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quinta-feira, 30 de junho de 2011
Admirável senso comum? Agência e estrutura na sociologia fenomenológica
Por Gabriel Peters - doutorando, IESP-UERJ
Artigo originalmente publicado em Ciências Sociais Unisinos 47(1):85-97, janeiro/abril 2011. Cedido ao Cazzo pelo autor.
Resumo
O artigo realiza uma incursão seletiva ao terreno plural das microssociologias interpretativas, perfazendo uma análise crítica das contribuições à teoria social legadas pela sociologia fenomenológica de Alfred Schutz e pelo desdobramento desta na abordagem etnometodológica de Harold Garfinkel, com foco especial sobre o problema fundacional da relação entre a ação individual subjetivamente propelida, de um lado, e os contextos societários nos quais ela se desenrola, de outro. No jargão que se tornou hegemônico na teoria sociológica desde a emergência do “novo movimento teórico” (Alexander), o que pretendo fazer é discutir possibilidades e limites da sociologia fenomenológica no enfrentamento da questão do relacionamento entre agência e estrutura.
A inescapável dimensão compreensiva da sociologia
Desde sua “dupla fundação” (Vandenberghe, 1999, p. 34) pelo positivismo de Comte na França e pelo historicismo hermenêutico de Dilthey na Alemanha, a paisagem da sociologia permanece atravessada pela divisão entre paladinos do monismo ou naturalismo epistemológico – isto é, da ideia de que as ciências sociais devem trabalhar sob a égide dos mesmos parâmetros metodológicos vigentes nas ciências da natureza – e defensores do dualismo ou separatismo epistêmico – os quais, defrontando- se com especificidades iniludíveis da vida social e, por extensão, dos tipos de inquérito que podem ser feitos sobre esta, defendem a perspectiva de que o conhecimento sociológico, embora possa ser fidedignamente caracterizado como científico, possui um status gnosiológico significativamente distinto daquele da investigação científico-natural. As diferentes concepções metateóricas acerca do status epistêmico da sociologia também estiveram, desde cedo, associadas a desacordos fundamentais quanto às caracterizações ontológicas das entidades e processos constitutivos do mundo societário, bem como quanto às orientações metodológicas tidas como heuristicamente mais fecundas para o estudo empírico desse universo.
Com efeito, é possível propor a tese de que a prima ratio da posição antimonista encontra-se em um insight ontológico substantivo acerca da ação e da experiência humana em sociedade, insight fraseado de inúmeras formas ao longo da teoria social do século XX, mas que poderíamos expressar assim: di- ferentemente dos fenômenos estudados pelas ciências naturais, os atores humanos que constituem o objeto da sociologia possuem, eles mesmos, concepções e representações acerca do próprio comportamento e dos seus múltiplos contextos de ação, concepções e representações (discursivamente articuladas ou tacitamente supostas) que não seriam elementos simplesmente adjacentes às suas condutas, mas instâncias constitutivas das suas atividades e, portanto, dos mecanismos pelos quais o mundo social se reproduz ou transforma. Nesse sentido, o naturalismo epistêmico preconizado por Comte, Durkheim e tutti quanti negligenciaria a especificidade que as ciências sociais derivam do seu caráter hermenêutico (do grego hermeneus, que significa “intérprete”) ou compreensivo, isto é, do fato de que elas têm como uma de suas dimensões essenciais e inescapáveis a tarefa de interpretação dos significados (inter)subjetivos engendrados pelos seres humanos no curso de sua existência conjunta.
Se fosse necessário encontrar um patrono para a defesa do projeto teórico-metodológico da sociologia compreensiva, concebida em sentido lato ou ecumênico (isto é, para além da sua identificação exclusiva com a versão formulada pelo seu ad- vogado mais famoso: nosso velho herói Max Weber [2000, cap. 1]), não faríamos mal em escolher Giambattista Vico como um dos mais fortes candidatos ao posto. Em Scienza Nuova, publicada na primeira metade do século XVIII, o sábio napolitano inaugurou uma espécie de humanismo epistemológico que contrapunha a exterioridade insuperável do modus cognoscendi científico-natural ao acesso à vida interior de atores conscientes no estudo das ações e produtos históricos do anthropos (Merquior, 1983, p. 15-19). Tal tema veio à baila com força na famosa controvérsia, que chacoalhou a academia alemã no final do século XIX e início do XX, acerca do estatuto epistemológico das chamadas ciências do espírito ou da cultura (Geisteswissenschaften) em relação às ciências naturais (Naturwissenschaften). Foi Max Weber quem assumiu, talvez, a posição mais singular nesse debate, a qual se diferencia tanto do monismo naturalista cego ao caráter impregnado de significado do mundo social (ou, ao menos, às implicações metodológicas desse fato) quanto do dualismo metodológico radicalizado de representantes destacados do historicismo germânico, como Rickert e o próprio Dilthey. Este último, embora um pensador dos mais complexos cuja contribuição resiste à simplificação, passou à história da disciplina sociológica sobretudo como defensor de uma cisão radical entre Erklären e Verstehen, isto é, entre os procedimentos causal-explicativos das ciências naturais e os procedimen- tos compreensivos das ciências humanas. No que toca a esses últimos, Dilthey também adquiriu o vulto de principal teórico da empatia como caminho de elucidação das ações desenroladas em universos sócio-históricos diversos, concebidos, sob a influência de Hegel, como exteriorizações do espírito humano as quais reclamariam, para a sua compreensão, a reativação psíquica dos significados subjetivos que elas coagulam historicamente (Outhwaite, 1985, p. 23-31). Weber, por outro lado, ao mesmo tempo em que reconhecia a especificidade do empreendimento científico-social, não concluía daí que o inquérito sociológico disporia de métodos radicalmente distintos daqueles presentes nas ciências naturais ou substituiria a explicação causal empiricamente verificada pelo intuicionismo empático puro e simples. Tanto Schutz como Parsons permaneceram, cada um à sua sin- gular maneira, fiéis à proposta weberiana de incorporar o ponto de vista subjetivo do ator como central à teoria sociológica (e como differentia specifica em relação às ciências da natureza) sem abdicar das exigências lógicas e metodológicas implicadas no projeto de uma ciência da vida social.
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sábado, 25 de junho de 2011
Marcha das Vadias em Brasília
Vanessa Macedo, que passou recentemente a seguir o Cazzo, fez upload no youtube de um pequeno vídeo sobre a Marcha das Vadias em Brasília. Está logo abaixo. Você também tinha também sugerido um vídeo sobre a perseguição de gays e lésbicas na Alemanha, durante o regime nazista, Vanessa. Mas não o encontrei mais... Estava no meio do documentário. Será que você poderia nos enviar novamente o endereço? Obrigado. Jonatas
quarta-feira, 22 de junho de 2011
Raízes do Brasil
Fernando da Mota Lima
Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo no ano de 1902. Era portanto muito jovem quando o modernismo irrompeu ruidosamente na cena cultural brasileira com a Semana de Arte Moderna em 1922. Embora intelectualmente muito atuante ao longo do decênio de 1920, também durante os anos seguintes, somente publicou seu primeiro livro em 1936, quando Raízes do Brasil veio a público. No entanto, o livro, tal como hoje o conhecemos, foi muito modificado entre a primeira edição e a segunda, que data de 1948. Apesar de confessadamente não encarar Raízes do Brasil como seu livro mais importante (preferia Visão do Paraíso, cuja importância capital se impõe cada vez mais aos olhos dos especialistas), o fato é que esta é a obra que o consagrou e se mantém como a mais significativa e estudada no conjunto da sua produção intelectual.
Sérgio Buarque viveu cerca de um ano e meio na Alemanha, entre junho de 1929 e dezembro de 1930. Menciono ligeiramente essa experiência porque teve muita importância na sua vida e formação, além de se refletir de vários modos no texto de Raízes do Brasil. Sérgio Buarque foi para a Alemanha como correspondente de O Jornal, periódico de propriedade de Assis Chateaubriand. Além de observar o clima de violência e tensão social que em 1933 culminou com a ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, leu muito da produção intelectual alemã desconhecida no Brasil. Leu em particular Max Weber e Georg Simmel. Do primeiro aproveitou o conceito de patrimonialismo para melhor compreender a formação do Estado brasileiro e seu aparato burocrático; com o segundo refina sua percepção analítica dos tipos sociais que certamente ilumina categorias como o semeador e o ladrilhador, núcleo e título do capítulo 4 de Raízes do Brasil.
