terça-feira, 17 de maio de 2011

Hegel, os hegelianos e o Romantismo 6 (versão 0.1)



Retrato de um psiquiatra quando jovem Marx

Jonatas Ferreira

Feuerbach e Marx

Já tivemos a oportunidade de afirmar que, sendo eminentemente religiosa, a ideia de alienação, a ideia do ser humano estranhado de sua essência tem a marca do Romantismo. Isso não é de admirar dado o próprio sentido religioso que este movimento estético adquiriu na Alemanha do século XIX. Por isso mesmo, para Hegel, o cristianismo teria no Romantismo sua expressão artística paradigmática e vice-versa, a arte romântica era fundamentalmente cristã. A propósito, isso me faz lembrar, e esse talvez seja um bom exemplo, da fábula de Novalis, de seu pequeno romance que é Os Discípulos em Saís. Já contamos aqui no Cazzo a história de Hiacinto, este novo Adão, que, vivendo num paraíso terreno, decide empreender uma viagem para conhecer a deusa de Saís – aliás, recordemos que a deusa de Saís é ali associada a Ísis, capaz de refazer a inteireza do corpo desmembrado de seu marido, Osíris, assassinado por Seth. Depois de muitas andanças e sofrimentos, a deusa é finalmente revelada a Hiacinto. Há duas versões para este final na obra de Novalis: na primeira, Hiacinto descobre o seu próprio rosto ao levantar o véu da deusa; na segunda, ele descobre o rosto da amada que ele havia deixado para trás havia muito tempo.

Impossível não perceber os motivos religiosos naquele pequeno texto: há um primeiro momento em que o indivíduo está pleno, mas não se reconhece; um  segundo momento se segue, momento de queda e sofrimento; e , finalmente, um instante de reconciliação com a própria essência, de reconhecimento, de desalienação, se o barbarismo me for perdoado. Que, numa das versões, o  reconhecimento seja também um momento de amor, de abertura para a amada, é algo bastante relevante. Que a temporalidade aqui envolvida seja circular, como em inúmeros contos e romances românticos – em contraposição à linearidade do tempo industrial – também é um dado importante. Recordemos, a propósito, também dos contos de Tieck. No mais, parece claro o sentido religioso de procurar realizar o infinito no finito, como buscavam os românticos através de várias estratégias – falamos algo a esse respeito quando discorremos sobre Schelling e Fichte; também quando falamos da influência destes dois na ironia de Friedrich Schlegel.

