sábado, 3 de julho de 2010

Universidade, mecenato e mercado



Por Ricardo Antunes (IFCH- Unicamp) e Marcus Orione Gonçalves Correia (Faculdade de Direito- USP). Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo. São Paulo, sexta-feira, 02 de julho de 2010. Cedido ao Cazzo por Ricardo Antunes.

Em reiteradas oportunidades, o reitor da Universidade de São Paulo (USP) tem-se manifestado a favor de doações de "mecenas" para a modernização do ensino universitário. Chegou a fazer tal declaração, eivada de significados e consequências, em momento tenso e de greve nas universidades paulistas.

Utiliza-se como argumento central o fato de que seria impossível a manutenção da universidade pública sem subvenções de particulares, do novo "mecenato". Pela parceria público-privada, as universidades deslanchariam. Nenhuma repercussão negativa haveria, tem dito, como resultante desse auxílio desinteressado dos doadores. E tudo isso, ainda segundo advoga o reitor, deve ser pensado "sem ideologias", ainda que a manifestação tenha se dado no contexto de corte do ponto dos servidores públicos em greve -o que conspira contra a essência desse direito.

Como seria termos um curso de ciências sociais mantido por uma grande montadora? Ou, ainda, discutirmos as complexas relações do direito do trabalho, sob o mesmo patrocínio?

O ensino universitário tem papel vital para o desenvolvimento de qualquer país. É óbvio que, para a geração desse conhecimento, há necessidade de recursos.

No entanto, ao se recorrer ao dinheiro privado, há evidente possibilidade de comprometimento dessa missão. Na pesquisa, subvenções particulares não raro levam à distorção dos fins públicos. O dinheiro investido, em geral, é destinado a áreas de interesse do próprio setor privado, relegando a um segundo plano projetos de natureza pública. Assim, ao invés de o país determinar os rumos do que se pretende, estrategicamente, pesquisar, quem o faria seriam os investidores, os tais novos mecenas, as corporações.

O ingresso do dinheiro privado nas universidades públicas ameaça também a liberdade de cátedra. O ato de ensinar, de forma livre e sem pressões de interesses, é um dos pilares do avanço das ciências humanas, exatas ou biomédicas.

Somente a partir da liberdade de expressão nas salas de aula é possível acreditar-se na viabilidade de a universidade contribuir para a construção de outra sociedade. Com a entrada de verbas de instituições privadas, gradualmente, o que se viabilizaria é que aqueles que não partilham de seus pressupostos ideológicos ficariam mais fragilizados e, com o tempo, escassos na universidade pública.

Há outra questão vital que se desconsidera: por que as universidades públicas são, de longe, aquelas que geram conhecimento, ciência e reflexão de ponta, e não as infindáveis escolas superiores privadas que se espalham pelo país? Importante seria uma pesquisa desinteressada enfrentar livremente esse tema. Mas o reitor da USP tem acrescentado, "isento de ideologias", que a universidade pública ganharia se seguisse os passos das escolas privadas de "renome".

Portanto, a preservação da integridade da universidade pública depende, sim, do aumento de recursos públicos, bem como da remuneração digna de seus docentes e de seus funcionários - e esse é o desafio atual.

Se a proposta do reitor da USP fosse efetivada, estaríamos mais próximos de uma universidade a serviço do mercado, começando pela via do mecenato.

8 comentários:

Le Cazzo disse...

"Sem ideologias" é ótimo. Mas difícil mesmo é convencer algumas pessoas de que universidade não é empresa, que aluno não é cliente e que professor não é proletário.

Cynthia

Anônimo disse...

Li com atenção o artigo co-assinado pelo professor Ricardo Antunes, uma referência para mim. Devo dizer que concordo inteiramente com suas ponderações críticas acerca de um mecenato que terminaria por impor às universidades públicas, mesmo que isso aconteça "en douceur", uma lógica dos negócios privados na produção e reprodução do saber. Num país como o Brasil, onde conceitos vetustos como "capitalismo selvagem" ainda estão em vigor, isso não pode acontecer. Aliás, uma das minhas teses favoritas é a de que no Brasil as teses marxistas mais grosseiras ainda servem para analisar a nossa sociedade.
Isto dito, deixe-me introduzir um bemol neste comentário.
Discordo de Antunes e do co-autor quando, sem maiores ponderações, insurgem-se contra a ameaça de corte no ponto dos servidores da USP em greve. Nós, nas IFES, já vivemos muito esss situação que nunca hesitei em chamar de grevismo gratis, ou seja, greves sem nenhum risco, subvencionadas pelo dinheiro do nosso povo. Assim é muito fácil. E é por essas e outras que publicações que aderiram a uma molecagem anti-esquerdista primária como a Veja têm tanto prestígio junto à nossa opinião pública mais imbecil.
Vou mais além. Se as universidade públicas não podem se transformar em negócios, alguns princípios de gerenciamento de qualquer organização (sobretudo as públicas, eu diria!), têm de ser nelas introduzidos. Essa é a maior divergência que tenho em relação ao sindicalismo nas universidades: o fato de que, como ocorre em qualquer movimento desse tipo, entra-se numa lógica de confronto em que ninguém tem coragem de encrar as mazelas da instituição. Já que falamos tanto nisso na ciência política, já que exigimos tanto isso dos outros, que tal nos perguntarmos sobre nossa própria "acontabilidade" (o neologismo é de Rogério Arantes) perante a sociedade que nos sustenta? Intra-muros, como ocorre com qualquer corporação, indignamo-nos entre nós com professores que não querem dar aula, com funcionários que reivindicam (e geralmente levam!) horários especiais que muitas vezes nem esses terminam cumprindo etc. etc. Quem, como eu, já assumiu uma coordenação de curso, sabe do que estou falando... Mas nada disso aparece nas nossas discussões públicas.
Enfim, acho que terminei me desencaminhando da discussão principal, que era a privatização sub-reptícia das instituições públicas de ensino superior no Brasil. Sim, elas devem continuar públicas! mas com todas as implicações que esse galardão exige.