Desde já esclareço que as citações diretas que acaso faça da obra no texto que segue serão extraídas da edição comemorativa dos 70 anos organizada por Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Schwarcz, Editora Companhia das Letras, 2006. Além de ser uma edição previsivelmente bem mais ampla e melhor cuidada do que todas as precedentes, vem enriquecida por textos do próprio autor e de estudiosos e especialistas, arrematados pelos “Apontamentos para a cronologia de Sérgio Buarque de Holanda” assinados por Maria Amélia Buarque de Holanda, sua companheira e colaboradora da vida inteira. Além de republicar o sempre citado prefácio de Antonio Candido escrito para a edição dos 30 anos de Raízes do Brasil, são adicionados textos importantes de Alexandre Eulálio, Evaldo Cabral de Mello, Bolivar Lamounier, Antonio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro e Robert Wegner.
Enriquecem ainda o volume três documentos raros: o muito citado artigo no qual é reposta a controvérsia entre Cassiano Ricardo, autor do artigo, e Sérgio Buarque de Holanda acerca do conceito de homem cordial. Como sabemos, esse conceito, central na argumentação do livro de Sérgio Buarque, tem sido objeto de ampla fortuna crítica, mas também de muito mal-entendido. O mal-entendido aparenta originar-se das críticas formuladas por Cassiano Ricardo. Portanto, é oportuna a inclusão do seu artigo na edição que comento acrescido da resposta de Sérgio Buarque em forma de carta endereçada a Cassiano Ricardo. Essa questão é ainda melhor iluminada pela inclusão de um curto texto de Ribeiro Couto, datado de 1931, no qual ele saúda o surgimento do homem cordial na América originário da fusão do homem ibérico (o espanhol e o português) e as culturas nativas do Novo Mundo. Cuidarei melhor dessa questão no lugar apropriado, quando abaixo discutir o capítulo relativo ao homem cordial brasileiro. Por fim, um texto ainda mais precioso: o ensaio “Corpo e alma do Brasil”, publicado em 1935. Nele Sérgio Buarque sintetiza o que no ano seguinte constituiria a primeira edição de Raízes do Brasil. Como já observei no parágrafo de abertura, a obra foi refundida e ampliada na segunda edição, lançada em1948, que passou a ser o texto definitivo da obra que estudamos.
O título da obra já indica, de partida, sua regressão às origens da nossa formação histórico-cultural com o propósito de explicar o Brasil. Essa é uma característica comum a todas as obras que compõem a tradição do pensamento social brasileiro. No caso do livro de Sérgio Buarque, porém, o objetivo de estudar o passado visando as questões fundamentais do presente é bem mais nítido, como aliás ressaltou Antonio Candido. Uma das evidências imediatas desse fato consiste nos títulos e na matéria dos dois capítulos finais intitulados “Novos Tempos” e “Nossa Revolução”. Sérgio Buarque recua portanto a nossas origens histórico-culturais para projetar luz sobre o presente, para melhor compreender e esclarecer os problemas fundamentais e impasses da sociedade brasileira.
O autor ressalta nas páginas iniciais duas questões de grande relevância no conjunto da obra. A primeira refere-se ao processo de implantação da cultura europeia no trópico, fator originário da constituição da cultura brasileira. Depois de acentuar as diferenças profundas observáveis entre esses dois mundos que se encontram, entrechocam e por fim geram uma realidade inteiramente nova, Sérgio Buarque escreve um dos períodos mais citados da sua obra: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. (p. 19)
A segunda questão diz respeito à cultura da personalidade típica do homem ibérico. Depois de observar que representou o traço mais importante desse povo, esclarece que ela traduz o valor, a originalidade de cada pessoa que assim se diferencia da coletividade e até a esta se opõe. Salientando a oposição entre o culto da personalidade e as formas de associação características de toda coletividade, Sérgio Buarque assinala que essa forma de personalismo ibérico constituiu e constitui ainda na nossa cultura uma força de oposição à coletividade, além de estar na raiz das forças anárquicas e desordenadoras da nossa sociedade. Paradoxalmente, ela supõe a obediência, que se afirma notadamente em situações de crise de autoridade. Como justamente anota, “Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. (p. 21).
Assim, na terra onde medra o personalismo altaneiro, não raro arrogante, em termos políticos o autoritarismo típico da América Latina, medra também a obediência imposta por uma autoridade temida nos momentos de crise. A terra do personalismo ibérico é também fértil na produção de forças sociais anárquicas, como também já ressaltei. Sérgio Buarque acrescenta, a esse propósito, que essas forças sempre se manifestaram na nossa história, não raro favorecidas pela cumplicidade e a leniência das instituições. Importaria esclarecer, visando melhor contextualizar a obra, que ela foi escrita em meio a esse clima no qual se manifestavam forças anárquicas representadas por rebeliões armadas e combates ideológicos e conflitos violentos travados por comunistas e integralistas, ambos buscando soluções políticas e sociais avessas à democracia. É significativo que o Estado Novo, instituído através de um golpe de Estado por Getúlio Vargas em 1937, portanto no ano seguinte ao da publicação de Raízes do Brasil, tenha imposto essa autoridade temida diante da qual o personalismo assina o pacto social da obediência. Como sabemos, o Estado Novo vigorou até 1945. Depois de um período conturbado, durante o qual o Partido Comunista manteve-se na legalidade apenas por um curto período, sobreveio o golpe militar de 1964 e a ditadura militar que se prolongou até 1985. Esses poucos fatos históricos conferem força explicativa ao livro de Sérgio Buarque.
Penso que as forças anárquicas sublinhadas na obra de Sérgio Buarque também se manifestam em âmbito distinto do estritamente político acima mencionado. Elas são observáveis, por exemplo, no cotidiano da nossa cultura, na nossa incapacidade crônica de instituirmos relações de convívio baseadas na distinção fundamental entre a esfera pública e a privada. Nossas forças de desregramento social são facilmente visíveis numa cena qualquer de rua, no estado típico de uso e conservação da rua. Afinal, é ela quem define culturalmente a concepção inconsciente e a prática de sentido público que imprimimos à nossa experiência social.
Outra questão relevante, também salientada por Sérgio Buarque, liga-se à condição excêntrica do mundo ibérico na Europa. Essa excentricidade resulta tanto da posição geográfica da península ibérica, espremida entre o continente europeu e o africano, quanto de caracteres culturais diferenciadores fruto do contato do ibérico com o árabe e o judeu. Essa experiência de contato cultural com povos do continente africano familiarizou o português com a mestiçagem e lhe foi de grande utilidade no processo de colonização do Brasil onde desde o início, como bem sabemos, livremente se mesclou com as tribos indígenas através do acasalamento com a mulher índia, mais tarde com a negra. Trata-se, em suma, de uma questão antes bem explorada por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala. Portanto, Sérgio Buarque apenas reitera o que se pode ler nas páginas da obra do seu antecessor.
Retomando a questão pertinente ao culto da personalidade, ela se irmana ao conceito de cordialidade que estudarei adiante. O personalismo ibérico, tão acentuado no livro de Sérgio Buarque, atua como força avessa à organização coletiva da sociedade. Quando se associa, tende a associar-se baseado em relações de sentimento, não de interesse. Esse é um dos aspectos em que é possível notar a profunda diferença entre o individualismo moderno, típico da tradição anglo-saxônica, e o personalismo ibérico. Este produz um tipo de individualismo com razão detestado e detestável, pois se afirma indiferente aos interesses e direitos coletivos. Noutras palavras, o que entre nós ainda vigora não é o princípio segundo o qual minha liberdade termina onde a do outro começa, mas sim o princípio que autoritariamente ordena: os incomodados que se mudem.
