segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Exclusão social intrauterina... o quê?!


Mulher estressada? Cuidado com seus filhos.

Artur Perrusi

A exclusão social começa no útero da mãe. A afirmação é peremptória. E preocupante para os cientistas sociais que, já tão desvalorizados profissionalmente, terão a concorrência, agora, de biólogos, obstetras e ginecologistas. No futuro, ocuparão todos os GTs da Anpocs. Claro, há um porém, aqui, pois a experiência, para demonstrar a hipótese da exclusão social intrauteriana, foi realizada em ratos.

Murídeos? Sim, dos ratos aos humanos, e temos um pequeno salto da biologia à vulgarização científica. O reducionismo chega a ser hilário; mas, do ponto de vista da divulgação científica, é um desastre. Porém, não quero culpar o nascente jornalismo científico brasileiro pela vulgarização e pelo reducionismo; na verdade, o reducionismo, durante a entrevista, foi comandado pela bióloga, responsável pela pesquisa.

Antes, contudo, será interessante escutar a entrevista; depois, voltamos às observações. Escutem aqui:
Exclusão social intrauterina

Alguns fatores que prejudicam a inclusão dos indivíduos na sociedade podem ter início ainda no útero materno. Pesquisa brasileira mostrou em ratos que o estresse e a deficiência nutricional da mãe podem causar problemas físicos e psicológicos na vida futura dos fetos. Para falar sobre o estudo, o Estúdio CH recebe a bióloga Patrícia Aline Boer, da Unesp.

Segundo Boer, pesquisadora do Departamento de Morfologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, passar por situações de estresse durante a gestação pode levar ao surgimento de alterações na formação de órgãos e sistemas do feto – entre eles, o sistema nervoso central, os rins e os vasos sanguíneos – que permanecem até a vida adulta.

Em entrevista a Fred Furtado, ela mostra como sua equipe reproduziu condições de estresse nutricional e psicológico nas ratas e explica os mecanismos bioquímicos capazes de provocar essas alterações no desenvolvimento do feto.

Boer diz que as consequências dessas alterações são a formação de indivíduos mais estressados e ansiosos, o aumento da pressão arterial na idade adulta, problemas cardíacos e até maior propensão ao uso de drogas e à depressão.

A pesquisadora fala ainda sobre outros estudos que mostram os efeitos do estresse durante a gestação e a amamentação e até do cuidado com a prole sobre o desenvolvimento físico, mental e psicológico e o perfil comportamental do adulto.
Sinceramente, não tenho muito saco, nesse momento, em fazer uma análise aprofundada das colonizações biológicas nas ciências sociais. Diria que os reducionismos, realizados pela bióloga, são um fenômeno bem conhecido pelas... ciências sociais. É um processo que podemos chamar de “naturalização”. Atualmente, um dos discursos legitimadores da sociedade é a ciência, e uma das ciências mais influentes, na formação de representações sociais sobre o mundo, é a biologia – a psicologia, também, tem essa importância. Na verdade, percebo duas manias modernas que enquadram os valores e o mundo; temos a tendência a des-moralizar os valores, via a biologia, e a des-socializar (no fundo, individualizar) os comportamentos, via a psicologia. Não causa surpresa que as ciências sociais sejam tão desvalorizadas -- aqui, não me refiro à sua desvalorização como profissão, e sim como saber científico. Acho tais temas fascinantes e espero, um dia, voltar a discuti-los com mais calma.

Ultimamente, inclusive, a maior vítima da naturalização é o campo polimorfo da sexualidade. Além de uma sempiterna confusão entre sexo e gênero, há uma naturalização da homossexualidade, por exemplo, quando da procura compulsiva pelo gene gay. A procura da determinação genética da homossexualidade serve como recurso discursivo, procurando uma normalização da questão. Assim, se é natural, logo, é normal, para determinados setores do movimento gay; se é natural, logo, é uma doença que pode ser tratada, para o fundamentalismo cristão. A naturalização é um recurso prático e discursivo que legitima e procura adesão no senso comum, mas não tem monopólio ideológico.

