domingo, 11 de setembro de 2011

Homenagem a Heraldo Souto Maior no ALAS

Heraldo Souto Maior, Paulo Henrique Martins e Maria Eduarda Rocha. Foto retirada da página da ALAS no FB.

Por Maria Eduarda Rocha

Vou começar com uma apresentação bastante sintética, necessária em se tratando de um Congresso tão grande quanto o ALAS, em que cabe destacar a trajetória do Prof. Heraldo Pessoa Souto Maior. Muito mais haveria a dizer, mas resumindo muito, eu gostaria de registrar que:
1)   Heraldo Pessoa Souto Maior bacharelou-se em Direito, em 1952 na Faculdade de Direito do Recife, onde desde o início privilegiou temas e autores da sociologia em sua formação. Como ele costuma dizer, a Faculdade de Direito era um lugar em que se estudava de tudo, inclusive, Direito.
2)   Mas foi no então recém-criado Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais que Heraldo Souto Maior teve suas primeiras experiências de pesquisa de campo, acrescentando um ingrediente fundamental à sua formação sociológica.
3)    Em 1953 deu início à atividade docente no ensino superior, na Faculdade de Filosofia do Recife, então, agregada à Universidade do Recife. Como tantos de sua geração que só dispunham da opção de uma formação jurídica para atuar nas diferentes áreas das humanidades, Heraldo teve que buscar a formação especializada em sociologia depois da graduação. Foi então que se intitulou “Master of Arts” em Sociologia e Antropologia pela Michigan State University. Apresentou a dissertação “Sociology, Sociologists and Economic Development”, problemática  que, ao lado das técnicas de pesquisa, passou a orientar as suas atividades investigativas e de ensino, na área da Sociologia, desde o seu retorno ao Brasil, em 1962.   
4)   Entre 1966 e 1997, Heraldo Souto Maior foi Professor Titular e Professor Adjunto de Sociologia, inicialmente,  na Faculdade de Ciências Econômicas, e no Instituto de Ciências do Homem da UFPE e, mais adiante, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, nova denominação dada aos Institutos pela legislação relativa  à reforma universitária.
5)   Nos anos 60, por intermédio da celebração de convênios  entre a Universidade e órgãos públicos, como a SUDENE, e  também  com  instituições  de  caráter  internacional, como a USAID e a Fundação Ford, delineou-se o quadro institucional e tonaram-se disponíveis os recursos financeiros necessários para a criação do curso de mestrado em Sociologia. Em 1967, ele foi implantado pelo Prof. Heraldo Souto Maior, inspirado em proposta do Prof. Levy Cruz, juntamente com o curso de mestrado em Economia, proposto pelo Professor Roberto Cavalcanti de Albuquerque, surgindo então o Programa  Integrado de Economia e Sociologia, PIMES/UFPE. Esta sigla tornou-se referência nacional de produção acadêmica de natureza interdisciplinar, sobre questões relacionadas aos processos de mudanças sociais, e projetou a UFPE como ambiente acadêmico dinâmico e inovador na área.
6) Em 1975, foi convidado como “Honorary Research Associate”,  pelo Departamento de Antropologia, da Universidade de Harvard.
7)    Retornando da estadia na Harvard University, o Professor  Heraldo Souto Maior voltou-se, a partir da década de 80, para pesquisas de caráter mais acadêmico. Trabalhando com  os dados dos diversos Censos Demográficos, tem explorado aspectos relativos às migrações internas, à segregação social, à educação superior e, sobretudo, à situação da família no Brasil. Passa a integrar  grupos de trabalho da ANPOCS, entidade da qual, aliás, foi um dos fundadores. Apresentou vários trabalhos sobre esses assuntos em congressos nacionais e internacionais, com destaque para “Família no Brasil – 1950-1980”; “Família no Nordeste – 1970-1987”; “Mulher, Família e Trabalho no Nordeste- 1970-1987”, alguns dos quais foram  publicados em Anais e em revistas especializadas.
8)   Ministrou, desde o início de sua carreira docente na UFPE  até a data de sua aposentadoria, as disciplinas Teoria Sociológica, Métodos e Técnicas de Pesquisa  e Mudança Social, alternada ou simultaneamente, tanto no curso de graduação em Ciências Sociais como no Curso de Mestrado em Sociologia , cursos  dos quais foi coordenador por alguns períodos. O seu compromisso com a  formação inicial de graduandos  levou-o  a  aceitar  a  tutoria  do então   Programa Especial  de  Treinamento (PET)   de 1988 a 1994,  tendo participado ativamente dos embates nacionais a respeito de uma iniciativa  da CAPES que, reconhecidamente, tem  produzido resultados acadêmicos muito positivos.
9)   Recentemente, retomou preocupações do início de sua carreira acadêmica, dedicando-se a retraçar a História da Sociologia em Pernambuco.
10) O reconhecimento de sua contribuição à formação de sociólogos e ao conhecimento sobre aspectos específicos  da realidade brasileira e regional foi objeto de  homenagens da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, em 1995 e em 1999, pela outorga, respectivamente, da Medalha Nordeste de Humanidades e do título de Pesquisador Emérito.
11) Aposentado de suas atividades na graduação em Ciências Sociais, Heraldo recebeu o título de Professor Emérito desta Universidade.
12)   Em 2005, foi condecorado com a medalha Florestan Fernandes pela Sociedade Brasileira de Sociologia.