Caberia ainda acrescentar, nesse paralelo sumário entre o individualismo de extração anglo-saxônica e o personalismo ibérico, que este mascara interesses explícitos naquele. Já que se baseia nas relações de sentimento, o personalismo rejeita a atuação dos interesses nas relações associativas. Assim procedendo, tende a mascará-los, além de sempre reprovar quem acaso tenha a consciência de explicitar esta verdade elementar: as relações humanas em geral envolvem interesses unilaterais ou recíprocos. Se o individualismo moderno é em muitos sentidos reprovável, na medida em que encoraja em demasia os interesses de ordem privada, tem ele a vantagem de reconhecer sem máscara ou isento de inconsciência danosa o lugar efetivo que os interesses ocupam nas relações humanas. Nosso personalismo, atado às razões sentimentais, repele o individualismo consciente e prático, mas é pautado por interesses inconfessáveis ou inconscientes como os que latejam nessa frase modelar da nossa cultura: antes ter amigos em casa do que dinheiro na praça. Ou ainda esta: para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.
Concluo essas considerações em torno de alguns aspectos de Raízes do Brasil tecendo algumas anotações relativas ao capítulo intitulado “O homem cordial”. Além da importância fundamental que desempenha no conjunto da obra, o conceito chave aí exposto por Sérgio Buarque, o da cordialidade brasileira, tem dado margem a muito mal-entendido. Houve quem erradamente o interpretasse lendo efetivamente o livro, como foi o caso de Cassiano Ricardo, e houve sobretudo quem remasse nessa canoa furada simplesmente por opinar sem o ler. A canoa furada consiste, noutras palavras, em interpretar cordialidade como sinônimo de bondade. Daí não faltou quem concluísse que Sérgio Buarque de certa forma endossava interpretações ufanistas do Brasil ao caracterizar o brasileiro como acima de tudo bom. Tentarei esclarecer agora esse equívoco indo ao próprio texto da obra.
O próprio autor, visando corrigir a incompreensão de Cassiano Ricardo, assim como de tantos que traduzem cordialidade num sentido incompatível com aquele contido em Raízes do Brasil, cuidou de inserir na obra, a partir da segunda edição, longa e esclarecedora nota explicativa. A ela agora se acrescenta, a partir desta edição comemorativa dos 70 anos em que me baseio para a redação destas notas, a carta que escreveu para Cassiano Ricardo em setembro de 1948. Divergindo deste, que identifica cordialidade com polidez e opõe cordialidade a bondade, Sérgio Buarque deixa claro, aliás desde o texto da primeira edição, conceber a cordialidade como a expressão dos vínculos de cunho emotivo característicos das relações sociais brasileiras. Essa característica, de resto, irmana o conceito de cordialidade com o do culto da personalidade, como acima observei.
Indo adiante na intenção de bem esclarecer o desacordo, Sérgio Buarque alude à etimologia da palavra cordial. Procedendo do latim cordis, isto é, “relativo ao coração”, às expressões humanas de fundo emotivo procedentes do coração, visa ele acentuar a descontinuidade, ou melhor, a oposição entre as relações de fundo emotivo ou pessoal, típicas do homem cordial, e as relações de base legal, que entendo características da democracia moderna baseada nos valores de cunho impessoal, universal e abstrato típicos da ordem legal inspirada no individualismo moderno. O sentido que procuro aqui esboçar parece-me evidente já na abertura do capítulo “O homem cordial”, onde o autor começa por ressaltar a descontinuidade, ou mais exatamente a oposição, entre a ordem familiar, notadamente a ordem familiar patriarcal típica da formação da cultura brasileira, e a ordem do Estado. Como Sérgio Buarque acertadamente pontua, o Estado precisou negar a ordem privada da família para se constituir como expressão política das leis impessoais e abstratas da Cidade. Daí também deriva a oposição clara que estabelece entre cordialidade e polidez. Também nesse ponto volto a recorrer à etimologia, embora Sérgio Buarque não repita esse procedimento que emprega para melhor esclarecer o sentido de cordial, cordialidade. O ser polido é aquele cultivado, educado pelas leis da polis, isto é, da cidade politicamente organizada. Penso que a oposição que o autor fixa entre a ordem familiar e aquela instituída pelo Estado é da mesma natureza da que opõe o homem cordial ao homem polido.
Negando ao brasileiro esta qualidade, a da polidez, o que Sérgio Buarque pretende mais uma vez enfatizar é a prevalência na nossa cultura das relações de fundo emotivo enraizadas no coração. Ora, ele nitidamente identifica nessa nossa característica um traço negativo que precisaria ser superado pela ordem social em formação naquele período, aludo à época em que o livro foi escrito, para que no Brasil efetivamente se realizasse uma democracia moderna, isto é, baseada no império das relações legais, que como tal suprimem os valores oriundos do culto da personalidade e do homem cordial. Em suma, a ordem legal na qual passariam a dominar relações legais baseadas em princípios universais e abstratos.
Fazendo uma aposta otimista acerca do nosso futuro, Sérgio Buarque acreditou que essa nova ordem triunfaria graças ao processo de urbanização em marcha acelerada, à instituição de novos métodos educativos e práticas de organização do trabalho, casos exemplificados no capítulo que comento. Embora acentue ainda a predominância do funcionário patrimonial em oposição ao burocrata, parece-me também clara sua convicção de que este se imporia àquele. Temos aqui uma outra ordem de oposição clara. Enquanto o funcionário patrimonial prende-se à ordem tradicional associada à família patriarcal que se projeta sobre a ordem política privatizando a esfera pública, o burocrata pauta sua função pelos mesmos princípios impessoais e abstratos observáveis na instituição do Estado moderno. Os exemplos que o autor expõe acerca da psicologia moderna aplicada à educação também reiteram e reforçam a oposição que percorre todos os pares acima considerados. Portanto, entendo que em resumo o universo das relações cordiais identifica-se com o império das relações de fundo emotivo, pessoais e antidemocráticas. No outro extremo, situam-se as relações de fundo legal, típicas da democracia moderna.
No frigir dos ovos, se minha interpretação é correta, sem dúvida avançamos em muitos sentidos em direção à ordem legal e democrática postulada na obra de Sérgio Buarque. Ele postula essa mudança e nitidamente declara a esperança de que ela venha a se consumar na sociedade brasileira. Embora possamos constatar avanços inegáveis na direção apontada, infelizmente o homem cordial é ainda uma realidade muito viva na nossa cultura. Seus valores são ambivalentes, como aliás já o reconhecia o autor. Se de um lado estão enraizados em muito da nossa espontaneidade, da nossa aversão a ritualismos estéreis, mas também a ritualismos em geral, e aí a coisa já complica o sentido dos ganhos entre espontaneidade e formalismo social, de outro lado eles estão nas raízes das nossas relações desiguais, do favorecimento dos parentes, amigos e apadrinhados, da ordem social baseada no privilégio e, no limite, na apropriação corrupta do público pelo privado
Concluindo, o Brasil encontra-se já no início do século 21, sua economia está entre as dez mais poderosas do mundo, mas no âmbito cultural e institucional continuamos nos balançando sem solução entre os valores da cordialidade, ou das relações de fundo emotivo e pessoal, e os valores da ordem social democrática baseada em relações legais de fundo universal e abstrato. Pior para a maioria e portanto para o conjunto da nação, ainda atada a uma ordem de realidade cultural que bem justifica a frase famosa de Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes”. Sendo assim, as explicações aqui estudadas sem dúvida muito nos esclarecem, mas não são nem podem ser a solução dos problemas que entravam nosso ingresso na modernidade plena. A solução, suponho, depende de transformações socioculturais e econômicas profundas, que ninguém sabe quando se completarão.
domingo, 19 de junho de 2011
Tendências desterritorializadoras e territorializadoras nas tecnologias da vida: o caso da pesquisa nanobiotecnológica no Brasil
Jonatas Ferreira
“A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina: máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle” (Deleuze, 2000, p. 216).