Voltando à entrevista, a biólogoa produz uma série de reducionismos que, no fundo, não passam de subsunções. A psicologia é, por exemplo, subsumida à biologia. E as ciências sociais? Há uma cadeia de determinismos, inscrita numa hierarquia científica, tornando a ciência social tão sobredeterminada por outras ciências que, simplesmente, não aparece ou não existe, como tal. Diversas questões, que seriam passíveis de esclarecimento pelo conhecimento sociológico, tomam outro rumo explicativo, capturadas por uma extrapolação biológica que vai bem além de seu campo cognoscitivo. Pra que, afinal, empregar um conhecimento que é apenas um “episaber”, depois das óbvias e necessárias reduções, da biologia? Querem um conhecimento realmente científico? Procurem a sociobiologia!

A bióloga, além de patrocinar reducionismos, vai mais além: como acontece frequentemente na naturalização do mundo, há a defesa de uma biopolítica. Da biologia, passando pela medicina, a cadeia de reduções termina na postulação, para o bem ou para o mal, de uma política pública; em suma, a ciência torna-se a base de uma biopolítica – dos ratos à gestão do risco da gestação humana. Aliás, aqui, estamos diante de um problema sociológico, bem estudado no campo das ciências sociais. Muitas vezes, a naturalização tem como consequência um controle social – no caso, o controle absoluto da gestação pela medicina –, baseado na gestão do risco, justamente o risco, essa categoria de valor fundamental na vida social contemporânea, que ordena moralmente o mundo e é uma das bases da biopolítica.

De todo modo, há muita platitude na entrevista. Ainda acho que a bióloga deveria ler “A geografia da fome” de Josué de Castro e, depois, toda uma bibliografia, no campo da ciência social, a respeito do seu objeto – as consequências sociais da desnutrição e do estresse na esfera do trabalho, por exemplo. A bióloga evitaria os truísmos, sem dúvida. Pelo menos, prescindiria das sevícias em ratinhos para deduzir algo sobre o mundo social dos humanos.

Mas a bióloga está tão obnubilada pelo seu biologismo que não se importa em dizer exageros, do tipo “acreditou-se que o genoma determinasse todas as características de um ser”. O biologismo é uma biologia vulgar. Nunca foi consenso, mesmo na genética, esse fundamentalismo genético. A bióloga critica o fundamentalismo genético apenas como recurso retórico para poder passar melhor seu reducionismo, agora suavizado como “epigenética”. Vai ver que a epigenética é uma genética com face humana; porém, continua redutora e extremamente simplista nas extrapolações. Por meio da epigenética, pode-se jogar no lixo, por exemplo, noções como “estilo de vida”, pois a vida embrionária explicaria bem melhor diversos comportamento sociais – do útero à vida social, eis um belo pulo explicativo.

Assim, segundo a bióloga e estudos absolutamente comprobatórios, mulheres gestantes, que passaram estresse na derrubada das torres gêmeas, no 11 de setembro americano, tiveram crianças com problemas afetivos e com dificuldades no aprendizado; provavelmente, as crianças ficaram, também, extremamente chatas (essa extrapolação é minha, baseada em muita reflexão psicossocial). Inclusive, a partir de agora, encontrando uma criança ansiosa e chata, culpabilizarei a mãe da pequena criatura – quem manda não ter controlado o risco de estresse embrionário durante o período de gestação?

Afinal, como afirmou a bióloga, a falta de cuidado na gestação – mães que trabalham e se estressam no trabalho, por exemplo – está criando uma população de humanos que está sendo “programada” (sic) para ser estressada. Um possível estresse dos infantes não seria produto das suas condições de vida e sim resultado direto da gestação. Somente um controle biomédico da gestação evitaria o estresse da gestante. Claro, haveria a criação de políticas públicas, algumas bem interessantes, implicando alguns direitos reprodutivos; mas, duvido muito que o controle da gestação implique o controle da ansiedade infantil. Talvez, a vacinação embrionária antiestresse, por meio de injeções intrauterinas de ansiolíticos, possa ser uma ideia factível (pensei nisso, agora) ou, ainda, o controle do estresse infantil por meio de outras biotécnicas, como por exemplo: o uso de ansiolíticos na mamadeira ou no mingau. A felicidade química pode ser usada para acalmar os pequenos monstrinhos, tão ligados?!

