quarta-feira, 13 de outubro de 2010

« E eu que não creio…»



Tâmara de Oliveira

Uma misteriosa mas significativa sintonia entre acontecimentos tristes da semana passada remeteu-me a um filme do egpício Youssef Chahine, o que foi premiado em Cannes em 1997 – pelo grande prêmio comemorativo dos cinquenta anos desse festival. O filme que se chama em francês Le Destin e em árabe Al-Massir, faz uma leitura mais cinematográfica do que histórica das desventuras do filósofo aristotélico Averróis que, começando o filme como primeiro conselheiro de um califa meio « déspota esclarecido » de uma sociedade muçulmana tolerante, dialógica e festiva, termina tendo seus livros queimados em praça pública e sendo exilado no Marrocos. O califa ali aparece como um governante progressivamente acuado e submetido por emirs movidos pela convicção de que a única verdade legítima (epistemológica e ética) é a que eles acreditavam sobre o Corão. Como Averróis era daqueles que pensava e ensinava que a verdade teológica e a verdade filosófica não são necessariamente coincidentes, foi classificado e sancionado como inimigo da religião e nunca mais voltou à sua Córdoba natal.

Mas nesse olhar cinematográfico de Chahine sobre a trajetória de um homem que realmente viveu numa sociedade muçulmana do século XII, foi exilado por pressão de religiosos que incorporavam a instituição política daquela sociedade, mas nem por isso deixou de influenciar posteriormente o pensamento moderno, o alvo político contemporâneo é central. A evolução progressiva de uma Córdoba plural, pacífica e colorida para uma Córdoba unidimensional, violenta e cinzenta não deixa dúvidas ao espectador : Chahine estava filmando também suas desventuras diante do chamado fundamentalismo islâmico contemporâneo, este que teve relação direta com a proibição de seu filme anterior em seu país natal ; Chahine estava filmando também sua adesão à democracia. E, as cores e ritmos pelos quais o filme vai desvelando a passagem de uma Córdoba aberta para uma Córdoba enrigecida por uma política da intolerância religiosa, fez-me especular esta semana se esse cineasta, morto em 2008, foi leitor do filósofo Claude Lefort – que morreu em 03 de outubro de 2010, dia do primeiro turno de nossas eleições (pois é…). Mesmo se não for o caso, o homem do cinema fez uma obra-prima do que Luciano Oliveira (2010) apresenta como ensinamento fundamental do homem da filosofia sobre a democracia: o de sua fragilidade substancial.

Quando vi esse filme, em 1998, tive medo. Mas era um medo relativamente distanciado, talvez fosse melhor dizer agora que senti compaixão por sociedades que estavam sofrendo a ameaça ou a manifestação concreta de uma forma de totalitarismo – aquela onde chefes religiosos incorporam a identidade de um povo e a instituição política. Por outro lado, possivelmente porque Al-Massir é um filme esteticamente ancorado no ocidente (sua Córdoba aberta parece o final-feliz de uma comédia musical; sua Córdoba enrijecida lembra os momentos violentamente dramáticos de um western), mesmo naquela época aquele medo parecia mais próximo de mim do que minhas boas razões pretendiam. Boas razões como aquela que diz que o problema do mundo muçulmano é que ele perdeu o bonde da modernidade, ou seja, não viveu o processo histórico de desincorporação do político – que é o advento da democracia (Chauí, apud Oliveira : 2010).

Pois bem, acredito agora que a boa razão acima é dessas que não dissimulam muito bem a força de representações sociais (Moscovici, 2004) evolucionistas que um cientista social moderno pode interiorizar. Porque o problema do mundo muçulmano é também um problema de sociedades que ninguém pode afirmar que perderam aquele bonde – quer viajando em primeira, segunda ou terceira classe. Trata-se de problema substancial da democracia que pensadores como Claude Leffort (apud Oliveira : 2010) ou Ernesto Laclau (2000), para falar em utilizadores da noção de lugar vazio para a análise do poder e do político, conseguem enxergar melhor do que abordagens que, voluntária ou involuntariamente, encantam-se com a modernidade como se ela fosse O destino, o ponto de chegada inexorável do caminho humano para a liberdade e boa sociedade.

