Artur Perrusi
No post anterior, fiz a crítica a uma entrevista de uma bióloga. Acusei-a de reducionismo e de naturalização. Foi uma crítica dura, embora não se compare com o arremesso de uma bolinha de papel. Agora, faço o contrário e critico a ojeriza que têm muitos sociólogos em relação à biologia, em particular a biologia evolutiva. Muitas vezes, há um veto, inscrito no âmago da ciência social, em discutir, por exemplo, as relações entre biologia e sociologia. Não há diálogo, e sim separação e distância. Defendo, como verão, durante a leitura, uma posição diferente.
No fundo, o biologismo tem sua contrapartida no sociologismo, isto é, a subsunção da biologia e da psicologia à sociologia. A psicologia, coitada, praticamente desaparece, virando no máximo uma "psicologia social". Cá entre nós, se a biologia é imperialista, a sociologia gosta de pirataria. Por isso, defendo o diálogo multidisciplinar; talvez, é a minha esperança, ocorra um controle das extrapolações de ambos os lados. Nas minhas aulas, por exemplo, faço como Norbert Elias e apareço com um crânio humano, mostrando aos futuros cientistas sociais que, afinal e por incrível que pareça, temos um corpo, um esqueleto e somos, sem carne, assustadores (brincadeirinha!).
E, se desejo o diálogo, defendo que o mesmo implique dois movimentos, aparentemente, contraditórios: 1) a delimitação de fronteiras disciplinares (cada macaco no seu galho) e 2) a demonstração de que as fronteiras são porosas e, algumas vezes, não existem (todo macaco gosta de banana). Sim, não nego o paradoxo, mas é assim que funcionam os primatas.
Enfim, na discussão abaixo, remeto os leitores a partes de um antigo artigo, em que abordo a questão. Quem quiser ler o artigo inteiro, cujo objeto é a concepção da técnica em Leroi-Gourhan, é só clicar aqui.
"Convenhamos, há qualquer coisa estranha nesse debate. Indague um sociólogo sobre a origem social do humano, e o cabra olhará meio pra cima, dará um suspiro, fará um biquinho e, com desdém, perguntará: _pra que serve essa questão? Pior: depois de um meneio de cabeça, cravará no interlocutor um olhar definitivo e dirá: _isso não é um objeto da sociologia! Por que todo esse pouco-caso? Provavelmente, esconde uma preocupação um tanto quanto legítima: abordar a origem social do humano pode aproximar perigosamente as ciências sociais do reducionismo biológico — o medo sempiterno do biocentrismo. E o contato excessivo com a biologia pode esfumaçar as fronteiras disciplinares do “fato social”. Curiosamente, essa inquietação aufere boa parte da sua legitimidade de sua... antiguidade. Não por mera coincidência, remete à própria fundação da sociologia, em particular a Durkheim. Lembrar que, na segunda metade do século XIX, a antropologia estava atolada "num biologismo ultraredutor dominado por preocupações ideológicas" (Kaufmann, 2003: 24). A moda era a craniometria e a raciologia — todas as duas disputando a primazia no campo da antropologia. Foi justamente, entre outros fatores, contra esse reducionismo e suas consequências éticas (Mucchielli, 1998) que Durkheim postulou seu projeto sociológico. Discutiremos essa questão de uma forma esquemática:
1) a delimitação do projeto sociológico de Durkheim passava por duas separações disciplinares: a primeira, mais conhecida e mais analisada, separava a sociologia da psicologia; a segunda apartava a sociologia da biologia. Esta última separação tinha como pano de fundo algumas hipóteses sobre a emergência do fato social que, nas linhas gerais, assemelhavam-se a algumas intuições de Darwin (Guille-Escuret, 1994). A "emergência" do fato social seria uma espécie de "acontecimento fundador", algo como a produção de uma segunda natureza, um "je-ne-sais-quoi" que nos levou ao processo de humanização. Tais hipóteses nunca saíram do campo meramente especulativo, até porque as condições do conhecimento da época eram, infelizmente, ainda insuficientes e parcelares;
2) tal fato influenciou a forma pela qual Durkheim atacou o reducionismo biológico, dissimulando um problema óbvio levantado pela hipótese da "emergência": quais mecanismos dão conteúdo empírico à emergência do fato social? Dissimulando-se esse problema, produziu-se um habilidoso deslocamento no ataque ao reducionismo biológico. Como a posição materialista daquela época, encharcada de naturalismo, não conseguia destacar-se do biocentrismo, explicando, por isso, a emergência do fato social sem que este não fosse entendido como um mero prolongamento do biológico, Durkheim privilegiou um caminho idealista que lhe permitiu algumas benesses: a) a sociologia ficou completamente protegida do biocentrismo ao incorporar uma metafísica do "fato social", isto é, ao produzir uma ruptura absoluta entre sociologia e biologia; b) tal ruptura garantiu a delimitação do objeto sociológico, logo, a legitimidade da sociologia como disciplina científica. No entanto, ao produzir uma metafísica do "fato social", a problemática da origem social do humano perdeu sua razão de ser; na verdade, deixou de ser um objeto que interessasse a sociologia — o "je-ne-sais-quoi" citado acima continuou sendo o que sempre foi: um misterium tremendum; porém, pelo menos agora, não mais incomodando tanto, já que neutralizado por uma démarche epistemológica e disciplinar;
