas com requintes de barbárie, com impiedade inconcebível na nossa noção de normalidade humana, mas também com imperfeição grosseira. Noutras palavras, são crimes praticados sem nenhum vestígio de inteligência e cálculo. Chocam ainda por serem também isentos de paixão. O crime passional, não importando seu horror, é humanamente compreensível. O que talvez mais me horroriza no crime bárbaro é minha incapacidade de compreendê-lo, de enquadrá-lo em alguma noção de humanidade votada à destruição. Portanto, este artigo, escrito por alguém que nada entende de crimes nem deles felizmente participa, não pretende explicar ou compreender o que me parece em último caso inexplicável e incompreensível.

Por que estão se banalizando no Brasil crimes como este que o goleiro Bruno e seus associados são acusados de cometer? Serão fruto de algum mal obscuro e ininteligível existente em alguns indivíduos? Serão um mero produto do meio, como sugere a pergunta feita por Sandra Annenberg, apresentadora do Jornal Hoje, a um psiquiatra forense? Melhor dizendo, ela perguntou se a causa do crime não estaria no fato de Bruno ter vivido uma infância sem pai e mãe, marcada assim por formas traumáticas de privação infantil. Isso é coisa de psicologia de folhetim, ou sociologia de almanaque. Milhões de pessoas no mundo, sem exagero, sofreram formas de privação semelhante sem todavia incorrerem em qualquer tipo de crime, muito menos um do tipo que é imputado ao goleiro.

Estou com isso isentando as condições do meio de qualquer responsabilidade? Muito pelo contrário. O meio importa, sim. Importa de forma poderosa, mas não desse modo grosseiro sugerido pela pergunta da jornalista. A pergunta dela é sintoma, antes de tudo, da cultura da vitimização corriqueira no presente. Quero dizer, estamos sendo condicionados a isentar-nos de qualquer responsabilidade moral com respeito a nossas vidas e ações. Somos, noutros termos, vítimas da vida e das circunstâncias. Ora, penso precisamente o contrário. Penso que todo ser humano é moralmente responsável pelas ações que pratica. Isso não anula, friso, o peso variável das circunstâncias, apenas afirma a necessidade do reconhecimento de uma instância moral regendo nossas ações. Se não aceitamos isso como um fato, então precisamos coerentemente inocentar qualquer tipo de ação humana, além de suprimir a noção de liberdade ou livre arbítrio do horizonte humano.

Vejamos agora como o meio importa. O capitalismo brasileiro já foi mais frequentemente qualificado como selvagem. Era moda assim dizê-lo durante a ditadura militar, quando foi imposto ao país um processo de modernização capitalista autoritário. Ele consistia, melhor dizendo, na mobilização de processos de crescimento econômico que modernizavam o país sem todavia eliminar as condições de atraso e opressão típicas das sociedades pré-modernas. Esta é precisamente uma das singularidades do nosso capitalismo, a que moderniza reproduzindo as condições de atraso. Trocando isso em miúdos, o Brasil entrou para o clube privilegiado das dez grandes economias do mundo sem no entanto suprimir suas características retrógadas ou iníquas correntemente supostas na expressão herança maldita. É uma expressão, sabem os leitores, muitas vezes usada pelo próprio Presidente da República. Ela supõe, entre outras coisas, a persistência das duas grandes pragas que marcaram nossa formação como nacionalidade e povo: o colonialismo e a escravidão.

Peço desculpas aos leitores pelo parágrafo acima, pretensamente sociológico, mas ele importa para compreendermos algo do nosso capitalismo. Mais importante ainda, ele nos ajuda a compreender alguns grãos da nossa barbárie. Deixando a sociologia de lado, essa herança maldita se manifesta a todo momento em fatos sociais como estes: a miséria visível nas nossas ruas, a hiperexploração da mão de obra, o trabalho infantil, a corrupção endêmica, a política do deus dará, a democracia seletiva, com perdão do paradoxo, a prostituição disseminada na sociedade etc. Sintetizaria tudo isso dizendo simplesmente que no capitalismo à brasileira nos tornamos mercadorias baratas, mercadorias expostas, tão sem máscara ou verniz de humanidade quanto os crimes que são objeto deste artigo.

Exemplos? O Jornal Hoje, novamente ele, apresentou ontem, em meio às repercussões sensacionalistas do crime imputado a Bruno, uma reportagem sobre a fortuna que ele perderá se for condenado. Vemos então um economista expondo, do alto de sua ciência sem alma, do seu saber inconsciente, quanto Bruno perderia se continuasse jogando no Brasil, quanto se se transferisse para a Europa, sonho de todo atleta brasileiro. Isso diz tudo sobre a banalidade do mal no noticiário da mídia, que aliás mais uma vez espremerá o crime até a última gota de sangue. O público, por sua vez, ávido de sangue, acompanha fascinado esse circo de horrores produzido pela mídia a cada crime sangrado na nossa realidade. Outros virão.