Introdução de uma comunicação apresentada no I Simpósio Internacional de Geografia do Conhecimento e Inovação
Em um texto hoje bastante conhecido, Foucault disse a respeito de Deleuze, não sem uma ponta de ironia, que o século vinte seria conhecido como o “século deleuziano”, que o filósofo da esquizoanálise seria o último pensador de sistemas. Num mundo fragmentado pelos fluxos vertiginosos do capitalismo, teríamos esse anacronismo: alguém que se dedica a pensar o mundo a partir de um princípio único, o desejo, e também a propor a imanência do desejo, que a tudo se conecta, contra o seu amesquinhamento sob o regime capitalista. Pois o capitalismo também é uma máquina de produzir conexões, e isso tem sido enfatizado numa larga literatura sobre globalização, mas o faz de forma automática e restritiva, impedindo a ação criativa em nome da previsibilidade lucrativa. Embora meus interesses teóricos sempre tenham passado ao largo da difícil prosa deleuziana - difícil e surpreendente se a comparamos com o discurso cristalino de suas aulas -, vejo, nisso que entendo ser a base da contribuição deleuziana, possibilidades de análise bastante ricas quando consideramos nossos envolvimentos tecnológicos na contemporaneidade. E me explico imediatamente: sob a influência da cibernética, das tecnologias da informação e comunicação, as ciências hoje operam como máquinas desejantes, sob o impulso de decompor, atomizar, e ao mesmo tempo colocar tudo, mundo vivo e inanimado, o visível e o invisível, numa comunicação absoluta. Ao reduzir tudo a moléculas e átomos, a estruturas genéticas, a bits, e propor a produção de novos materiais, novas formas de vida, novos processos técnicos, as ciências promovem na contemporaneidade algo como uma orgia da matéria. E, ao mesmo tempo, a energia que acena com a realização desse desejo parece ser demasiado reduzida, demasiado territorializada pela máquina de produção capitalista, para poder realizar essas promessas de liberdade e de uma ética da imanência, tal como propunha Gilles Deleuze.
Não me entendam mal. Sou um intelectual para quem certos ecos da geração de 1968 soam já estranhos; sou demasiado tímido para as promessas do desejo; demasiado analisado, neurótico para me entregar as promessas da esquizoanálise. E se a filosofia deleuziana me coloca como alternativas uma filosofia que busca o sentido e outra que busca entender o mecanismo das coisas, não tenho dúvidas de qual seria minha opção: ainda sou um anjo caído, protestante que fui em minha formação, ainda tenho saudades de um sentido que oriente a vida. Entretanto, o vitalismo deleuziano lança um desafio teórico que acredito ser produtivo para alguém que, como eu, se dedica a pensar as novas tecnologias da vida. E o desafio inicial é precisamente entender que o vitalismo sempre propôs, de alguma forma, entender a máquina de produção da vida para tentar libertá-la do mecanismo, da repetição empobrecedora. Em Nietzsche, Bergson ou Deleuze, busca-se um princípio que estabelece a contingência, e não a lei mecânica, como momento ético de afirmação do ser humano como ser capaz da criação, de estabelecer o novo. Neste sentido, eles seriam bons companheiros para pensar as ciências da vida.
Inicialmente eu afirmaria, usando o jargão deleuziano a contrapelo, que há algo de ‘maquínico’ e ‘desejante’ na dinâmica do capitalismo contemporâneo que cabe analisar - Deleuze talvez diria que teríamos diante de nós apenas o desejo transformado culturalmente numa pulsão, em algo previsível, automatizado. O capitalismo transforma tudo para não precisar mudar os princípios destrutivos sobre os quais opera. Há aqui, portanto, a necessidade de um esclarecimento. Distinguindo entre um poder de “autoprodução” e um poder de “antiprodução”, para Deleuze: “Na produção, o desejo é inteiramente imanente no processo; não há capacidades não realizadas deixadas de lado, e uma máquina funciona tão bem quanto ela pode, consumindo e transformando a si mesma no processo – ela se afeta a si própria. Na antiprodução, entretanto, não há suficiente energia ou desejo para criar relações plenas, consistentes, e mutuamente afetivas entre as engrenagens [assemblages] que se encontram” (Goodchild, 1996, p. 73). Neste sentido, a máquina capitalista não pode ser plenamente desejante pois sua energia é constantemente reterritorializada de acordo com as necessidades de reprodução do sistema. O capitalismo não pode se abrir à contingência das conexões entre os seres humanos, por exemplo, ou destes com outros seres vivos, pois a pulsão que o guia se territorializa como necessidade de controle, como previsibilidade, como vontade de aceleração, como compulsão de extenuação das forças vitais.
Ao longo dos últimos dez anos, venho insistindo na importância da cibernética para entendermos tanto os elementos “desterrritorializadores”, nômades, quanto os elementos “reterritorializadores” das novas tecnologias da vida. Primeiro, há sempre neste contexto a tentativa de decompor a vida, a matéria, nos elementos básicos constitutivos. Se na teoria da comunicação, como bem sabemos, esse elemento é o bit, para a biologia molecular é o gene, a sequência de DNA; na nanotecnologia, teríamos o átomo, a estrutura nanométrica. A pergunta que a ciência contemporânea se faz é sempre: o que esses elementos básicos podem expressar, atualizar no mundo das coisas concretas, vivas? Pensada como codificação de uma língua franca, o que a estrutura do DNA pode expressar que a natureza, deixada à sua dinâmica própria, não pode? E novas propriedades a matéria estruturada em dimensão nanoscópica pode expressar? Assim, em todo caso, uma questão linguística, uma questão de sintaxe sempre se coloca. Que organização atômica, ou genética produz efeitos tais ou quais? Que combinações possíveis entre essas estruturas “linguísticas” básicas produzem resultados relevantes para a indústria de cosméticos, de fármacos, de comunicação?
Além disso, as máquinas que operam sob esse novo modelo técnico e científico devem ser entendidas, como as entende Deleuze, isto é, como sistemas abertos, inacabados, sempre aptos a estabelecer, com o meio exterior, relações que as transformarão. Um tear opera como um sistema fechado no sentido de que ela não se adapta por si às variações de seu meio ambiente; um computador, por outro lado, realizará tarefas bastante flexíveis - em todo caso, tarefas paras as quais for programado. Tomemos outro exemplo. Os medicamentos inteligentes produzidos pela nanobiotecnologia, tal qual mísseis teleguiados, são desenhados para identificar alvos específicos no organismo vivo e a partir dessa identificação estabelecer uma relação específica, atacar uma célula tumoral e apenas ela, por exemplo. A nanobiotecnologia tem se preparado teórica e tecnicamente no sentido de fornecer uma gama ampla de aparatos como esses capazes, não apenas de despejar fármacos no organismo, com os efeitos colaterais que esse método acarreta, mas de analisar, diagnosticar e entregar medicamentos em alvos pré-determinados. Um medicamento pensado como máquina inteligente, eis aqui a base de uma inovação considerável.
Para que isso ocorra, todavia, o próprio corpo não é mais pensado como conjunto de engrenagens, como o concebeu a medicina do século XIX, mas como território. Um território com sua defesas, topografias, invasores, por certo, mas sobretudo um território produzido por códigos, mensagens, pela ação de máquinas moleculares – uma topografia virtual. Assim, se nos séculos XIX e XX o corpo do operário deveria ser disciplinado para obedecer a comandos de forma previsível, eficiente e imediata, ou seja, se a disciplina militar era o paradigma de adestramento dos “corpos dóceis”, de que fala Foucault, na sociedade de controle, por outro lado, o corpo é pensado como um campo cujo produtividade, cuja performance deve ser constantemente intensificada. Se o corpo do soldado é o ideal para a da indústria dos séculos XIX e XX, o corpo do atleta, constantemente excitado pelas demandas da indústria do espetáculo, é o paradigma de corporeidade no contexto da sociedade da informação, do controle, ou como a queiram chamar. Em livros como Máquina de visão, Política e velocidade, Paul Virilio disse a esse respeito que aceitamos passivamente a aceleração sem sentido de nossas vidas, de nossos corpos, porque a sociedade da informação implodiu as distâncias, o tempo, deixando-nos sem profundidade reflexiva para resistir. Não creio que Virilio esteja certo, mas acredito que coloque questões que merecem nossa atenção.