Não é fortuito que parte da crítica que os jovens hegelianos fizeram ao mestre tenha sido de caráter religioso. McLellan comenta a esse respeito que o rigor da censura não deixava muitos outros espaços onde essa crítica pudesse ser realizada. Teóricos como David F. Strauss e Ludwing Feuerbach condenaram em Hegel a confusão entre filosofia e doutrina religiosa. Em A Vida de Jesus, Strauss já concluíra que a essência da religião cristã não era o seu valor simbólico, mas os “desejos do povo” que ela refletia (McLellan, 1969, p. 15). Ora, isso é um passo importante para a constituição de uma certa antropologia da religião que será a base da contribuição feuerbachiana, ou seja, esse gesto de buscar entender o fenômeno religioso não como produto de uma divindade, mas, pelo contrário, procurar entender o divino e o religioso como produção da vida coletiva, da vida humana. Feuerbach é aqui particularmente relevante pelo modo como, ao longo de sua vida acadêmica, se afasta e se aproxima de Hegel, por vezes num mesmo gesto. Tomemos sua tese de que a religião nada mais é do que a essência alienada do ser humano, e mais especificamente do ser humano em seu sentido coletivo, o ser humano como “ser da espécie”, como dirá mais tarde, sob sua influência direta, Marx. Sua solução para esse processo de estranhamento, embora marcada por um empirismo em tudo anti-dialético, é nitidamente hegeliana: pois é assim que entendo a ideia de realização do potencial divino da coletividade humana, e não simplesmente o repúdio, a negação da transcendência religiosa. A vida religiosa não é simplesmente um equívoco, mas a essência alienada do humano que ser realizada: a divindade é o nosso destino, o chamado vindo da plenitude de nossa essência. Assim, lemos em Princípios para uma Filosofia do Futuro:
“O mistério da teologia é a antropologia, mas o segredo da filosofia especulativa [ou seja, Hegel] é a teologia – a teologia especulativa que se distingue da teologia comum, porque se transpõe para o aquém, isto é, actualiza, determina e realiza a essência divina, que a outra leva para o além, por medo estupidez” (FEUERBACH, 2002, p. 19)
A argumentação feuerbachiana é sempre de um humanismo cristalino tanto em sua convicção quanto estilo. Marx, em seus primeiros escritos nem sempre consegue atingir essa qualidade, como o atesta a prosa demasiado rebuscada de Para a Questão Judaica ou da Crítica à Filosofia do Direito de Hegel. Os argumentos de Feuerbach, no que pese essa diferença de estilos, produzem um efeito evidente no jovem Marx. Para ambos, o segredo da especulação hegeliana é transformar atributos de sujeito em predicado e vice-versa. Mas o que isso quer dizer? O ser humano é o sujeito da história e suas são qualidades tais como, capacidade de criar, bondade, amor. O divino é apenas um predicado, uma produção histórica do ser humano quando este encontra-se alienado de sua essência, de suas qualidades. No hegelianismo, afirma Feuerbach, e depois dele Marx, o divino, de sua condição de predicado, transforma-se em sujeito e o ser humano passa a predicar essa subjetividade como sua criatura.
“A lógica hegeliana é a teologia reconduzida à razão e ao presente, a teologia feita lógica. Assim como o ser divino da teologia é a quinta essência ideal ou abstracta de todas as realidades, isto é, de todas as determinações, de todas as finidades, assim também a lógica. Tudo o que existe sobre a Terra reencontra-se no céu da teologia – assim também tudo o que existe na natureza reencontra-se no céu da lógica divina [...]. A essência da teologia é a essência do homem transcendent3e, projectada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto para fora do homem” (p.21)
O uso de aforismos por Feuerbach é algo plenamente coerente com seu empirismo, mas sobretudo com seu humanismo romântico, seu desejo de reconduzir infinitude ao finito – e isso se opõe ao pensamento dialético que, ao seu ver, cancelaria a dignidade concreta, atual do ser humano em nome da realização da Ideia através da história. A propósito, podemos citar uma observação de Feuerbach acerca da arte. Para ele, a arte “promana do sentimento de que a vida neste mundo é a vida verdadeira, de que o finito é o infinito – promana do entusiasmo que vislumbra num ser determinado e real o ser supremo e divino” (p. 23). Na tradição ocidental, o humanismo grego, seu politeísmo, seria o lugar adequado de surgimento da arte. “Os cristãos foram artistas e poetas em contradição com a essência da sua religião, tal como a representavam, tal como era objecto de sua consciência” (Ibid.). A rigor, não há aqui uma contradição com a estética hegeliana, a não ser quando percebemos que Feuerbach deseja assentar os princípios de sua filosofia para o futuro na precariedade da imanência humana; enquanto Hegel constata  nisso tudo o próprio limite da arte em realizar plenamente a essência do ser humano. A esse respeito já discorremos anteriormente. Falemos, então, disto que me parece tão simpático: a precariedade humana como princípio ético.
Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição, também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser necessário. A existência sem necessidades é uma existência supérflua. O que é em geral isento de necessidades também não tem qualquer necessidade de existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para si mesmo, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é um ser divino” (Ibid., p. 27)
Sempre me emociono quando leio essas linhas. “Só o ser indigente é o ser necessário”. Assim, o amor não é um atributo do divino, do ser que se basta. Como este ser poderia amar? Só ama quem sofre; apenas a minha precariedade é a possibilidade de abertura para o outro, para o infinito que é o outro. “Apenas na sensação, unicamente no amor, tem ‘isto’ – esta pessoa, esta coisa – Isto é, o singular, um valor absoluto, o finito é o infinito; apenas nisto consiste a profundidade, a divindade e a verdade infinita do amor. Só no amor é que Deus que conta os cabelos da cabeça é verdade” (Ibid., p. 80). Belíssimas linhas. O amor é a constatação empírica de que eu não me basto, de que sofrerei necessariamente, pois a existência da pessoa que me falta não me pode ser indiferente. E é desta perspectiva que as afirmações abaixo se tornam mais propriamente compreensíveis:
A nova filosofia funda-se na verdade do amor, na verdade do sentimento. É no amor, no sentimento em geral, que cada homem reconhece a verdade da filosofia nova. A nova filosofia, relativamente à sua base, nada mais é do que a essência do sentimento elevada à consciência – afirma apenas na e com a razão o que cada homem – o homem real – reconhece no coração. Ela é o coração elevado ao entendimento. O coração não quer objetos e seres abstratos, metafísicos ou teológicos – quer objetos e seres reais e sensíveis” (Ibid., p. 81)
Tudo isso significa também que, para Feuerbach, a vida do indivíduo humano só encontra sentido no coletivo. E daqui algumas conclusões controvertidas são tiradas - maldita pressa intelectual que o faz querer derivar de uma grande ideia consequências não elaboradas. “O homem é a essência fundamental do Estado. O Estado é a essência realizada, elaborada da essência humana. [….] O chefe do Estado é o representante do homem universal” (Ibid., p. 35). Como se chega aqui ao Estado como realização da essência humana e ao chefe do Estado como representante do homem universal? Se tomarmos Marx da Crítica à Filosofia do Direito de Hegel como contraponto, concluiríamos que a resposta evidente seria: a religiosidade realizada afinal não se distingue tão radicalmente das conclusões que Hegel havia chegado acerca do significado do Estado e do monarca. O monoteísmo realizado na concretude do homem coletivo ainda é monoteísmo.  (E eu diria que o amor não é fundamento apenas da coesão; também podemos odiar e amar num mesmo gesto quem nos é fundamental) Se o amor é o vínculo que permite sequer a Feuerbach conceber a existência dessa coletividade, já no jovem Marx, no que pese a grande influência de Feuerbach, uma outra categoria se insinua. Entre o indivíduo e o Estado, a sociedade civil é proposta como espaço em que o político se instaura. E a sua dinâmica, fundada nos interesses particulares dos grupos, é fundada no conflito. Alienação, então, nesse contexto, significa o particular se instaurando com reivindicações de universalidade, ou seja, a alienação é produzida pela reivindicação de um grupo particular à universalidade; alienação é a impossibilidade histórica, não ontológica, de que o particular não possa encontrar em si o universal. Isto posto, o jovem Marx também acredita na possibilidade de vencer a alienação, na possibilidade de realização da  essência humana no homem universal, no “ser da espécie”.
* * *