Luciano Oliveira

Anônimo disse...

Li com atenção o artigo co-assinado pelo professor Ricardo Antunes, uma referência para mim. Devo dizer que concordo inteiramente com suas ponderações críticas acerca de um mecenato que terminaria por impor às universidades públicas, mesmo que isso aconteça "en douceur", uma lógica dos negócios privados na produção e reprodução do saber. Num país como o Brasil, onde conceitos vetustos como "capitalismo selvagem" ainda estão em vigor, isso não pode acontecer. Aliás, uma das minhas teses favoritas é a de que no Brasil as teses marxistas mais grosseiras ainda servem para analisar a nossa sociedade.
Isto dito, deixe-me introduzir um bemol neste comentário.
Discordo de Antunes e do co-autor quando, sem maiores ponderações, insurgem-se contra a ameaça de corte no ponto dos servidores da USP em greve. Nós, nas IFES, já vivemos muito esss situação que nunca hesitei em chamar de grevismo gratis, ou seja, greves sem nenhum risco, subvencionadas pelo dinheiro do nosso povo. Assim é muito fácil. E é por essas e outras que publicações que aderiram a uma molecagem anti-esquerdista primária como a Veja têm tanto prestígio junto à nossa opinião pública mais imbecil.
Vou mais além. Se as universidade públicas não podem se transformar em negócios, alguns princípios de gerenciamento de qualquer organização (sobretudo as públicas, eu diria!), têm de ser nelas introduzidos. Essa é a maior divergência que tenho em relação ao sindicalismo nas universidades: o fato de que, como ocorre em qualquer movimento desse tipo, entra-se numa lógica de confronto em que ninguém tem coragem de encrar as mazelas da instituição. Já que falamos tanto nisso na ciência política, já que exigimos tanto isso dos outros, que tal nos perguntarmos sobre nossa própria "acontabilidade" (o neologismo é de Rogério Arantes) perante a sociedade que nos sustenta? Intra-muros, como ocorre com qualquer corporação, indignamo-nos entre nós com professores que não querem dar aula, com funcionários que reivindicam (e geralmente levam!) horários especiais que muitas vezes nem esses terminam cumprindo etc. etc. Quem, como eu, já assumiu uma coordenação de curso, sabe do que estou falando... Mas nada disso aparece nas nossas discussões públicas.
Enfim, acho que terminei me desencaminhando da discussão principal, que era a privatização sub-reptícia das instituições públicas de ensino superior no Brasil. Sim, elas devem continuar públicas! mas com todas as implicações que esse galardão exige.

Luciano Oliveira

Cynthia disse...

Lulu, eu disse a Ricardo exatamente o que você disse em relação às greves. Ele concordou comigo, mas emendou: "e qual a alternativa melhor?". Tô muda até agora...

Tâmara disse...

Bem, Lulu-Cibalena, você tirou férias de seu estado de espi'rito Copalino em grande estilo. Eu tinha lido o artigo quando saiu na Folha e o argumento em torno do direito do que você chama grevismo gratis incomodou. Mas eu estava tão preocupada com a partida Brasil X Holanda que não quis refletir sobre o artigo. Depois veio o desastre, a derrota da Argentina no outro dia (fiquei alegre e triste com a partida dos Hermanos), em suma, são tantas emoções...
Seu comenta'rio põe isso em discussão e que bom que assim seja. Não concordar com uma universidade a serviço do mercado não pode significar ao mesmo tempo não enfrentar os problemas das relações entre universita'rios, sociedade que a mantém e Estado.
Cynthia, como você, eu também ficaria muda com a emenda. Valeu.

João Paulo Rodrigues disse...

Pois eu acho que as propostas de privatização do ensino superior somente campeam por causa do apontado pelo Luciano. E eu diria que a ausência de discussão séria sobre a realidade das IFES deriva menos dos males do mercado do que dos males de nosso Estado. Em parte, é devido à apropriação privada do público pelos membros das IFES (nossa classe, como fala a ANDES) que estamos nessa.

Cynthia disse...

Eu acho que você tem toda razão, João Paulo. E é justamente por isso que essas questões devem ser mantidas separadas. A privatização do ensino público e a introdução de uma lógica de mercado pura e simples não apenas não vai resolver nossos problemas, mas tende a criar outros que, somados aos primeiros, tornarão as coisas ainda piores.

João Paulo Rodrigues disse...

Idem, ibidem. Seria o caso então de voltar à pergunta do Antunes e responder que em vez de só fazer greves de fachada, devessemos conter o impulso e dedicar mais tempo a formular propostas. A greve se torna uma reação espasmódica e tática que vai apenas minando mais e mais a universidade, abrindo espaço para as medidas de remendo, em parte fruto da frustração de setores que querem apenas tocar suas vidas acadêmicas. A maneira de ganhar este pessoal talvez seja abrir um diálogo franco e amplo. Barrar a lógica mais ampla e simplista do mercado talvez passe pela inclusão de alguns regimes "privatistas", preservando os "arcaísmos" tradicionais que nos cabem.