Tomemos o conceito de doping genético como ilustração. Mediante a inserção de DNA transgênico no corpo do atleta, forçando-o a produzir substâncias que melhorem o seu desempenho: a produção de glóbulos vermelhos, por exemplo. Em fevereiro de 2010, a Folha de São Paulo publicava entrevista com Mark Frankel, “especialista em modificação genética e bioética da Associação Americana para o Avanço da Ciência”. Acerca da perspectiva do doping genético, ele declarava:
“Nós sabemos agora que existem genes com impacto na velocidade, nos músculos, na resistência. Acho que, nos próximos anos, vamos saber cada vez mais sobre eles e sobre outros genes. Mas ainda temos muito a aprender sobre o que os genes controlam no corpo humano. Além disso, existem outros fatores que importam no desempenho de um atleta, como o tipo de vida que ele tem, o seu treinamento. Mas a comunidade olímpica precisa estar preparada para o próximo grande passo do doping, que envolve os genes. Até onde sabemos, o doping genético ainda não aconteceu, mas vai. É inevitável.”1
Mais recentemente, li na Internet que cientistas alemães já haviam descoberto um método de identificar esse tipo de doping com uma margem de segurança de até dois meses. As experiências de terapia genética, até poucos anos, tinham redundado não apenas em fracassos, mas em desastres. Geralmente, o vetor de introdução da informação genética desejada no organismo sob intervenção terapêutica eram vírus, o que acarretava em reação sistêmica do organismo ao procedimento. Os pacientes submetidos a tal procedimento morriam sangrando por todos os poros. Hoje, a nanobiotecnologia tem auxiliado a criar processos de intervenção menos arriscados. Mas é curioso que um número considerável de avanços no campo das biotecnologias sirvam, ao mesmo tempo, para corrigir configurações orgânicas que poderíamos considerar patológicas e para intensificar a produtividade, a performance do corpo humano. Pensemos nas promessas da terapia gênica, por exemplo, mas também no uso que hoje damos a medicamentos como o Viagra, ou a Ritalina (FERREIRA E SILVA, 2011).
Em todo caso, o corpo pensado como território, ou um ciberterritório, é passível de uma desterritorialização profunda com relação aos processos ditos naturais. E há neste contexto, evidentemente, oportunidades consideráveis para a saúde humana, para a melhoria das condições de vida no planeta na exata medida em que nos damos conta daquilo que talvez Deleuze chamasse de intensidade do desejo de estabelecer conexões inusitadas entre os organismos vivos. O mapeamento do genoma humano serviu para mostrar que sem nos apropriarmos de sequências genéticas de certas bactérias, por exemplo, jamais seríamos os seres que somos. Temos aqui efetivamente uma lição importante a aprender no que diz respeito ao vínculo fundamental que temos com o meio ambiente, com o planeta, com os seres vivos. Podemos aprender essa lição? Sob a territorialização do capitalismo contemporâneo, todavia, os corpos são compelidos não ao prazer, à possibilidade de fazer nascer a diferença, à ação criativa, mas à agitação constante, a super-excitação vazia, ao automatismo.
O que pretendemos mostrar nesta breve comunicação é precisamente como esse processo duplo de desterritorialização e territorialização é produzido na biologia molecular no Brasil. Faremos isso operando uma análise que se opera em dois planos: buscamos entender, por um lado, como a ciência elabora uma compreensão de corpo em que esses dois movimentos prevalecem; buscamos entender, por outro, como a própria prática científica estabelece essa dupla dimensão.
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1 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u694117.shtml
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sexta-feira, 10 de junho de 2011
“Vadia sim, feminista não!”
Kathleen Hanna, da banda punk Bikini Kill, uma das principais representantes do movimento conhecido como Riot Grrl. |
Por Cynthia Hamlin
Se você não está de férias em Marte, provavelmente já ouviu falar das Marchas das Vadias, mas talvez não saiba que se trata de uma onda de protestos contra a culpabilização das vítimas de estupro e de outras formas de violência sexual. A primeira Marcha das Vadias (Slut Walk) aconteceu em 3 de abril deste ano, em Toronto, Canadá e, desde então, tem ganhado o mundo, já tendo ocorrido em mais de 20 países.
Tudo começou em 24 de janeiro, quando o policial Michael Sanguinetti proferiu uma palestra para um grupo de estudantes da Universidade de York sobre como evitar a violência sexual. “Disseram que eu não deveria dizer isso”, ele disse assim mesmo, “mas as mulheres devem evitar se vestir como vagabundas (sluts) para não se tornarem vítimas”. Indignadas, as estudantes responderam organizando a primeira Marcha das Vadias, que reuniu cerca de 3.000 pessoas, em sua maioria mulheres, em torno de uma mensagem simples e direta: os homens não têm o direito de estuprar ou abusar sexualmente das mulheres, independentemente do que elas estejam vestindo.
Sanguinetti não poderia ter imaginado as repercussões de suas palavras diante do poder das redes sociais em ajudar a divulgar e cristalizar protestos – algo que os estadunidenses têm hiperbólica e narcisisticamente chamado de Twitter Revolutions (aqui). E se os protestos que têm se espalhado pelo globo como um rastrilho de pólvora já eram difíceis de serem previstos, menos previsíveis ainda foram os efeitos que esses protestos geraram em relação ao que geralmente se entende por ativismo feminista.
Embora a não-culpabilização das vítimas seja uma demanda histórica do feminismo, não há uma associação direta entre as Marchas e o movimento feminista que, no caso brasileiro em particular, as tem apoiado mais do que organizado. Isso, de determinada perspectiva, é bom, pois significa que questões surgidas no seio de grupos específicos foram incorporadas como legítimas pela sociedade mais ampla. Além dessas demandas, as Marchas das Vadias parecem ter ainda incorporado uma estratégia política de reapropriação irônica de determinados discursos, uma estratégia geralmente associada ao que se conhece como teoria queer (aqui e aqui). Nas palavras de Solange de Ré (2011), uma das organizadoras da Marcha de São Paulo, “achamos propício o nome dessa marcha, pois foi uma maneira irônica que encontramos de reinvindicar o nome que recebemos diariamente, desde uma cantada mal sucedida a uma discussão qualquer.”
A “política da ironia” tem gerado um intenso debate nos jornais de língua inglesa acerca de sua eficácia na eliminação da violência contra mulheres e, em termos mais gerais, de suas implicações para o movimento feminista. De um ponto de vista teórico, a questão é colocada pela crítica literária Linda Hutcheon (1994: 2) nos seguintes termos: “por que alguém escolheria usar este estranho modo de discurso no qual você diz algo que não quer realmente dizer e espera que as pessoas compreendam não apenas aquilo que você realmente quer dizer, mas também sua atitude em relação a isso?”. De um ponto de vista mais mundano, a questão tem por vezes sido identificada a uma espécie de (anti)feminismo ingênuo, conforme ironizado por uma jornalista do New York Post: “justo aquilo pelo que as mulheres do mundo têm clamado: se autodenominarem vadias” (Powers, 2011). Outras vezes, a questão é colocada como uma estratégia feminista equivocada:
O foco na reapropriação da palavra vadia não resolve o verdadeiro problema. O termo vadia está tão profundamente enraizado na visão patriarcal “santa/puta” da sexualidade das mulheres que está além de qualquer redenção. A palavra está tão saturada com a ideologia segundo a qual a energia sexual feminina merece punição que tentar mudar seu significado é uma perda de recursos feministas preciosos (Dines e Murphy, 2011).
De forma geral, os debates midiáticos acerca das Marchas têm focado na possibilidade da apropriação positiva do termo como estratégia feminista, isto é, de forma a abalar as estruturas (machistas, patriarcais, heteronormativas etc) que lhes dão sustentação. A resposta a isso tem variado, mas parece haver um certo consenso de que, independentemente da possibilidade de ressignificação ou positivação do termo, a importância da Marcha tem sido defendida com base em seus objetivos e no reconhecimento de diversas formas de ativismo feminista (aqui e aqui). No Brasil, é nesses termos que gente como Marjorie Rodrigues, Tica Morena, Bianca Cardoso e Lola Aronovich têm se posicionado (aqui, aqui e aqui). Pessoalmente, faço coro a elas, particularmente a Lola, que demonstra uma certa preocupação em relação à necessidade de se tirar a roupa para caracterizar a vadia e, assim, chamar a atenção da mídia:
O problema é que, desta forma, além de nos expormos a marmanjos que avaliarão quais manifestantes “podem” se despir (essa vale a pena ver pelada, essa só deveria usar burca), estamos nos encaixando num dos papéis esperados das mulheres, o de objetos sexuais. E estamos também acostumando uma mídia cada vez mais preguiçosa a só dar destaque a ações políticas plenas de ativistas seminuas.
