quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Au revoir, Cher Claude!


Claude Lefort

Cynthia e queridos amigos,

Como podem imaginar, estou pessoalmente desolado com a morte de Claude Lefort. Mas sabia já faz algum tempo que ele não viveria muito. Não sei que “causa mortis” lhe atribuíram, mas para mim morreu de amor. Juro que estou falando sério. Há cerca de um ano enviei-lhe os originais do livro que só agora foi publicado. Com sua habitual atenção ele me respondeu, e me deu a notícia do recente falecimento de sua esposa. Com uma letra trêmula, como a indicar que a mão que a escreveu estava bastante fragilizada, fez a seguinte declaração de amor à morta: “Não parei de amá-la desde nosso primeiro encontro, há 60 anos.”

Sessenta anos! Nesses tempos em que tudo, até o amor, se “liquefez”, tive um surto de romantismo. Pensei no destino de grandes amantes que a morte, ao invés de separar, reuniu: Abelardo e Heloísa, Stefan Zweig e Lotte, André Gorz e Dorine. E foi então que me veio a apreensão de que ele não sobreviveria muito tempo ao desaparecimento de Annie, sua esposa. Veio-me também o receio de que talvez eu não conseguisse publicar e fazer chegar-lhe às mãos o livro que lhe dediquei antes de sua partida... Meu receio, infelizmente, se confirmou. Por pouco, pouquíssimo, mas, hélàs, se confirmou: pus o livro no correio na quarta da semana passada, e ele faleceu no domingo, quatro dias depois. Não pode ter chegado a tempo!

Foi em meados dos anos 80 que o descobri. Meio por acaso, li um luminoso texto seu, “Direitos do Homem e Política”, onde ele fazia uma lúcida crítica da leitura insuficiente que Marx havia feito da questão direitos humanos num texto dito de juventude, mas brilhante: “A Questão Judaica”. Eu, que tinha uma formação jurídica, que tinha (sem nenhum heroísmo, adianto) combatido o bom combate contra a ditadura militar que havia espezinhado esses direitos, achava que havia alguma coisa errada no juízo depreciativo de Marx, e queria fazer um trabalho sobre isso. Mas, de um lado, não sabia como expressar o que sentia; de outro, estava meio tolhido pelo que implicava, à época, criticar Marx; dizer, sem rodeios, que ele não tinha vivido sob uma ditadura para saber o que é bom pra tosse! Nesses momentos é reconfortante encontrar um autor importante que diz aquilo que não sabemos ou não temos a ousadia de dizer. Foi uma espécie de libertação.

Escrevi-lhe uma longa carta, onde me candidatava a fazer um doutorado sob sua orientação. Ele rapidamente respondeu que sim. Foi uma alegria imensa! Naquele tempo essas coisas eram fáceis, e, com sua carta de aceitação, consegui uma bolsa do CNPq para fazer meu doutorado. E eis-me em Paris, aluno de Lefort!

Guardo lembranças ricas e mesmo afetivas dos nossos encontros. Não que tivéssemos nos tornado íntimos. Europeu não se torna facilmente íntimo de aluno. Sempre o tratei de “Monsieur Lefort”, e ele sempre me tratou de “Monsieur Oliveirá”... Mas houve momentos entre nós de grande distensão, em que nos permitimos falar de nossas vidas, nossos filhos, nossos medos, nossas esperanças. Depois dos seus seminários, cheguei a partilhar a mesa daqueles enfumaçados cafés parisienses em que os alunos continuam, depois da aula, chaleirando o mestre. Mais significativo foi uma única vez em que fui à sua casa, para os retoques finais da tese, e ele me ofereceu um cafezinho e me apresentou Annie - uma senhora elegante, alta e magra, como costumam ser as parisienses, de cujo rosto, confesso, não guardei nenhuma lembrança. Mas tudo dentro dos melhores trinques franceses: Vous pra lá e Vous pra cá; nada de Tu.