Mas, é inegável, há momentos engraçados na entrevista. A biologia vulgar tem lá seus momentos cômicos. Descobri que quanto mais carinhosa a ratinha mãe com suas filhas, por exemplo, mais cheia de frescura será a ratinha, ops!, desculpem aí, mais seletiva e exigente será a dita-cuja, sexualmente falando.

Bem... er... se a bióloga permite-se a extrapolações, posso fazer o mesmo. Por que não?! Tudo é possível nesse mundo velho e enfadado. Posso perder a cabeça e produzir uma biologia sociológica.

Nesse sentido, no mundo social dos humanos, o problema do pudor feminino ou da frescura, como queiram, pode ser explicado pela educação carinhosa das mães. Quando mais carinho, mas seleção sexual. Aparentemente, a indução do carinho materno para o melindre sexual é de gênero, isto é, diz respeito às mulheres. Há estudos americanos com ratos mostrando mães carinhosas que deixaram os ratinhos incompatíveis com uma vida sexual roedora normal, ocorrendo uma assexualização de suas vidas sociais. Posso dizer que, entre os machos humanos, o efeito é o mesmo, o que explicaria o desejo masculino de celibato. Assim, mais um mistério sociológico é desvendado pela biologia sociológica: o carinho materno determinaria, por exemplo, a escolha dos padres por uma vida ascética e sem sexo -- o ascetismo religioso, logo, a assexualização do mundo intra-mundano, como efeito social e involuntário do desvelo materno.

(E a pedofilia católica? Bem, os ratos não explicam tudo. Talvez, experiências com porcos e chimpanzés desvendassem essa palpitante questão)

Há outras afirmações engraçadas na entrevista. Por exemplo: nós somos o que comemos? Pergunta a bióloga. Ora, somos o que comemos mais o que comeram nossas mães durante a gestação... Tenho calafrios só de pensar em perguntar à minha mãe o que comeu durante minha gestação. Pena que eu tenha medo, pois, com a resposta, entenderia meu habitus e faria uma socioanálise, tipo aquela preconizada por Bourdieu (aliás, o que comeu sua mãe?), de meu trabalho como sociólogo.

Mas, paro por aqui, pois faria extrapolações sociológicas incompatíveis com o decoro desse blog acadêmico. Já estou ruborizado só de pensar nisso...

10 comentários:

Cynthia disse...

Inclusive, Jonatas e Eduarda deveriam abandonar de vez variáveis como capital econômico e capital cultural e investigar as desigualdades de acesso às novas tecnologias de informação em função do estresse materno. Nada que políticas de saúde como a distribuição em massa de ansiolíticos às gestantes não pudesse resolver.

Agora, você chamou atenção para uma coisa bem interessante no seu comentário, Artur: a centralidade que uma noção como risco assume em uma análise como esta. É interessante pensar em afirmações do tipo "há um aumento na falta de cuidado gestacional". Baseado em que ela afirma isso? Ideologia pura, claro.

Nunca se cuidou tanto da gravidez como hoje em dia, e estudos como o já clássico "O Mito do Amor Materno", de Elizabeth Badinter, mostram as condições terríveis associadas à maternidade entre as mulheres da nobreza francesa no séc. XVIII. Claro, a culpa só pode ser da entrada das mulheres no mercado de trabalho com "a carga horária de trabalho muito alta que está levando a população a ser programada a ser mais estressada" (essa doida nunca ouviu falar das condições de trabalho durante a industrialização inglesa?) etc. Talvez o problema com a pesquisa dela seja o de que as ratinhas ainda estão na fase da divisão sexual do trabalho.

Artur disse...

Hehe...

Faço a hipótese de que são ratinhas trobriandesas; foram socializadas nas ilhas Trobriand.