Mas essa preocupação nem de longe se iguala à que senti quando li um texto, atribuído à mesma Solange de Ré que ajudou a organizar a Marcha de São Paulo, na página do Facebook dedicada à Marcha de Recife (aqui):
(...) os grupos feministas acabam sendo o oposto do machismo. E na nossa marcha nós deixamos claro que não éramos feministas, e sim femininas. Não queremos exterminar da terra a raça-homem [sic]. Apoiamos toda forma de liberdade, incluindo os grupos homossexuais (fem/masc), porém sentimos que esses grupos feministas acabam chegando com muita agressividade e são formados, na sua maioria, apenas por lésbicas, o que já denuncia seus objetivos.
Como assim? Vadia sim, feminista não? Espero que isso tenha sido um engano. Caso contrário, acho que tenho más notícias para esta moça, assim como para as pessoas que postaram comentários elogiosos a esta afirmação: a reivindicação irônica do termo Slut está calcada não apenas nos movimentos gay e lésbico que deram origem à teoria queer, mas também no Riot Grrl, movimento musical de raízes feministas que contestava a ausência de mulheres na cena punk (aqui e aqui). Em outros termos, em tudo aquilo que quem quer que tenha escrito aquela aberração parece abominar (vai um valiunzinho aí?).
Talvez isso seja mesmo um indicativo de que, como estratégia política, a ironia é uma faca de dois gumes...
Referências
Dines, Gail; Murphy, Wendy (2011) “SlutWalk is not sexual liberation”. The Guardian, 08 de maio de 2011. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/may/08/slutwalk-not-sexual-liberation
Hutcheon, Linda (1992). Irony’s Edge: the theory and politics of irony. Londres e Nova York, Routledge.
Powers, Kirsten (2011). “ ‘Slut Walk: feminist folly.” New York Post, 12 de maio de 2011. Disponível em: http://www.nypost.com/p/news/opinion/opedcolumnists/slut_walk_feminist_folly_6wtwkoKdY0RgRtGfWTe47H
Ré, Solange (2011). “Marcha das Vadias em São Paulo: antes e depois”. Revista Fórum, 08 de junho de 2011. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_noticia.php?codNoticia=9330
domingo, 5 de junho de 2011
Entrevista com Michel Foucault
Entrevista originalmente publicada em Dits et Écrits, e republicada na Revista da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria, de Madrid. Entrevista con Michel Foucault. Rev. Asoc. Esp. Neuropsiq., Madrid, v. 29, n. 1, 2009. Copiei do blog A Navalha de Dalí.
Cynthia
Salud mental y cultura
Trascripción de F. Colina y M. Jalón
Va a cumplirse un cuarto de siglo desde que se produjo la muerte de Michel Foucault (1926-1984). En la sección de libros se hace un balance, sobre todo, de los últimos seminarios del pensador francés y también de la culminación de su Historia de la sexualidad, en la que iba perfilando además nuevos proyectos. Como complemento documental de gran interés –por ser un resumen de su obra y por abrirse a nuevas perspectivas–se reproduce aquí una entrevista televisada con él y desconocida, pues no fue incluida en los gruesos tomos, definitivos, de sus Dits et écrits, publicados en 1994.
Fue realizada el 7 de mayo de 1981, con ocasión de unas conferencias de Foucault en Lovaina dirigidas a estudiantes y profesores de Derecho y Criminología. El título era: "Hacer el mal, decir la verdad: sobre las funciones de la confesión en la Justicia". El entrevistador fue André Berten, profesor de la Universidad Católica de Lovaina, cuyas preguntas han sido muy simplificadas; no sucede así con las respuestas de Foucault que se mantienen en su integridad, en la medida en que lo hace posible una formulación oral.
Usted ha escrito desde 1961 obras conocidas como la Historia de la locura, El nacimiento de la clínica, Las palabras y las cosas, La arqueología del saber, El orden del discurso o también Vigilar y castigar. Ahora está concluyendo la Historia de la sexualidad. Todas ellas han suscitado muchos debates, a menudo apasionados. Querría conocer el hilo conductor de su reflexión, por qué se ha interesado sucesivamente por la historia de la psiquiatría o la historia de la medicina, por la prisión, la sexualidad o el Derecho.
Es una pregunta difícil la que me formula, porque el hilo conductor sólo se conoce al final de lo que uno ha escrito, incluso cuando ha dejado de escribir. No me considero en absoluto un escritor ni tampoco un profeta: en realidad, sólo trabajo. Es verdad que a menudo investigo como respuesta a peticiones externas o a coyunturas diversas, pero nunca tengo la intención de buscar una determinada ley en mi trabajo. Si existe coherencia en lo que hago proviene ésta, creo, más de una situación que nos concierne a todos, a algo en lo que nos sentimos presos, que del hecho de poseer una intuición fundamental o desarrollar un pensamiento sistemático.
Me parece que la filosofía moderna, acaso desde que Kant se planteó la pregunta Was ist Aufklärung?, intentó responder al "¿qué es la actualidad?", es decir, trató de interrogarse sobre qué es el presente. Con ello, el pensamiento adquiere una dimensión o se propone un objetivo que no existía anteriormente. Empieza a cuestionar-se sobre quiénes somos, qué es nuestro presente y qué supone el hoy en día. Era una interrogante que no tenía sentido todavía para Descartes, pero que comienza a tenerla para Kant, cuando se preguntó sobre la Ilustración, y que se convierte después en la pregunta principal de Hegel, o también, en esencia, la de Nietzsche. Creo que la filosofía –aparte de otras funciones diferentes que debe y puede tener–, posee también ésta de cuestionarse sobre nuestra actualidad y la situación presente. He hecho mías estas preguntas, y en ese sentido soy kantiano, hegeliano o nietzscheano.
Diré dos palabras sobre nuestra vida intelectual; tras la Segunda Guerra, en los años cincuenta de la Europa Occidental, se disponía, por una parte, de una perspectiva analítica muy inspirada por la fenomenología; era dominante no en un sentido peyorativo, pues no había ningún despotismo o dictadura por su parte, pero sí creaba un estilo, al menos en Francia y en otros lugares. Un estilo que reivindicaba como meta fundamental el análisis de lo concreto. Sin embargo, uno podía sentirse algo insatisfecho porque lo concreto que reclamaba la fenomenología no dejaba de ser una concreción algo académica y universitaria. Describía ciertos objetos privilegiados, como podían ser la percepción de un árbol o lo que fuese a través de una ventana desde mi despacho, y venían predeterminados por la tradición filosófico-universitaria. Quizá merecía la pena superarla. El otro pensamiento importante de la época era el marxismo. En este caso se proponían análisis históricos en determinados terrenos, bien analizando los conceptos de Marx, lo que era interesante, bien estudiando los saberes históricos con los que esos conceptos debían relacionarse o donde serían operatorios; en cambio, la historia marxista de lo concreto no estaba bien trabajada entre nosotros. Había una tercera corriente, muy especialmente desarrollada en Francia: era una historia de las ciencias (la de Bachelard, Canguilhem o, antes, Cavaillès), que se planteaba si puede haber una historicidad de la razón y, por lo tanto, si cabe hacer una historia de la verdad.
Creo haberme situado en el cruce de estos diferentes problemas y corrientes. Pero en cuanto a la fenomenología, en vez de hacer la descripción un poco interiorizada de la experiencia vivida, me preocupé más de hacer el análisis de ciertas experiencias colectivas, sociales. Así, me parecía interesante valorar la conciencia de alguien que está loco; pero no existía un análisis de la estructuración cultural ni social de la experiencia de la locura, y ello me condujo a plantearme un problema histórico. Me propuse estudiar las articulaciones del campo social en la historia de la locura, cuál era el conjunto de las experiencias institucionales y de prácticas, históricamente precisadas, en esta circunstancia; para las cuales, por cierto, los análisis marxistas parecían mal ajustados, como son los trajes de confección.
Con el análisis de los problemas histórico-sociales, me planteé el problema de cómo se podía hacer la historia del saber, de los agentes del conocimiento y de los objetos nuevos de conocimiento, presentados como objetos que se quiere conocer. Así me cuestioné acerca de si hay o no una experiencia de la locura característica de un tipo de sociedad como la nuestra; sobre cómo ha emergido o se ha constituido esta experiencia del desvarío, y sobre ese modo de constituirse como objeto de saber para una Medicina que se presentaba como experimental. En suma, estudié a través de qué transformaciones históricas y qué modificaciones institucionales se constituía una experiencia de la sinrazón en la que participaban a la vez el polo subjetivo de la experiencia de la locura y el polo objetivo de la enfermedad mental. Este sería, no desde luego mi itinerario, pero sí mi punto de partida.