Exemplos? O acusado do crime a mando de Bruno, cujo cognome é Bola ou Paulista, foi expulso da polícia civil em 1992. Depois disso foi acusado de muitos crimes sem todavia sofrer qualquer punição. A própria polícia admite agora que é um homem frio e perigoso. A julgar pelo pouco que vi e ouvi, o dossiê do tipo é bem fornido de crimes. No entanto, viveu todos esses anos sob completa impunidade. Aliás, a julgar pelo que circula agora sobre a ficha corrida dos envolvidos, quem nessa história é inocente? Aliás, quem acaso teve a curiosidade de contabilizar o número de crimes que envolvem policiais ou ex-policiais?

Voltando ao contexto geral, nosso capitalismo continua sendo, reafirmo, capitalismo selvagem. Como acima frisei, longe de mim a presunção de propor qualquer explicação para o crime que aqui discuto. Mas como não perceber a sombra nefasta desse capitalismo pairando sobre nossos horrores? Como não perceber que no cerne da nossa anomia social, no cerne de uma sociedade privada de regulação civilizada, as instituições socializadoras fundamentais não funcionam? Melhor esclarecendo, a família, a escola, a religião, a mídia, nada disso funciona de acordo com ideais e valores inerentes a uma sociedade verdadeiramente civilizada. Por isso repito, sem pessimismo ou bola de cristal, que outros crimes virão, iguais ou piores, enquanto a roda viva do nosso capitalismo brutal continuará girando e faturando, vertendo sangue e consumindo vidas que valem zero. Não sou eu quem o diz, são os fatos apreensíveis na mídia, na indústria publicitária, na máquina produtiva, no circo de horrores que é o capitalismo à brasileira.

13 comentários:

Cynthia disse...

Fernando,

parece que, neste caso, ainda contamos com uma ajudinha extra: a eficiência da máquina de matança do mundo do tráfico, aliada à imbecilidade da juíza que, a fim de não "banalizar" a lei Maria da Penha, decidiu negar o pedido de proteção feito pela vítima no ano passado.

Le Cazzo disse...

Antônio Ermírio acabou de me escreveu uma carta dizendo que, como seguidor e admirador do Cazzo, acha um absurdo que Fernando diga que ele teve algo a ver com essa estória. E disse que pode provar, com testemunhas e tal. Jonatas

Tâmara disse...

Pessoal,
O texto de Fernando é praticamente quase tudo o que li a respeito desse crime monstruoso. Antes mesmo que as mídias expusessem-no como produto de consumo, eu estava evitando ler a respeito. Com a leitura, continuo com uma dificuldade enorme para pensa'-lo porque, embora considere que o Brasil em sua historicidade seja um recurso importante para entender o que se passou e se passa, penso que colonialismo, escravismo e capitalismo selvagem são insuficientes. Assim como me pergunto se podemos dizer realmente que o crime hediondo esta' banalizado no Brasil. Pergunto, porque as conversas que escuto por ai', não de intelectuais mas do que chamarei pretensiosamente de brasileiros medianos, indicam que esse caso choca sim a sensibilidade das pessoas e que e' exatamente por isso que as mi'dias (e os responsa'veis das investigações) conseguem nutrir essa lamenta'vel espetacularização.
Naturalmente, a sensibilidade das pessoas acompanha-se de suas representações e estas podem desesperar. Eu, por exemplo, fiquei estupefata com duas jovens adolescentes explicando-me que a moça barbaramente assassinada fazia programa (se prostituia) e que fez pressão demais sobre o goleiro! Ou seja, mulher imoral e chantagista pode colher o que plantou, mesmo se e' verdade que o crime foi exagerado! Eu não as chamei de estu'pidas nem dei umas boas palmadas, mas deixei claro o quanto era estarrecedor saber que meninas podem pensar assim.
Enfim, nesse coquetel de horrores, acho que Cynthia trouxe umas boas pistas. Pensando nelas, termino com duas problema'ticas interdependentes nessa monstruosidade, ou seja, cultura do tra'fico e condição feminina.

Cynthia disse...

Tâmara,

Concordo com você que capitalismo, colonialismo e escravidão não explicam fenômenos como esse, embora o primeiro tenha uma certa relação com a espetacularização da mídia.

veja o que o site da UnB publicou hoje sobre o caso a partir da análise de professoras do departamento de antropologia (Lia Zanotta Machado) e de jornalismo:

http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=3580

Assino embaixo.

Luciano Oliveira disse...

Meu caro Fernando,

Como sempre, achei seu artigo excelente. Muito bem escrito e ousado nas idéias. Sobre essas, entretanto, gostaria de comentar o que considero uma nuançada contradição no seu argumento, por assim dizer, “anti-sociológico” a respeito dessa barbaridade que muito provavelmente será substituída por outra antes de ser esquecida...