Ainda bem que destinos como o do mundo de luzes virado trevas de Averróis podem nos abrir os olhos. Porque a fragilidade substancial da democracia quer dizer também que, se vontades de abertura podem utilizar muito bem as novas tecnologias de informação e comunicação nos embates hegemônicos (como vimos durante a campanha eleitoral de Barack Obama), vontades totalitárias podem se sair melhor ainda com elas. Dizendo sinteticamente, a diferença fundamental entre essas vontades de hegemonia num regime democrático vivo, é que as primeiras (de abertura) aceitam a discussão sobre o legítimo/o ilegítimo enquanto que as segundas (totalitárias) participam dessa discussão com o objetivo de incorporar o poder para suprimir essa discussão.

De fato, se o medo distanciado que senti ao ver o filme de Chahine transforma-se hoje em dia em medo íntimo, é porque a campanha eleitoral de segundo turno no Brasil comporta violentamente o fardo da discussão entre o legítimo e o ilegítimo quanto à problemática do aborto. Como tantos no Brasil, fui violentada sem sair de casa, via e-mail. Recebi e li horrorizada um documento de campanha eleitoral em que o apoio à descriminalização do aborto é apresentado como parte de um « imperialismo demográfico » da « moderna estratégia do capitalismo internacional ». Li em jornais brasileiros que a candidata Dilma Roussef anda sendo caluniada até como assassina de criancinhas. Vi num blog que há um texto apócrifo e fictício circulando, sobre um suposto processo contra Dilma Roussef da parte de uma ex-empregada doméstica; no tal texto, define-se o processo como « por lesbianismo » !!! A homossexualidade é apresentada como transgressão, delito, crime ?!!!! As mulheres, os homossexuais : historicamente, quando esses são atacados, alguma força totalitária oraganizada está por trás. Li também que tanto Dilma Roussef como o candidato José Serra (beneficiário voluntário ou involuntário do fardo dessa campanha), parecem sentir-se na obrigação em falar na sua devoção a Deus a cada começo ou final de discurso. E comuniquei-me com amigos que estão entre a perplexidade e a angústia, corroborando a pertinência de meu medo.

Não se trata do medo de que fundamentalistas cristãos possam incorporar o poder no Brasil – pelo menos por enquanto. Eu acredito no potencial da sociedade brasileira para não confundir religiosidade com mera submissão a tradições religiosas. Sustentando-me agora em Habermas (1999) que, embora ao meu ver seja bem mais vulnerável a representações evolucionistas do que Lefort e Laclau, é também um grande pensador da democracia, acredito na potencialidade da crítica da tradição em sociedades abertas.

Só que tal potencialidade depende da sustentação da discussão democrática. A discussão sobre o aborto, por exemplo, é assunto muito sério e incompatível com uma campanha eleitoral presidencial : não são presidentes da República que decidem sobre essa legislação, mas sim o Congresso Nacional ; o amadurecimento dessa discussão exige tempo, informação, conhecimento e comparação de legislações e políticas públicas de países diferentes. Nos países onde algum tipo de descriminalização é adotada, por exemplo, o número de abortos não é maior do que onde ele é simplesmente proibido. Pelo contrário, com a descriminalização ele tende a diminuir, porque ela costuma acompanhar-se de políticas sociais e educacionais em torno de métodos anticoncepcionais. Ora, quando as mulheres defrontam-se com o problema de não poderem ter filhos em circunstâncias de vida difíceis, dificilmente vão escolher o aborto se elas conhecem e têm acesso a métodos anticoncepcionais acessíveis. Finalmente, para quem pensa que o aborto e métodos anticioncepcionais são pecados mortais (posição que a Igreja Católica adota oficialmente), é preciso lembrar que não é o Estado quem pode salvar os seres homens do pecado – são eles próprios com seu livre arbítrio, na intimidade de suas vidas.

Sendo assim, a importância que uma das vontades fundamentalistas cristãs tem assumido nessa campanha eleitoral já é suficientemente assustador : a de que uma certa concepção religiosa da vida (concepção que nem é a única no próprio universo das religiões) imponha-se como única concepção legítima na ordem social brasileira. E a legitimação que se tem dado a tal vontade, por razões exclusivamente eleitoreiras, ferindo de morte o princípio da ética da responsabilidade, remete-me direto ao bordão de Riobaldo : viver é perigoso.