A relação entre Estado e sociedade civil constitui o âmbito onde Marx procurará afinar sua reflexão política. Ele encontra uma boa oportunidade para fazer isso ao se debruçar numa análise da Questão Judaica, de Bruno Bauer. Qual o argumento de Bauer, sobre o qual ele se debruça? O judeu, enquanto particular, não pode pretender um reconhecimento no âmbito de universalidade que é o Estado? Sendo este um âmbito do homem universal, ali não cabe o reconhecimento de qualquer religião. Pretende o judeu obter reconhecimento civil, emancipação civil? Abandone a particularidade do judaísmo. Apenas na universalidade de sua condição humana pode ele reivindicar direitos civis. “Só de um modo sofístico, segundo a aparência, poderia o judeu permanecer judeu na vida do Estado” (Bauer apud Marx, 2009, p. 42). O que Marx não pode aceitar nessa argumentação é a existência de um espaço político não contraditório, de um espaço em que apenas a razão universal, para além de toda contingência, possa imperar. Em outras palavras, Marx critica o privilégio dado ao Estado, em detrimento da sociedade civil, para explicar a dinâmica política da sociedade alemã, ou das sociedades modernas como um todo. “A emancipação política relativamente à religião não é a emancipação consumada, a [emancipação] desprovida de contradição, relativamente à religião, porque a emancipação política não é o modo consumado, o [modo] desprovido de contradição da emancipação humana” (Marx, 2009, p. 48). Creio que essas linhas só fazem sentido diante de um grande ceticismo com respeito à percepção do Estado como lugar de suspensão das diferenças e conflitos, ou seja, diante de um direcionamento teórico que procura e encontra na sociedade civil, nas diferenças do povo, a base de uma dinâmica verdadeiramente política. Diante de tudo isso, podemos entender a inversão crítica do sentido hegeliano do Estado com a qual Marx já começa a operar neste texto.
“A religião é, precisamente, o reconhecimento do homem por um atalho. Por um mediador. O Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem. Assim como Cristo é mediador a quem o homem imputa toda a sua divindade, todo o seu constrangimento religioso [religiöse Befangenheit], também o Estado é o mediador para qual ele transfere toda a sua não-divindade, toda a sua ingenuidade humana” (Marx, 2009, p. 49).
Para Marx, parece estranho que a universalidade do Estado possa conviver com a legalização da propriedade privada.
“O homem, na sua realidade mais próxima, na sociedade civil, é um ser profano. Aqui onde ele se [faz] valer a si próprio e aos outros como indivíduo real – é um fenômeno não-verdadeiro. No Estado, ao contrário – em que o homem vale como ser genérico -, ele é o membro imaginário de uma soberania imaginada, é roubado da sua vida individual real e repleto de uma universalidade irreal” (Marx, 2009, p. 51)
Já neste opúsculo, para Marx, a democracia é a possibilidade de que, na sociedade civil, o ser humano descubra não apenas suas necessidades egoístas, mas a si próprio como ser genérico – o que nos remete a Feuerbach e sua afirmação de no seio de toda individualidade verdadeiramente humana reside não apenas o EU, mas o TU. Passarei ao largo das considerações que Marx faz ao judaísmo e ao cristianismo. Mencionarei apenas isto: “Qual é o fundamento mundano do judaísmo? A precisão prática, o interesse próprio [...] Qual é o culta mundano do judeu? O Tráfico (Schacher). Qual é o seu Deus mundano? O dinheiro” (Ibid., 75). O judaísmo é o espírito do capitalismo, de sua cultura do dinheiro. Para que não se tenha a impressão de anti-semitismo neste velho judeu, vejamos: “O cristianismo é o pensamento sublime do judaísmo; o judaísmo é a comum aplicação útil do cristianismo; mas essa aplicação útil só podia se tornar uma [aplicação] universal depois de o cristianismo, como religião acabada, ter completado teoricamente a autoalienação do homem relativamente a si [próprio] e à natureza” (Ibid., p. 80). E o dinheiro é a essência alienada do ser humano. Mais uma vez temos aqui algo que Marx vai desenvolver nos Manuscritos e na Crítica à Filosofia do Direito: o capitalismo reduz o ser humano à particularidade, ao egoísmo e, no limite, à animalidade desejante. E é por essa via que reproduz a alienação.