Mas esses títulos todos podem virar letra morta se a gente perder de vista a experiência que está condensada nessas linhas.  Como fui aluna dele, e hoje tenho a alegria de ser sua colega de sala e de programa de pós-graduação, eu vou traduzir pra vocês. O que eles querem dizer é que Heraldo é, antes de tudo, um mestre. Não simplesmente um mestre-escola, como ele uma vez sugeriu. Um mestre no sentido da cultura popular nordestina.  Entendido dessa forma, mestre é o vértice de uma linhagem de artistas, aquele imbuído da tarefa de formar os jovens a partir do legado de uma tradição. Heraldo é nosso mestre, inclusive porque faz da sociologia uma arte. Seu mérito é tanto maior, quanto consideramos que a tradição que ele representa, paradoxalmente, era muito nova em sua terra natal. Ele é um mestre que, de certa forma, fundou uma tradição. Se o pensamento social brasileiro já encontrava em Recife, desde muito antes, um representante do quilate de Gilberto Freyre, foi Heraldo que ajudou a fazer a transição entre aquela forma mais ensaística de pensamento e a sociologia como disciplina científica propriamente dita. Foi ele, com a ajuda de outros pioneiros da sociologia em Pernambuco, que plantou aqui essa grande árvore sob a qual eu e meus colegas nos abrigamos hoje. Ele difundiu teorias e métodos até então pouco conhecidos e, menos ainda, utilizados. Que lições ele ensinou a seus alunos, muitos dos quais, hoje, são professores nesta e em tantas outras universidades pelo mundo afora? Vou destacar apenas cinco, as que considero mais importantes.
Primeira lição:
Primeiro semestre de Ciências Sociais. Disciplina de Teoria Social I. O começo de tudo: autores clássicos da filosofia política, como Hobbes e Maquiavel. É começo porque são os antecessores da sociologia (os primeiros a tomar as instituições sociais como objeto de reflexão sistemática, ainda que especulativa).  Mas era o começo também em outro sentido: era a primeira vez que eu via a imaginação sociológica em ação. Mesmo apresentando autores que trabalham em um nível tão alto de formalização, Heraldo ensinou a primeira lição: a teoria trata da vida e nisto reside seu interesse maior.  Alunos de ciências sociais costumam ser espíritos inquietos em busca de respostas. Heraldo demonstrou, no primeiro semestre, que tipo de resposta a sociologia pode oferecer.
Segunda lição:
Nesse mesmo gesto que descortinava um caminho de reflexão sobre a vida, Heraldo me ensinou uma segunda lição muito preciosa, talvez a mais preciosa de todas: que as respostas fáceis e apressadas podem ser piores do que a ignorância. Se á um traço que o define como sociólogo é seu anti-dogmatismo visceral. Isso explica como, durante o Regime Militar, ele pode parecer suspeito tanto a alguns marxistas quanto aos próprios militares. A imaginação sociológica, essa habilidade de perceber a dimensão cotidiana dos grandes temas e problemas da sociologia, demanda o exercício constante da dúvida. Esse exercício, por sua vez, implica em que não nos fechemos em nenhuma forma de absolutismo. Implica em perceber desde logo o caráter parcial, provisório, frágil mesmo, das nossas convicções mais profundas e, por conseqüência, do conhecimento que produzimos baseados nessas convicções. Essa dose de weberianismo foi fundamental para mim e para tantos colegas com quem ele conviveu em uma interlocução respeitosa e enriquecedora.
Terceira lição:
Em meio a esse exercício continuo de reflexão sobre o mundo e de auto-reflexão sobre os seus próprios pressupostos, Heraldo encontrou um caminho muito próprio para conciliar distanciamento heurístico e compromisso moral com as pessoas. A sociologia é esse caminho. Mas não qualquer sociologia.  Hoje vivemos uma época em que o desencanto ameaça se tornar indiferença. Heraldo me ensinou que o anti-dogmatismo não precisa nos conduzir a um relativismo impotente. Pelo contrário: o seu riso desconcertante expressa simultaneamente um forte espírito crítico e uma profunda capacidade de se deixar afetar pelos problemas que seus alunos lhe trazem. E, em uma simples tirada, ele é capaz de apontar caminhos e nos afastar do óbvio. A uma orientanda de doutorado minha, por exemplo, ele disse uma frase que virou a epígrafe da tese dela. Era um estudo sobre a recepção de uma revista de celebridades em salões de beleza na periferia do Recife. Ele saiu-se com essa: “que mocinha do subúrbio nunca sonhou em ser rainha do baile?”.
Quarta Lição:
Esta é muito necessária para os da minha geração: a sociologia demanda uma visão de conjunto. Talvez mais do que qualquer outra ciência, ela padece toda vez que a especialização é exagerada.  Vivemos uma época em que, por pressões institucionais e pela força de certas correntes de pensamento, os temas e problemas sociológicos tendem a se fragmentar em uma miríade de especialismos, e os custos dessa tendência me parecem evidentes: muitas vezes, os trabalhos  não conseguem passar da descrição à explicação, que demandaria a articulação entre o objeto particular de investigação e a sociedade entendida de modo mais global, em suas múltiplas dimensões. Heraldo sempre teve a preocupação de resistir ao excesso de especialização. Por isso, inclusive, implantou o PET de Ciências Sociais (Hoje, Programa de Educação Tutorial), voltado a prover uma formação o mais ampla possível aos seus participantes. As suas aulas, o que se aprende é que toda sociologia específica é, antes de tudo, sociologia, e essa é uma lição muito preciosa.
A quinta e última lição que me cabe mencionar aqui, não sei se foi a sociologia que lhe ensinou, mas, sem ela, dificilmente um professor se torna um mestre, no sentido aqui proposto. Aprendi com Heraldo que a docência demanda uma boa dose de firmeza, respeito, escuta, generosidade e senso de justiça. Se possível, acrescida de uma pitada de esperança, como é o seu caso.  Por tudo isso, meu mestre, eu quero ser você quando crescer.
 