(Aqui, podemos perceber o perigo da tábula rasa. O social passa a ser sintoma de um construtivismo absoluto — a sociedade é puro artefato, como afirmou Mangabeira Unger (2001). Surge de um fiat lux que se alicerça ou numa transcendência ou num contrato primevo ou numa fundação. Não há origem e, portanto, a cultura não surge a partir de um processo imanente)
3) embora muitos sociólogos considerem Durkheim datado (palavra que é uma verdadeira granada no debate epistemológico), a consideração de que existe uma ruptura absoluta entre a sociologia e a biologia continua bastante popular, ainda mais que as posturas idealistas ou não realistas, para o bem ou para o mal, hegemonizam o campo sociológico. Acrescente-se a isso o medo do biocentrismo que, na atual conjuntura, através do desafio lançado pela sociobiologia (muito parecido com o da sociologia biologista do tempo de Durkheim), atormenta a intelligentsia sociológica. Entretanto, o desafio não é percebido como tal, e sim com um desprezo inquietante, configurando uma postura bem diferente daquela empreitada na época da "fundação" da sociologia. Muitas vezes, o desprezo baseia-se na afirmação de que somente existe sociedade entre os humanos e, assim, o seu conceito seria monopólio das ciências sociais; contudo, os primatologistas e os entomologistas, por exemplo, utilizam conceitos de sociedade no estudo de grupos de primatas e no dos insetos ditos "sociais". Que os conceitos são diferentes não há como negar, inclusive entre essas mesmas disciplinas, mas como não perceber que tais conceitos têm alguma validade heurística e que o diálogo entre as várias disciplinas das ciências naturais e das sociais seria interessante e profícuo? Além disso, quem disse que existe um consenso nas ciências sociais em relação ao conceito de sociedade? A verdade é que se depurou o "fato social" a tal ponto, que não existe qualquer contradição ou diálogo, mesmo que controlável, com a biologia — de certa maneira, o mesmo ocorre com a psicologia, principalmente a cognitiva e a evolutiva. O absenteísmo crítico da parte dos sociólogos abre um gigantesco flanco, uma enorme brecha, para a entrada triunfante da sociobiologia, seja no campo propriamente acadêmico, seja principalmente no nível midiático. Ao desprezar o desafio lançado, a sociologia piora a situação e aumenta, por intermédio de sua omissão, a crescente ideologização da discussão sobre a natureza humana, cujos efeitos produzem a completa naturalização do humano e o alheamento da sociologia diante das explicações biologizantes.
Não somos contra por princípio a sociobiologia, respeitando-a inclusive como disciplina científica, logo, admitindo que tenha seu próprio campo objetual. Além disso, admitimos também a necessidade do diálogo e do contraditório, principalmente na discussão sobre como se define conceitualmente... sociedade. Contudo, somos contra, sim, a extrapolação da sua lógica de investigação e de seu campo conceitual para as ciências sociais. Ao extrapolar, a sociobiologia produz ideologia e não ciência. Mas a sociobiologia não é a única a ameaçar de biocentrismo a sociologia, pois nossa co-irmã, a economia, há muito já produziu algumas reduções biologizantes ou psicologizantes, isto é, já originou vários economicismos um tanto perigosos: uma visão de mercado deduzida das "necessidades" naturais do ser humano, ou ainda a redução do campo de conflitos econômicos a uma psicologia de interesses, ou até aquele economicismo que percebe fluxos de energia entre o sistema social e o ecossistema... Se isso não basta, podemos olhar as interpelações biologizantes no senso comum: as relações de gênero vistas como disputas territoriais; determinados comportamentos vistos como resultado do gene egoísta; a procura compulsiva pelo gene da esquizofrenia, da homossexualidade, e por aí vai...;
4) enfim, acredito que Elias tenha resumido bem a questão quando disse que os sociólogos,
"sempre angustiados em relação ao seu status e à sua autonomia, desenvolveram, depois de algumas funestas experiências no passado, uma espécie de aversão traumática a respeito de todas as tentativas visando a clarificar as conexões entre o nível de integração, estudado por eles mesmos, e os níveis precedentes, notadamente aqueles que são tratados pela biologia. Eles temem, com efeito, que ocorra um reducionismo a tais níveis" (1993: 222).
Essa postura defensiva faz com que o sociólogo não chegue nem mesmo a afrontar a biologia; na verdade, ele simplesmente a evita...