Cabría añadir una cuarta corriente en ese caminar (o en ese pisotear), y es que trabajé también con textos más literarios, menos integrados en la tradición filosófica. Me refiero a escritores como Blanchot, como Artaud o como Bataille, muy importantes para los lectores de mi generación, que abordaban la cuestión de las experiencias límites. Éstas son formas de la experiencia que –en lugar de considerarse centrales y ser positivamente valorizadas por nuestra sociedad–, definen en última instancia las fronteras de lo que puede estimarse como aceptable. En esencia, la Historia de la locura viene a ser una interrogación sobre nuestros sistemas de razón. Paralelamente, El nacimiento de la clínica considera la relación entre el pensamiento médico y el saber de la enfermedad o la vida en relación con el saber que supone la muerte y la integración de ésta en el conocimiento, como un asunto extremo. Por lo mismo, con ese ángulo me he interrogado sobre la ley y el crimen como punto de ruptura respecto al sistema. Y es que el universo del crimen sirve para medir qué significa la ley; y de hecho el estudio de la prisión nos permite conocer el sistema penal mejor que el estudio desde el interior del criminal.
La filosofía como una especial actividad le permite situarnos mejor en la sociedad. Hay una percepción suya de la realidad que nos interesa en particular: las técnicas de internamiento, de control. ¿El hecho de que el individuo se haya visto progresivamente controlado es determinante para comprender la modernidad?
No es un problema que me planteara como punto de partida; sólo apareció tras estudiar el funcionamiento de la psiquiatría y del sistema penal. Todos los mecanismos de encierro, de exclusión, de control, de vigilancia individuales me parecían muy importantes, aunque quizá los abordé inicialmente de un modo que podríamos denominar un poco salvaje. Luego, creo que me interrogué mejor sobre estas cuestiones, al ver su importancia.
Y es que me parece que la mayor parte de los análisis, tanto filosóficos como políticos, incluidos los marxistas, han marginado relativamente la cuestión del poder, o al menos lo han simplificado. Bien lo trataban como fundamento jurídico o político, esto es, como su legitimación, bien definían el poder como una función de mera conservación y multiplicación de las relaciones de producción. Es decir, que o se trataba de la cuestión filosófica del fundamento o del análisis histórico de la superestructura. Esto resultaba insuficiente por una serie de razones. Las relaciones de poder, al menos en los dominios concretos que he analizado, me parecen más implantadas que en el simple plano de las superestructuras. Además, la cuestión está bien planteada, creo, ya que el poder no funciona a partir de su fundamento.
Me interesaba entonces abordar cómo el poder funciona de manera efectiva. Cuando digo "poder" no me propongo identificar una instancia, visible o no, que poco importa, como una especie de potencia que difundiría su efecto nocivo a través del cuerpo social y que extendería de modo fatal su red, progresivamente tupida, hasta estrangular a la sociedad y al individuo. No se trata de eso. El poder no es una cosa, el poder significa relaciones. Relaciones entre los individuos de tal manera que uno puede determinar voluntariamente la conducta de otro.
Es un ejercicio, y como tal remite al "gobierno", en un sentido muy amplio. Gobernar una sociedad, un grupo, una comunidad, una familia o a cualquiera, supone determinar la conducta en función de estrategias o de ciertas tácticas. La gubernamentalidad es el conjunto de relaciones técnicas que permiten ejercer las relaciones de poder. Me ha interesado cómo se gobierna a los locos o a los enfermos –un "gobierno", en sentido amplio de nuevo–, qué estatuto se les ha dado, en qué sistema de tratamiento se les ha incluido, sea éste benevolente, filantrópico o económico.
Esta gubernamentalidad se ha vuelto más estricta a lo largo de los tiempos. En la Edad Media dicho poder de "gobierno" era mucho más laxo, salvo en los aspectos fiscales, tan necesarios. No interesaban tanto los aspectos de la vida cotidianos para el ejercicio de los poderes políticos, aunque, eso sí, se volvieron más importantes, sin embargo, para la pastoral eclesiástica. Ahora, en cambio, las pautas de consumo se han vuelto muy importantes tanto política como socialmente. El número de objetos que están bajo el control de una gubernamentalidadreflexiva, incluso en un marco político liberal, ha aumentado de un modo considerable. No creo, sin embargo, que esta gubernamentalidad adquiera forzosamente la forma del encierro, la vigilancia y el control. La dirección de la conducta de los hombres se ha vuelto más sutil, y se logra con otros recursos.
Sus estudios hacen siempre uso de la historia. Pero su novedad radica en el desplazamiento del modelo histórico. Su trabajo no corresponde a la historia de las ciencias, ni a la epistemología; tampoco se inscribe en una historia de las instituciones, sino en todo ello a la vez. ¿La oposición entre historia y ciencia es interesante para usted?
Encuentro, en efecto, que el tipo de historia que hago tiene una serie de marcas, o si se quiere de dificultades. Pero yo empezaría de nuevo planteando la pregunta sobre qué es lo que somos hoy, cuál es nuestro presente. Mi tipo de historia, en primer lugar, intenta hablar de esa actualidad concreta. Después, elige como dominio una serie de objetos si bien bajo la particularidad de que sean captados como puntos frágiles o sensibles en su actualidad. Sin embargo no concibo mi historia como una discusión más bien especulativa cuyo sentido no quedaría determinado enteramente por su condición actual. Tampoco se trata de seguir la moda sin más: si se han escrito diez buenos libros sobre la muerte no se trata de hacer el undécimo. Trato de detectar, entre las cosas de las que todavía no se ha hablado, qué puntos frágiles se captan en nuestros sistemas de pensamiento, en nuestros modos de reflexión, en nuestras prácticas. Hacia 1955, cuando yo trabajaba en los hospitales psiquiátricos, había una crisis latente de la que no se había hablado por entonces, pero que se vivía bastante intensamente. La mejor prueba de su existencia es que al lado, en Inglaterra, gentes como Laing y Cooper luchaban con idéntico problema y sin tener relación con los demás. Lo mismo podría decirse sobre la cuestión del poder médico –del campo en el que este poder funciona–, que empieza a replantearse en los sesenta y que tuvo eco tras 1968. Hago historia más bien de lo que está dibujándose.
¿Sus historias están reguladas por los objetos que usted considera, con el fin de esclarecerlos?
A veces se enjuicia mi trabajo como una suerte de análisis complicado, un poco obsesivo, y que sólo tiene como meta la exclamación "¡Dios mío, qué encarcelados estamos!", o bien como un modo de percibir que estamos bien atados y lo difícil que es desatar los nudos que la historia ha trabado en torno a nosotros. Sin embargo, creo hacer lo contrario. Cuando discuto, a partir de 1970, las condiciones de la reforma penal, me parece muy importante, por supuesto, plantear la cuestión teórica del castigo o del régimen penitenciario; pero es que antes no se veía interrogada esa especie de evidencia que descansa en considerar la privación de la libertad como la forma más simple, más lógica, razonable y justa de castigar a alguien por haber cometido una infracción. Esa adecuación –para nosotros tan clara y obvia–, entre pena y privación de libertad es realmente una invención técnica que sólo se ha acabado integrando en el sistema penal –y forma parte de la racionalidad punitiva–desde finales del siglo XVIII. He tratado de interrogar las razones por las que la prisión se ha convertido en una suerte de evidencia en nuestro sistema penal. Se trata, por consiguiente, de volver las cosas más frágiles a través de su análisis histórico, mostrando a la vez el modo en que las cosas se han constituido en sí mismas y al tiempo cómo lo han hecho a través de una historia precisa. Se trata de mostrar su lógica, o bien la estrategia bajo la que se han producido ciertas cosas, pues viéndolas de otra manera de golpe pierden su evidencia. Nuestra relación con la locura es una relación constituida históricamente y políticamente –en un sentido muy amplio–destruida. Hay, por lo tanto, una capacidad de acción y reacción, de provocación de conflictos y luchas que conducen a determinadas soluciones. Se trata de reintegrar muchas evidencias de nuestras prácticas en su propia historicidad para que recobren su movilidad al arrebatarles ese estatuto de evidencia.