7 comentários:

Giovanni Gouveia disse...

esqueceu de mencionar que tudo isso é construído, por Heraldo, com uma pitada generosa de humor

Renan Cabral disse...

Que legal, justíssima homenagem a Heraldo. :)

Cynthia disse...

Por algum motivo as pessoas têm preferido comentar no Facebook. Nunca transfiro os comentários de lá para o Cazzo, mas acho que, dado que Heraldo (e Eduarda) não tem facebook e que ficaria feliz com as demonstrações de carinho e admiração, acho que vale a pena fazê-lo neste caso.

Jampa Paulo Lima - Muito legal e interessante esses textos e homenagens sobre o Professor Heraldo Souto Maior. Obrigado por dividir por aqui, Cynthia Hamlin. Os textos são um registro importante da história do departamento para quem, como eu, passou por ele bem depois do momento de fundação e teve pouco contato com o próprio Heraldo. É muito importante para o entedimento mais contextualizado da importância e significado dele no PPGS e também da história viva do departamento. Valeu mesmo!

Rogerio Proenca Leite - Merecida homenagem ao nosso querido professor Heraldo!

Maria Conceição Lafayette Almeida- Um grande momento. Belo texto de Eduarda. Heraldo é parte da nossa vida no DCS!

Chico Ramos- Honrosa homenagem.

Giovanni José Gouveia Soares- Heraldo é Heraldo... :D

José Luiz Ratton - Justíssima e belíssima homenagem ao mestre de todos nós! Humor, inteligência, imaginação sociológica, generosidade, respeito à diferença! Este é Heraldo!

Marília Perrusi- E grande tenista! Quem une esporte e sociologia sabe tudo da vida, rs. Lembro que, quando estudante de arquitetura, fui procurá-lo para uma orientação numa pesquisa de iniciação científica. Foi generoso, sim, e paciente com a estudante de arquitetura que eu era, um tanto perdida de/no departamento de sociologia.

Janaína Nascimento - Gostaria muito de ter estado aí pra essa homenagem tão merecida a Heraldo. O texto de Eduarda é justo, afetuoso e verdadeiro. Gostei muito. E além de todos os atributos merecidamente destacados por todos, ainda me impressiona sua vitalidade. Pelo que vejo nas fotos, cerca de 10 anos não fizeram a menor diferença para Heraldo. Cynthia, qd vc o encontrar, pls, diz pra ele que mandei um grande abraço!

Le Cazzo disse...

Não tive a honra de ser aluno de Heraldo, ao menos no sentido convencional do que podemos pensar como aprendizado. Mas toda vez que alguém me pergunta sobre o PPGS da UFPE e afirmo ser um ambiente acadêmico muito bom, em que a decência e os interesses mais amplos do programa prevalecem sobre as inevitáveis idiossincrasias, penso no papel estruturador que a personalidade de Heraldo desempenhou e desempenha na consolidação deste espaço e desta cultura de trabalho. E assim, também eu, tenho tido o benefício das lições de Heraldo. E ressalto também, como todos, o seu excelente senso de humor. Jonatas

Giovanni Gouveia disse...

Repetindo o que eu disse no FB:

A gente se assustou, num primeiro momento, se lascou todinho de estudar, leu mais, em 6 meses, que a grande maioria da população lê durante a vida toda, mas depois parece que tudo fica leve e "fácil".

Qualquer um(a) que tenha sido alun@ de Heraldo não consegue esconder o sorriso da cara ao se lembrar do Grande Mestre.

izabella medeiros disse...

Eduarda, parabéns pela tradução do seu carinho por Heraldo! Suas palavras delicadas me emocionaram :b

movimentosjuvenisbrasileirosparte7 disse...

Bela e justa homenagem ao Professor Heraldo, cujo nome está muito associado ao do PPGS da UFPE. Infelizmente não pude estar na homenagem, mas acompanhei aqui seus principais momentos com os textos. Abs Otávio Luiz Machado