Explico-me: de um lado você diz: “longe de mim propor qualquer explicação”; mas, apesar dessa recusa tão marcada, refere-se ao nosso “capitalismo brutal” como uma “sombra nefasta pairando” sobre esses fatos. Sorry, mas, nesse caso, você está, sim, fornecendo uma explicação! Não numa relação direta, claro, mas indireta; inclusive fazendo menção, logo depois, às instâncias de socialização que não funcionam mais, e que portanto “outros crimes virão” – e aqui chamo a atenção para o fato de que você está, com isso, cumprindo uma das funções primordiais de toda ciência, que é fazer previsões...

Pessoalmente, eu que também penso e às vezes escrevo sobre essas coisas, confesso que não sei exatamente que termos usar para estabelecer uma relação entre os índices assustadores dessa criminalidade bárbara que nos assola e a ausência, entre nós, de um “processo civilizador” à la Elias ou, se preferirmos, de uma “sociedade disciplinar” à la Foucault. O que sei é que, mesmo recusando as hipóteses (vou usar um chavão) “positivistas” que sonham em vão estabelecer correlações estatísticas rigorosas entre variáveis “culturais” e eventos criminosos, ambos estamos explicando alguma coisa...

Com o abraço do admirador e amigo de sempre,

Luciano Oliveira

Anônimo disse...

Caros Cynthia, Tâmara e Jonatas:
Comentando um pouco o que vocês escreveram, começo aludindo à tirada trocista de Jonatas. Digo que é uma tirada trocista porque ele sabe muito bem que minha análise jamais suporia a redução de um argumento sociológico a um indivíduo (Antonio Ermínio, no caso)ainda quando representativo. Passando ao comentário de Tâmara, longe de mim a presunção de explicar o crime com os ligeiros argumentos que esboço relativos à nossa forma particular de capitalismo, que compreende colonialismo e escravidão. Acrescentaria ainda o patriarcalismo, que fincou raízes profundas sobretudo no Nordeste. Sei que me exponho ao risco de dissolver o fato específico, o crime, em vagas abstrações teóricas. Se assim procedi, foi apenas visando remover a questão do seu enquadramento grosseiramente factual ou moralista, como é evidente no exemplo citado e justamente criticado por Tâmara. Quando aludo à banalização do crime bárbaro, penso não em termos estatísticos, o que seria absurdo, mas no contexto de recepção do crime, tão banalizado que já se tornou previsível para o observador atento. Meu artigo fornece indicações claras disso e o adendo de Cynthia é também importante. No mais, volto a afirmar, meu artigo não tem nenhuma presunção de explicar o objeto da minha análise.
Fernando.

Anônimo disse...

Luciano:
Grato pelo comentário generoso, de resto qualificado pelo tom crítico. Concordo com a observação relativa à `"nuançada contradição" do meu argumento. Tinha consciência dela ao escrever o artigo, mas não sabia nem sei como resolvê-la. Há crimes, como este, que escapam à minha falível capacidade de explicação. As variáveis que assinalo, acrescidas do seu comentário,lançam alguma luz no subsolo humano do mal, mas não vão além disso.
Fernando.

Tâmara disse...

Fernando,
Seu texto tem, em primeiro lugar, o enorme mérito de abrir a discussão no Cazzo. E se eu fui diretamente ao que achei insuficiente como quadro analítico,é por uma razão técnica: estou no Brasil por quinze dias, sem computador, com pouco acesso à internet. Sofrendo a pressão do tempo, consegui apenas levantar minhas dúvidas centrais, sem considerar devida e analiticamente sua coragem para enfrentar a monstruosidade.
Quem participa de uma forma ou de outra do Cazzo tem muito a agradecer por sua coragem.

Tâmara disse...

Jonatas,
Quer dizer então que Antônio Ermírio é admirador do Cazzo! O rapaz tá é modificado...Benza Deus...Não é nenhum preconceito, não! Juro e prometo! Mas confesso que fico aqui torcendo para que meus humildes textos não sejam os preferidos desse ilustre admirador.

Tâmara disse...

Cynthia,
Muito obrigada por ter indicado a análise do pessoal da UNB. Que outros leitores do Cazzo também aproveitem. Quanto a mim, só quando tiver mais tempo para a internet. Beijão.

Le Cazzo disse...

Vai terminar essa estória eu sendo punido de alguma forma (legal?) como boateiro. O Antônio Ermírio do comentário (sei que vocês entederam) é retórico. Jonatas

Cynthia disse...

Quinze dias de férias, Tâmara? Que luxo!!!

Eita, Jonatas, bateu uma paúra?

Bjs.

Le Cazzo disse...

Um cavaleiro do bem, como eu... "De que tanto me defendo?" Jonatas