Emplea en sus conferencias la palabra "veredicción", para expresar la idea de decir la verdad. En su genealogía o en su arqueología, que usted elige dependiendo de su objeto, ¿encuentra que no hay fundamento en la práctica del poder?, ¿supone su trabajo una especie de deconstrucción del poder?
El trabajo de buscar un fundamento al poder consiste en interrogarse sobre lo que hacen los poderes. Se diría que es la propia pregunta lo que es fundamental. Y el fundamento, volviendo a su pregunta, forma parte de su sentido histórico. En una cultura como la nuestra es muy importante, al margen de en qué lugar preciso pueda encontrarse. El ejercicio del poder político debe interrogarse él mismo –o debe verse cuestionado–, sobre cuál es su fundamento legítimo, y ahí debe de ser siempre muy crítico. Desde hace 2500 años se está planteando esa pregunta que sin lugar a dudas es básica.
Ha destacado que sus análisis tratan, sobre todo, de cómo se han constituido determinados problemas.
Sí, es lo que he denominado "problematizaciones"; es un barbarismo técnico, pero una palabra deja de ser bárbara si muestra bien lo que se quiere decir; en cambio una palabra común puede serlo si confunde al decir varias cosas a la vez... Yo planteo la historia de ciertas problematizaciones, es decir, la historia de la manera en que las cosas constituyen un problema. Por ejemplo, cómo, por qué y de qué modo particular la locura se ha convertido en un problema importante en el mundo moderno. O cómo el psicoanálisis se ha extendido ampliamente en nuestra cultura, ya sea entendido como un problema interno o por sus relaciones con la locura. Lo mismo puedo decir de la enfermedad, que era bien conocida sin duda antes, pero que tiene otro cariz cuando se la problematiza de nuevo a partir del siglo XIX. Por lo tanto no se trata de una historia de la teoría, ni una historia de las ideologías, ni tampoco una historia de las mentalidades. Lo que interesa es la historia de los problemas o, si prefiere, es lagenealogía de los problemas, el por qué cierto tipo de interrogantes o cierto modo de problematizaciones aparecen en un momento determinado.
También investigo aún las problematizaciones sobre la sexualidad. Pues no se trata de volver a repetir infinitamente si el cristianismo, la burguesía y la industrialización son los responsables de la represión sexual. Esto sólo interesa o en la medida que ha hecho sufrir a parte de la población, y afecta actualmente a cierto número de personas, o porque ha tomado formas diversas, aunque siempre ha existido. Por el contrario, lo que me parece importante es hacer visible cómo y por qué esta relación con la sexualidad, con nuestro comportamiento sexual, se convierte en un problema y de qué forma; cómo van cambiando las apariencias de ese problema entre los griegos del siglo IV a. C., en los siglos II y III con el cristianismo, y luego en los siglos XVI y XVII, etcétera. Lo importante es saber cómo en el comportamiento humano, en un momento dado, las evidencias se enturbian, las luces se apagan, cae la noche y la gente empieza a percibir que actúa a ciegas y necesita una nueva luz, una nueva iluminación y otras reglas de funcionamiento.
¿Por qué se detiene ahora en los fundamentos del Derecho?, ¿qué es lo que está buscando?
Mi interés por la legislación no es el de un especialista, el de un jurista, pues no lo soy, sino el de alguien que se ha encontrado con el problema de la Ley en el curso de su estudios sobre la prisión y el crimen. Precisamente me interesé al centrarme en cómo la tecnología del gobierno puede tomar forma en el interior de una sociedad que, en una parte al menos, pretende organizarse y funcionar en torno al Derecho. Me parece, en este sentido, que preguntarse por las instituciones jurídicas, interrogarse por los discursos y las prácticas concretas del Derecho, podía tener cierta importancia, no para dar la vuelta a la historia y a la tecnología del Derecho, sino para alumbrar algunos aspectos importantes de la teoría y la práctica judiciales. Interrogar el sistema penal moderno a partir de la práctica punitiva o de esa práctica correctiva –todas esas tecnologías–mediante las que se ha querido modelar o modificar a los criminales, me parece que permite hacer aparecer cierto número de cosas importantes. Creo haber escogido el Derecho como un objeto particular de estudio en este mismo sentido.
Si Dios me lo permite, después de la locura, la enfermedad, el crimen y la sexualidad, la última cosa que me gustaría estudiar es el problema de la guerra, estudiar la institución de la guerra en lo que cabe denominar dimensión militar de la sociedad. Querría revisar el Derecho de gentes, el Derecho internacional y el problema de la Justicia militar; querría ver, en definitiva, cómo una nación le puede pedir a alguien que muera por ella.
Bibliografia
Gran parte de la obra de Foucault ha sido traducida y reimpresa desde hace cuarenta años. Las referencias fundamentales son: Maladie mentale et personnalité, París, PUF, 1954; Histoire de la folie à l'âge classique, París, Gallimard, 1972 (su inaugural historia de la locura, ampliada del or. 1961); a los que siguieron Les mots et les choses, Gallimard, 1966, su arqueología de las ciencias humanas; Raymond Roussel, Gallimard, 1963; La naissance de la clinique, Gallimard, 1963, sobre la mirada médica.
Luego, hizo unos balances teóricos de gran interés: "Réponse à une question", Esprit, 371, 1968, pp. 850-874; "Réponse au Cercle d'épistémologie", Cahiers pour l'Analyse, 9, 1968, pp. 5-54; L'archéologie du savoir, Gallimard, 1969; y su lección en el Colegio de Francia L'ordre du discours, Gallimard, 1971. A ellos les siguieron trabajos sobre el mundo punitivo: Moi, Pierre Rivière, Gallimard, 1973; Surveiller et punir, Gallimard, 1975; Herculine Barbin, Gallimard, 1978; La verdad y las formas jurídicas, Barcelona, Gedisa, 1980 (or. Río de Janeiro, 1978). Finalmente están los tres tomos, en Gallimard, de la historia de la sexualidad; La volonté de savoir, 1975, L'usage des plaisirsy Le souci de soi, ambos de 1984.
Las grandes ediciones póstumas –aparte de Résumé des cours, 1970-1982, París, Julliard, 1989; y los registros orales De la gouvernementalité, París, Seuil, 1989–son Dits et écrits, París, Gallimard, 1994, cuatro tomos que recogen sus artículos, debates, conferencias y entrevistas en todo el mundo (unas 3.400 páginas); se ha traducido sólo una selección. La entrega de sus seminarios está ya en marcha, y se han publicado los volúmenes: 4. Le pouvoir psychiatrique, París, Gallimard/Seuil, 2003 (tr. Akal 2005); 5. Les anormaux, París, Gallimard/Seuil, 1999 (tr. Akal, 2001); 6. "Il faut défendre la société", París, Gallimard/Seuil, 1997; 7. Sécurité, territoire, population, París, Gallimard/Seuil, 2004 (tr. Akal, 2008); 8. Naissance de la biopolitique, París, Gallimard/Seuil, 2004; 11. L'herméneutique du sujet, París, Gallimard/Seuil, 2001; 12. Le gouvernement de soi et des autres, París, Gallimard/Seuil, 2008.
De los libros breves o de artículos que han circulado en España cabe reseñar: Nietzsche, Freud, Marx, Barcelona, Anagrama, 1970; Theatrum philosophicum, Anagrama, 1972; Lógica de lo viviente e historia de la biología, Anagrama, 1975; Microfísica del poder, Madrid, La Piqueta, 1978; Espacios de poder, La Piqueta, 1981; Un diálogo sobre el poder, Madrid, Alianza, 1981; Eso no es una pipa, Anagrama, 1981; La imposible prisión, Anagrama, 1982; Saber y verdad, La Piqueta, 1985; La vida de los hombres infames, La Piqueta, 1990; La genealogía del racismo, La Piqueta, 1992; Siete sentencias sobre el séptimo ángel, Madrid, Arena, 1999; Discurso y verdad en la Grecia antigua, Barcelona, Paidós, 2004; La pintura de Manet, Barcelona, Alpha-Decay, 2004;Nietzsche, la genealogía y la historia, Valencia, Pre-Textos, 2004; El pensamiento del afuera, Pre-Textos, 2004;La naturaleza humana: justicia contra poder, Madrid, Katz, 2004; Sobre la Ilustración, Madrid, Tecnos, 2007.
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