“O dinheiro rebaixa todos os deuses do homem – e transforma-os numa mercadoria. O dinheiro é o valor universal – construindo para si próprio – de todas as coisas. Roubou portanto ao mundo inteiro – ao mundo dos homens tal como à natureza – o seu valor peculiar. O dinheiro é a essência – alienada ao homem – do seu trabalho e da sua existência; e essa essência estranha domina-o, e ele adora-a” (Marx, 2009, p. 78).
A oposição Estado – sociedade civil, obviamente, Marx toma de Hegel. A redação da Crítica à Filosofia do Direiro de Hegel constitui, portanto, um momento importante de afirmação de sua fé na democracia em contraposição a regimes políticos autoritários (monoteístas).  Embora mobilizando argumentos feuerbachianos, o objeto final da crítica marxista afasta-se, como já afirmamos acima, da ideia de um monoteísmo realizado na coletividade.
“A Ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apreendida como sua atividade interna imaginária. Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte. No entanto, se Ideia é subjetivada, os sujeitos reais, família, sociedade civil, “circunstâncias, arbítrio” etc. convertem-se em momentos objetivos da Ideia, irreais e com um outro significado” (Marx, 2010, p. 30)
O Espírito, “a ideia real”, na figura do Estado se divide, materializa-se, na particularidade da família e da sociedade civil. Ora, para Marx, esta formulação reduz o político à questão da soberania, à figura de universalidade que encapsularia o espírito do povo. Neste sentido é que ele afirma que a monarquia vive a consciência culpada de afirmar que no povo reside a materialização do espírito, mas, por outro lado, entender que apenas na figura do monarca esse espírito pode ganhar espiritualidade, universalidade. Todos sabemos o quanto Hegel foi importante para a teoria da soberania no século XIX; menos explorada é proposição de uma democracia radicalizada como Aufhebung, como superação realizadora, das contradições da monarquia. Hegel acreditava que o poder soberano continha em si três momentos distintos: i. a universalidade da constituição, suas leis; ii. a capacidade de deliberar com relação à particularidade a partir da universalidade das leis; iii. a decisão última, que submete os dois momentos anteriores. Em outras palavras, entre a lei, a constituição e sua interpretação, sua aplicação no caso particular haverá de existir um ato que seja mais fundamental que a universalidade da primeira e a particularidade da segunda. Já havíamos insinuado a importância desse gesto quando falamos aqui no Cazzo sobre Kant e a aporia do julgamento. Vocês haverão de se lembrar: como, pergunta-se Kant, realizo um procedimento tão simples do entendimento quanto aplicar uma regra a um caso particular, um conceito a um fato empírico, o conceito de mesa a uma mesa particular em minha frente? As dificuldades ali envolvidas eram tão grandes que Kant escreveu uma Crítica inteira para tratar do problema, a Crítica do Julgamento. Hegel tira daquela aporia conclusões políticas centrais para o pensamento político ocidental a partir do paradigama da soberania. “Soberano é aquele que decide”, dirá muitos anos depois Carl Schmitt, é aquele que vence a aporia do julgamento com a violência de uma decisão que, afinal legitima tanto a regra quanto o caso particular. O verdadeiro ato político, e esta é a interpretação que Marx faz também de Hegel, significaria o cancelamento último de todas as particularidades em nome do soberano, único ente verdadeiramente sujeito no/do processo político. Embora não possa desenvolver essa relação aqui, cito Hegel a partir da Crítica à Filosofia do Direito e não posso deixar de escutar ali também as palavras que dirá Schmitt. Hegel diz: 
“Em situação de paz, as esferas e funções particulares dão prosseguimento à satisfação de suas funções particulares, e isso é, por outro lado, apenas o modo da necessidade  inconsciente da coisa, segundo a qual seu egoísmo se transforma na contribuição à conservação recíproca e à conservação de todos; mas, por outro lado, é a  ação direta  vinda Don alto, pela qual elas são tanto reconduzidas continuamente ao fim do todo, quanto limitadas pela obrigação de contribuir diretamente para a conservação; em  situação de urgência, porém, seja ela interna ou externa, impõe-se a soberania, em cujo conceito simples conflui o organismo existente em suas particularidades e à qual é confiada a salvação do Estado com o sacrifício daquilo que seria legítimo, situação na qual aquele idealismo chega à sua realidade própria” (apud Marx, 2010, p. 43).