E eu que não creio peço a Deus pelas meninas e meninos do Brasil, para que eles não cresçam num mundo onde, para serem respeitadas, as mulheres devam submeter-se às diversas formas de violência que a tradição judaico-cristã (da qual a muçulmana é herdeira) oferece à filha de Eva. Formas de violência às quais os homens também devem obedecer. E não esqueçamos que o ataque à homossexualidade faz parte dessa concepção totalitária da vida. Que mundo triste, seria… Pensemos no Afeganistão ; rezemos pelo Afeganistão.

Bibliografia

HABERMAS, J. Droit et démocratie. Paris : Gallimard, 1999.
LACLAU, E. La guerre des identités – grammaire de l’émancipation. Paris : La Découverte/Mauss, 2000.
MOSCOVICI, S. Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis : Vozes, 2004.
OLIVEIRA, L. O enigma da democracia. O pensamento de Claude Lefort. Piracicaba: Jacinta Editores, 2010.

9 comentários:

Cynthia disse...

Oi, Tâmara,

Gostei muito do seu artigo. Acho que não tenho muito o que acrescentar em relação ao que já escrevi aqui no Cazzo acerca da relação entre democracia, intolerância e o debate público sobre o aborto no Brasil. Vou acrescentar o marcador "aborto" aí do lado e, se alguém se interessar, pode ler. Mas aproveito para fazer uma citação de um texto muito lúcido da Maria Rita Kehl, publicado no Estadão, pouco antes do vexame que foi sua demissão:

"Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães - este é o ponto! - é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que aguentar as consequências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão a viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar".

Não pude deixar de associar isso à única referência ao aborto que consegui encontrar no Livro Verde do Aiatolá Khomeini: "a mulher que engravidar após um adultério não deverá abortar". Incrível, não? Em termos daquilo que a Maria Rita Kehl chamou de "repulsa ao sexo" conseguimos ficar atrás do fundamentalismo islâmico mais radical.

Honestamente, não sei qual será o resultado de o aborto ter se tornado um tema em evidência nas eleições. Mas tenho sérias desconfianças que, pela qualidade que a mídia tem demonstrado, as consequências não serão muito positivas.

É também impressionante como esse tema surgiu como uma espécie de serendipity às avessas e conseguiu elevar o problema da laicidade do Estado para patamares nunca vistos por aqui. Convenhamos, não é um absurdo se poder falar em uma "bancada evangélica"? O pior é que os argumentos mais utilizados contra o fundamentalismo religioso que pode emergir são os mais grotescos, especialmente por parte do "leitor médio": da mesma forma que aquele oligofrênico que escreveu o Freakonomics tem fornecido munição para os que defendem o aborto (tipo "vamos abortar para diminuir a criminalidade"), a cruzada cientificista do Richard Dawkins tem arrebanhado fiéis de toda espécie. É triste de se ver.

Tâmara disse...

Cynthia,
Você deve imaginar como é bom ler que alguém gostou do texto, porque o escrevi com duas preocupações cruéis: a) a de não fornecer munição para a campanha de difamação, apenas por discutir o assunto; b) a de não cair na dicotomia religião X ciência, produzindo esses discursos também totalita'rios e elitistas, tipo "vamos abortar para diminuir a criminalidade", ja' que a ciência também nunca foi nem sera' invulnera'vel a vontades totalita'rias. Mas tentar encontrar um tom de abertura para intervir nesse fenômeno ganhou de minhas hesitações quando li o seguinte de dois colegas da UFS, sobre essa campanha eleitoral: "(...)acho que hoje virou mesmo um embate entre cristãos e não-cristãos, como no tempo das cruzadas(...)Confusão total. E muito o'dio pairando sobre as polêmicas, viu?"; "Nunca vi tanto conservadorismo neste pai's (...)Penso que temos bons objetos de estudo, sobretudo esta catolização do debate poli'tico. Neste momento gostaria de estar fora do Brasil. O nego'cio esta' muito baixo!"