Eu já tinha saído daqui seu “discípulo”, mas isso não tem a menor importância porque todo orientando é um discípulo automático do orientador. O que realmente tem importância é o fato de que, para além dessa lealdade protocolar a um pensamento, o contato maior com sua obra me fez ver que estava de fato ao lado de alguém em cuja sensibilidade minha própria sensibilidade se reconhecia. Quando, mais recentemente, voltei a lê-lo para escrever o livro, tive a impressão de que essa identificação era maior, de modo que até comecei a me perguntar se à época do nosso contato eu tinha plena consciência da importância que seu pensamento teve para solidificar minha maneira de olhar o mundo - ou se, com a passagem dos anos e a maior sabedoria que ela traz consigo (única vantagem que existe em envelhecer!), sua influência cresceu sobre mim.

Este não é o momento de revisitar sua obra, tarefa que me propus justamente no livro que escrevi para homenageá-lo (perdoem esse surto de retórica!) e exprimir minha gratidão. Mas, para concluir, se eu tivesse de destacar um traço seu que vincou minha definitiva adesão à democracia, escolheria seu ensinamento de que a essa “forma de instituição da sociedade” porta consigo uma fragilidade substancial: nela, temos de suportar o fardo da indeterminação, justamente porque se trata de “um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo - debate necessariamente sem fiador e sem termo” - para citar uma de suas belas frases.

Au revoir, Cher Claude!

Luciano Oliveira

5 comentários:

Cynthia disse...

Lulu,

Confesso que não conheço a obra de Lefort, nem tive tempo de ler seu livro. Mas tenho grande simpatia por homens que morrem de amor - esses Werthers extemporâneos...

Le Cazzo disse...

O livro de Luciano, que ainda não terminei por conta de certos comprometimentos burocráticos, já havia me convencido a ler Lefort. O carinho e admiração deste último texto que o Cazzo publica reforçam minha decisão. Nesse negócio ao qual nos dedicamos é mais fácil nos emocionarmos com mortos que com vivos. Sorte sua, Luciano. Jonatas

Lillian disse...

Lulu,
Parabéns pelo artigo pleno de afeto dedicado a seu velho professor. Que ele esteja em paz junto a sua amada.

Tâmara disse...

Luciano,
Deu vontade de chorar, esse texto. Mas seria um choro bom, desses que resultam dos rituais sinceros de luto, quando sentimos que o morto volta à vida através de quem o conheceu, admirou e guarda consigo.
Eu também não conheço a obra de Lefort, mas terei a sorte de começar a conhecê-la através de sua revisão - que sera' lançada em momento de tão misteriosa sintonia. Sintonia que, entre outras coisas, faz de você não so' alguém que guarda Lefort consigo como alguém que sustenta sua presença no mundo. Abraço bem apertado.

Suzana disse...

Caro Luciano!
Você lembra e lamenta a morte do mesmo Lefort que conheci, quando frequentávamos juntos o seu seminário, sobre as sofisticadas apresentações literárias da revolução no início do século XX, ou tantos outros caminhos transdisciplinares entre a história do pensamento e a política... e isso na rue de La Tour, na Paris dos anos oitenta...
Sim, estou muito triste hoje, lamentando essa morte do nosso querido M.Lefort. Mas eu estou especialmente desolada por vergonha...Você acredita que eu consegui ficar envolvida com a terminação de uns textos(mais um livrinho sobre as utopias, que também vai sair dedicado ao nosso professor...), mais aquelas exigentes coisas de família, mais a campanha eleitoral pela presidenta, que somente agora, passados três meses, fiquei sabendo da morte do professor!!!
Estou desolada, não só por sua morte que, como você bem disse, tem um aspecto romântico, e suponho tenha sido "paisible et digne" como tudo que ele vivia...
Sinto-me em dívida com ele: assim como não consegui terminar lá a tese, também não consegui fazer-lhe a homenagem que teria merecido, na hora de sua morte.Tentarei compensar a seguir, com todas as homenagens e os escritos que conseguir...