Para Marx, por outro lado, apenas a sociedade civil é âmbito em que o político pode se realizar. Mas é possível também que ali o político se realize apenas de forma alienada, que o ser humano seja incapaz de se reconhecer no outro, e, portanto, incapaz de reconhecer seu mais alto potencial, a si próprio como ser da espécie, sua universalidade, sua infinitude, para voltarmos ao ponto de onde começamos mais esse post. E neste ponto recorreremos a uma breve revisão dos Manuscritos Econômicos Filosóficos.
Acho que precisarei de mais um post para concluir... E esse vai sem revisão alguma.

12 comentários:

Tâmara disse...

Jonatas,
Você me fez descobrir uma coisa: Gilberto Gil é uma espécie de feuerbachiano sertanejo! Ou pelo menos foi, quando escreveu "O amor aqui de casa":
"quem so' conhece conforto não merece boa sorte". Eu sempre me emocionei com essas palavras e acho que elas tem relação i'ntima com "so' o ser indigente é o ser necessa'rio". E essa aproximação permite vislumbrar uma duplicidade que você mencionou: o fundamento do homem no amor inclui sua face negativa - o o'dio, assim como todas as matizes afetivas entre um e outro que atravessam "o coletivo" ou a "sociedade civil".

Permite uma observação formal e ingênua? Sera' que você precisaria mesmo passar por Schmitt para desenvolver as relações entre Hegel e Marx quanto à relação Estado/sociedade civil? Em primeira leitura, achei que isso não parece necessa'rio à sua argumentação. Mas isso pode ser apenas efeito do tipo de amor que acho que Schmitt pode me inspirar...Abraço

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara.

Não seria necessário, mesmo. Mas é que estou deixando um gancho para desenvolver mais na frente - muito mais na frente - algo que vai ser importante e que passa por Schmitt. É só preparação de terreno. Bem vou ainda retocar este post e não vai ficar tão estranho quanto está. Mas, basicamente, preparo terreno com a citação de Schmitt. Abraço, Jonatas

Le Cazzo disse...

Ah, percebo que algo não ficou claro no texto. A citação em questão é de Hegel, da Filosofia do Direito. Agora ela corresponde a tudo que CS dirá sobre amigo-inimigo. Melhorarei o texto pois ele está equívoco. Obrigado por alertar. Jonatas

Raíza Cavalcanti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raíza Cavalcanti disse...

"Só merece existir o que pode sofrer!". Mas há quem diga "quem me faz sofrer não merece existir!". O duplo do amor - o ódio - parece sempre querer levar o outro ao aniquilamento, não é? ... com o perdão do comentário boboca!

(Muito bom o artigo!),
Beijos,
Raíza

Le Cazzo disse...

Raílzias!

Quem faz vossa mercê sofrer não merece mesmo existir! Se precisar de um alagoano bom, como diz uma amiga entendida nesses assuntos, o contrato é coisa pouca e o serviço é "agarantido, doutora". É só de você falar no nome do judas, que o alagoano já pega ódio como se o fulano tivesse escarrado na cara da mãe dele. E obrigado pelo elogio. Beijo, Jonatas

Raíza Cavalcanti disse...

Ai, Jonatas, me passa o telefone desse alagoano!! Acho que tenho um "selviço" pra ele! ahahhahahaha

Le Cazzo disse...

Oi, Fábio.

Bem-vindo. Assim que der, dou uma passada no seu blog - preciso mesmo dar um tapa no visual, embora desconfie que a ingratidão da mãe natureza seja algo que eu acho que não posso disfarçar. Abraço,

Jonatas

vinicius lobo disse...