Considerando a carência de ética da responsabilidade das mi'dias no Brasil, conclui que participar da discussão faz parte urgente de minha responsabilidade - como cidadã e como cientista social. Ontem Jonatas lembrou de um episo'dio com Mitterrand, quando este disse sobre sua paternidade extra-conjugal tardiamente revelada: "E' minha filha e isso não é assunto de Estado. Não voltarei a falar sobre isso". As mi'dias francesas calaram a boca, mas, como disse Jonatas, aqui as coisas são diferentes. Na França também, amigo Jonatas, as coisas não são mais como à época de Mitterrand, hélas...A fragilidade da democracia encontra-se em momento agudo e isso é fenômeno global - em cada lugar, com suas especificidades. Por isso decidi escrever. Mais do que nunca, "navegar é preciso". Abraço.

Tâmara disse...

Em tempo:
Quando disse ha' pouco que a democracia anda em fragilidade aguda global, cada um com suas especificidades, pensava numa frase que Alain Touraine, estarrecido, disse hah' um mês: "O u'nico movimento social forte que vejo atualmente na Europa é o da xenofobia".

Cynthia disse...

Eu gostaria de ter lido uma análise séria do pessoal de sociologia da religião sobre esse fenômeno. Mas talvez não tenha muito para se analisar fora do marketing político.

Le Cazzo disse...

E há a tristeza de ver as concessões que são feitas em nome da governabilidade, depois em nome da elegibilidade... As últimas batalhas dessa eleição serão travadas dentro do pântano. Jonatas

Tâmara disse...

Pois é, Jonatas,
Hoje de manhã ja' andei lendo noti'cias sobre essas concessões. Mas como até agora tenho sido muito cinzenta em meus comenta'rios, vou tentar agora trazer as cores da Co'rdoba plural. Não é so' a xenofobia que se apresenta no cena'rio europeu; resistências contra elas também agem politicamente, ou seja, a indeterminação da democracia respira. E no Brasil também. As batalhas eleitorais estão no pântano, mas foi num cena'rio parecido que o charmoso rapaz da foto cavalgou para salvar a palavra de Averro'is.

Cynthia disse...

Segue o link para um post interessante do blog da Cynthia Semíramis. Vale a pena ler:

http://cynthiasemiramis.org/2010/10/14/boato-pt-religiao-direitos-das-mulheres-e-homossexuais/

Tâmara disse...

Ja' li e apreciei o post indicado; valeu Cynthia. Sinto que uma reação das "vontades de abertura" começa a aparecer. E isso é muito importante para que a pro'pria candidata acuada por essa instrumentalização fundamentalista das religiões construa um espaço que não seja o da mera concessão eleitoreira. Se a luta pela hegemonia pudesse caber na idealização da ética da discussão habermasiana, os dois candidatos poderiam ter matado essa infâmia perigosa no primeiro debate, distinguindo religiosidade de fundamentalismo religioso e explicando que laicidade não é repressão à religião, mas distinção entre assunto de Estado e assunto de fé; distinção fundamental inclusive para a liberdade religiosa, para que todo o povo não seja obrigado a seguir o que o Estado estabelece como religião legi'tima. Mas se ela fizesse isso sozinha, enquanto o outro pousa de neo-coroinha e a acusa de falta de sinceridade, seria uma atitude que a levaria direto ao muro. Por isso acho tão importante que a gente não fique acuado, que não sucumba à impressão de que os sentimentos religiosos da maioria dos brasileiros ja' são fundamentalistas.

Cynthia disse...

Tem muita reação por aí, Tâmara. Basta dar uma olhada no Biscoito Fino e a Massa ou o Na Prática a Teoria é Outra, ambos listados aí nos links. Mas em termos de diagnóstico, achei impecável o texto do Venício Lima, no Observatório da Imprensa:

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=611JDB002

Uma triste resposta para a sua crença na potencialidade da crítica nas sociedades abertas.

Putz, como eu ando pessimista. Deve ser porque minha saúde não anda lá essas coisas. Mas passa lá no NPTO que seu astral melhora.

Bjs