Tâmara disse...

E ontem vi uma matéria na UOL (sempre leio matérias desse tipo; toda semana tem uma ou duas)sobre pesquisas mui naturalmente cienti'ficas sobre o tempo que o cérebro leva para se apaixonar (um quarto de segundo; diga-se de passagem,o cérebro parece perfeitamente adaptado à aceleração contemporânea da experiência do tempo!) A pesquisadora (outra doida)falava animadamente das possibilidades de cura de uma paixão frustrada ou mal terminada através de tratamentos agindo nas regiões apaixona'veis do cérebro. Seria cômico se essas pesquisas não tivessem a visibilidade que têm...

Cynthia disse...

E como foi que a criatura calculou esse tempo, Tâmara? Quanto ao tratamento, puro desperdício de dinheiro público: às vezes, basta encontrar a pessoa "certa" que o encanto se vai num passe de mágica. Uma espécie de técnica neo-weberiana que mistura magia, racionalização e desencantamento do mundo.

Tâmara disse...

Confesso que me interessei pouco pelos procedimentos de ca'lculo, mas imagino que foi monitorando as tais regiões que eu chamo de apaixona'veis (evidentemente, sou bem mais romântica do que a pesquisadora).

Fiquei muito mais curiosa com essa técnica neo-weberiana - classicamente sociolo'gica. Veja se estou num bom caminho, professora:

Magia: encontrar outro(a);

Racionalização: concentrar-se no trabalho. Mas essa técnica tem o inconveniente de dificultar ou mesmo impedir o exerci'cio da primeira técnica - a magia;

Desencantamento do mundo: também conhecida como desencantamento do(a) dito(a) cujo(a), técnica que consiste em mentalizar os defeitos imagina'veis da criatura que provoca geleiras no estômago e incêndios na cabeça. Esta, ao contra'rio da segunda e em aparente paradoxo para com uma leitura ortodoxa de Weber, pode ser melhor combinada com a magia.

Artur disse...

Hehe... muito boa a aplicação de Weber à paixão. Logo Weber, o deprimido (não foi psicose, a causa, e sim a aplicação de suas próprias categorias em si mesmo).

Cynthia disse...

Hahaha! O desencantamento e a magia teriam que estar em conjunção, Tâmara. Em termos weberianos ortodoxos, seria uma espécie de encantamento do desencantamento. Ou seria o desencantamento do encantamento? Sei lá. Algo como tendências mágicas contravenientes que levariam a um processo de racionalização. Isso é ortodoxo? Aff, vou terminar de preparar minha aula que é melhor.

Tâmara disse...

Obrigada, Arthur, por aprovar minha aplicação weberiana. Vou tomar cuidado para não me aplicar essas categorias. Abaixo a depressão!

Cytnhia, vamos dizer que entendi tudo do encantamento do desencantamento do encanto.

Eita weberzinho complicado, benza Deus!

Cynthia disse...

Nem se preocupe, Tâmara: essas coisas também não fazem o menor sentido para mim. Mas Luhmann tem um livro interessante sobre o assunto: "O Amor como Paixão". Continua sem me esclarecer muita coisa, mas pelo menos o argumento é elegante...

Cynthia disse...

E não é que agora estão falando do "gene liberal"? Saiu no The Guardian de hoje:

Ever wondered why you have a hankering to drive a Prius and drink lattes? Or why you read the Guardian and scrupulously put it in the recycling? There might be a gene for that – with a little help from your friends.

Researchers at the University of California and Harvard University have identified a specific gene variant that they say predisposes those carrying it to liberal political ideology – with the findings quickly seized on by the US media as uncovering "the liberal gene".

Simply having the gene – a variant of a dopamine receptor known as DRD4, linked to novelty-seeking – is not enough by itself to make someone a liberal, according to the article in the latest issue of the Journal of Politics, published by Cambridge University Press. The study found that adults with the gene were more liberal depending on how wide their circle of friends was while they were growing up.

A reportagem completa aqui:
http://www.guardian.co.uk/science/2010/oct/28/liberal-gene-discovered