Muito bom o texto Jonatas. O que me chamou a atenção, entre outras coisas que vão ter que ficar pra outra oportunidade, foi o comentário sobre a presença da religião na metafísica hegeliana. Pra mim é muito difícil entender se dentro da proposta de subjetividade concebida por Hegel de fato está implicada o fim da contradição. O fim da contradição implicaria o fim do movimento, o que de fato é uma transcendência, como o diz Feuerbach; mas o fim da contradição seria também o fim da essência relacional do absoluto, o que ao meu ver é uma afirmação que tem um contraste forte com o carater dialético da lógica hegeliana. É como se o "torna-te o que não és" da ontologia hegeliana se transforma-se, na sua filosofia política, como o diz Feuerbach numa das citações do teu texto, "num torna-te o que és". Como sabes, não tenho muita leitura na filosofia política de Hegel, mas um olhar para a estrutura da sua ontologia não nós dá o direito de relativizar a crítica de Feuerbach?

Le Cazzo disse...

Oi, Vinícius.

Coincidência, o seu questionamento central foi também o de Franzé, no meu último post. Ali falo sobre o caráter negativo da dialética e em que medida este caáter pode, da perspectiva hegeliana, permanecer aberto ou deve necessariamente se realizar. Talvez valha a pena de o ler. Abraço e obrigado. Jonatas

Alyson Freire disse...

É interessante perceber, embora não se relaciona diretamente com o seu objetivo, como a abordagem do tema da alienação, enquanto conceito filosófico, historicizado por meio da análise da religião e das relações de produção capitalistas, em autores como Feuerbach e Marx toma como base um certo conceito de homem, ou de quais faculdades constituem e expressam a humanidade do homem. Seriam essas faculdades que uma vez confiscadas e impossibilitadas à consciência dos homens definiriam sua alienação.

Se autores como Feuerbach e Marx tomam o campo da religião e do trabalho como sintomáticos no sentido de observar as conseqüências alienantes sobre a humanidade do homem e suas faculdades próprias, o que, talvez, eles não se deram conta foi o que ou a partir de que, a imagem do que é a humanidade do homem foi construída e firmada – esta é muito mais pressuposta como ideal moral. Aqui é que, talvez, a arqueologia de Foucault acerca do processo de medicalização e encarceramento da loucura seja interessante a esse respeito. Nela, Foucault argumenta como a loucura e o louco serviram à razão e à concepção da humanidade do homem no sentido de conferir o relevo de suas identidades próprias. A loucura significava o afastamento da essência humana, pois desprovido da racionalidade, privado da liberdade e inapto à produção, faltava ao “sujeito-louco” todos os atributos relevantes na definição do que era a verdade do homem – no sentido moderno. No entanto, se a loucura, por um lado, constituía a alienação da própria verdade do homem – para o louco -, ela, por outro, enquanto alienação firmava, por contraste, a essência do homem para o próprio homem – normal, racional, produtivo, livre. Enfim, penso que Foucault na História da loucura elabora um jogo interessante ao insinuar como o caminho da verdade do que é o homem, ou seja, o homem não-alienado de si mesmo, passa, necessariamente, por sua negatividade observada literalmente por meio da alienação.

Le Cazzo disse...

Oi, Alyson.

Deixe-me então resumir um pouco o argumento. Ideias como alienação, estranhamento (penso aqui no sentido que essa palavra adquire em Freud e Simmel, por exemplo) sempre nos remetem a algo como um ser humano retornado a si, à sua essência. Interessa-me aqui fazer uma "arqueologia" de algumas tentativas de empreender esse retorno à unidade do sujeito, à plenitude do ser humano, como herança cultural, intelectual do romantismo alemão. E obviamente interessa-me discutir a ideia de essência humana pressuposta e nunca explicitamente discutida nesses textos. Foucault não estaria interessado em fazer essa história das ideias que, bem ou mal, para um consumo bastante modesto, empreendo aqui. No entanto, acho que ele é uma referência importantíssima para pensar categorias como subjetividade e humanidade. Jonatas