Mas, ainda insistindo nesse ponto de chegada, há outro perigo, talvez tão problemático quanto à naturalização do humano. O tema da ruptura absoluta, ao dissolver o problema da relação entre a natureza e a cultura, abre uma brecha para a entrada de interpelações religiosas. Atualmente, estamos presenciando um fenômeno curioso: diversas teologias estão utilizando uma linguagem pseudocientífica para sua legitimação, e a ciência à qual mais se recorre, além da física, é a biologia. Não encontrando resistências na ciência em geral, em particular nas ciências sociais, as religiões vão tomando conta da natureza humana. A brecha está aberta — as teologias encontraram um terreno favorável para a apreensão religiosa da biologia do humano.
O tema da ruptura absoluta gerou uma desconfiança historicista a qualquer pensamento evolutivo aplicado à história humana. Com isso, inviabiliza-se toda reflexão sobre a possibilidade de uma meta-historicidade do humano -- uma meta-historicidade do humano, do ponto de vista de uma posição materialista ou pós-materialista (Lloyd, 1995), supõe que a história humana seja um processo no qual o jogo entre natureza e cultura está inscrito de forma imanente e intrínseca. A "miséria do historicismo" identifica qualquer pensamento evolutivo com evolucionismo e, até por causa disso, toda concepção meta-histórica do humano é acusada de compactuar com a noção mais abominada nas ciências humanas atuais, a noção de progresso. Todavia, sem meta-historicidade, como pensar uma história natural ou uma historicidade das formas de vida? Sem isso, o que acontece é o que já vem acontecendo: diversas teologias atuais já transformaram a história evolutiva do homem numa meta-história religiosa.
Nesse sentido, concordamos com Timpanaro, quando afirma:
no geral, acredito na constatação de que todo desconhecimento da biologicidade do homem acarrete um contragolpe espiritualista, porque findamos atribuindo forçosamente ao espírito tudo aquilo que não conseguimos explicar em termos econômicos e sociais" (1975: 46-47).
Há uma profunda ironia histórica nisso tudo: quem imaginaria que as teologias poderiam perceber o problema da transcendência do ponto de vista da biologia humana? Uma das consequências ideológicas disso tudo é o esvaziamento filosófico do ateísmo. Nesse sentido, o ateísmo — e, consequentemente, arriscamos dizer, o materialismo — perdeu muito de seu alcance epistemológico, já que não consegue mais pensar a transcendência do ponto de vista da imanência; a relação entre o "eterno" e o contingente; a relação entre o invariante biológico e o variante sócio-político; a historicidade das formas de vida e a história humana...Vejam, por exemplo, as misturas de alta eficácia ideológica entre esoterismo e ecologismo profundo (a Deusa Gaia que me perdoe...). Entretanto, a natureza humana voltou ao centro das atenções menos por uma causa telúrica do que por um conjunto de condições sociais, econômicas, políticas e, principalmente, tecnológicas. Do ponto de vista das ciências sociais, sua volta não significou, em que pese o medo sociológico, um retorno ao biocentrismo ou, ainda, a demonstração de que a biologia tem um poder explicativo maior do que as ciências sociais; não, na verdade, seria porque os condicionamentos biológicos do animal humano adquiriram uma importância histórica fora do comum no processo de produção da vida social. Acreditamos que a discussão, por exemplo, sobre bioética e biopoder tornou-se importante e estratégica porque estamos percebendo, de forma ainda intuitiva, que determinadas manifestações empíricas de certas constantes filogenéticas de nossa espécie estão intrinsecamente relacionadas à nossa existência enquanto seres culturais e históricos.
(Pensamos o problema do biopoder por intermédio de dois eixos: o primeiro diz respeito à "anatomia política" do corpo humano, o qual é ordenado por várias disciplinas tecnológicas; o segundo refere-se à regulação centrada na população, apresentando uma série de estratégias que atravessam o campo do conhecimento, dos controles sociais e da saúde. Inferimos que estão surgindo novas racionalidades, principalmente no campo da gestão social (prevenção dos riscos), que fundem os dois eixos, as interpelações sobre o corpo e aquelas sobre a população).
Contudo, repetimos: não estamos defendendo nenhuma primazia do biológico em detrimento do sociológico ou do histórico; ao contrário, estamos sustentando, isto sim, a necessidade de se fazer uma análise histórico-social da centralidade da biologia (ou do tema da natureza) nesses tempos de hipermodernidade. Parodiando Hegel, o primeiro dever da sociologia deveria ser o de apreender seu presente através do pensamento..."
___________
BIBLIOGRAFIA:
ELIAS, Norbert. Engagement et distanciation. Paris: Fayard, 1993
GUILLE-ESCURET, Georges. Le décalage humani: le fait social dans l’évolution. Paris: Kimé, 1994.
KAUFMANN, Jean-Claude. Ego: para uma sociologia do indivíduo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
LLOYD, Christopher. As estruturas da história. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
MUCCHIELLI, L. La découverte du social, naissance de la sociologie em France. Paris: La Découverte, 1998.
TIMPANARO, S. Sul materialismo. Pise: Nistri-Lischi, 1975.
UNGER, Roberto Mangabeira. Política. São Paulo: Boitempo, 2001
Nenhum comentário:
Postar um comentário