Heraldo Souto Maior, Paulo Henrique Martins e Maria Eduarda Rocha. Foto retirada da página da ALAS no FB. |
Por Maria Eduarda Rocha
Vou começar com uma
apresentação bastante sintética, necessária em se tratando de um Congresso tão
grande quanto o ALAS, em que cabe destacar a trajetória do Prof. Heraldo Pessoa
Souto Maior. Muito mais haveria a dizer, mas resumindo muito, eu gostaria de
registrar que:
1)
Heraldo Pessoa
Souto Maior bacharelou-se em Direito, em 1952 na Faculdade de Direito do Recife,
onde desde o início privilegiou temas e autores da sociologia em sua formação.
Como ele costuma dizer, a Faculdade de Direito era um lugar em que se estudava
de tudo, inclusive, Direito.
2)
Mas foi no então
recém-criado Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais que Heraldo Souto
Maior teve suas primeiras experiências de pesquisa de campo, acrescentando um
ingrediente fundamental à sua formação sociológica.
3)
Em 1953 deu início à atividade docente no
ensino superior, na Faculdade de Filosofia do Recife, então, agregada à
Universidade do Recife. Como tantos de sua geração que só dispunham da opção de
uma formação jurídica para atuar nas diferentes áreas das humanidades, Heraldo
teve que buscar a formação especializada em sociologia depois da
graduação. Foi então que se intitulou
“Master of Arts” em Sociologia e Antropologia pela Michigan State University.
Apresentou a dissertação “Sociology, Sociologists and Economic Development”,
problemática que, ao lado das técnicas
de pesquisa, passou a orientar as suas atividades investigativas e de ensino,
na área da Sociologia, desde o seu retorno ao Brasil, em 1962.
4)
Entre 1966 e
1997, Heraldo Souto Maior foi Professor Titular e Professor Adjunto de
Sociologia, inicialmente, na Faculdade
de Ciências Econômicas, e no Instituto de Ciências do Homem da UFPE e, mais
adiante, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, nova denominação dada aos
Institutos pela legislação relativa à
reforma universitária.
5)
Nos anos 60, por
intermédio da celebração de convênios
entre a Universidade e órgãos públicos, como a SUDENE, e
também com instituições
de caráter internacional, como a USAID e a
Fundação Ford, delineou-se o quadro institucional e tonaram-se disponíveis os
recursos financeiros necessários para a criação do curso de mestrado em
Sociologia. Em 1967, ele foi implantado pelo Prof. Heraldo Souto Maior, inspirado
em proposta do Prof. Levy Cruz, juntamente com o curso de mestrado em
Economia, proposto pelo Professor Roberto Cavalcanti de Albuquerque, surgindo
então o Programa Integrado de Economia e
Sociologia, PIMES/UFPE. Esta sigla tornou-se referência nacional de produção acadêmica
de natureza interdisciplinar, sobre questões relacionadas aos processos de
mudanças sociais, e projetou a UFPE como
ambiente acadêmico dinâmico e inovador na área.
6) Em 1975, foi
convidado como “Honorary Research Associate”,
pelo Departamento de Antropologia, da Universidade de Harvard.
7)
Retornando da estadia na Harvard University, o
Professor Heraldo Souto Maior voltou-se,
a partir da década de 80, para pesquisas de caráter mais acadêmico. Trabalhando
com os dados dos diversos Censos
Demográficos, tem explorado aspectos relativos às migrações internas, à
segregação social, à educação superior e, sobretudo, à situação da família no
Brasil. Passa a integrar grupos de
trabalho da ANPOCS, entidade da qual, aliás, foi um dos fundadores. Apresentou
vários trabalhos sobre esses assuntos em congressos nacionais e internacionais,
com destaque para “Família no Brasil – 1950-1980”; “Família no Nordeste –
1970-1987”; “Mulher, Família e Trabalho no Nordeste- 1970-1987”, alguns dos
quais foram publicados em Anais e em
revistas especializadas.
8)
Ministrou, desde
o início de sua carreira docente na UFPE
até a data de sua aposentadoria, as disciplinas Teoria Sociológica,
Métodos e Técnicas de Pesquisa e Mudança
Social, alternada ou simultaneamente, tanto no curso de graduação em Ciências
Sociais como no Curso de Mestrado em Sociologia , cursos dos quais foi coordenador por alguns
períodos. O seu compromisso com a
formação inicial de graduandos
levou-o a aceitar
a tutoria do então Programa Especial de Treinamento
(PET) de 1988 a 1994, tendo participado ativamente dos embates
nacionais a respeito de uma iniciativa
da CAPES que, reconhecidamente, tem
produzido resultados acadêmicos muito positivos.
9)
Recentemente,
retomou preocupações do início de sua carreira acadêmica, dedicando-se a
retraçar a História da Sociologia em Pernambuco.
10) O reconhecimento de sua contribuição à
formação de sociólogos e ao conhecimento sobre aspectos específicos da realidade brasileira e regional foi objeto
de homenagens da Fundação Joaquim Nabuco
de Pesquisas Sociais, em 1995 e em 1999, pela outorga, respectivamente, da
Medalha Nordeste de Humanidades e do título de Pesquisador Emérito.
11) Aposentado de
suas atividades na graduação em Ciências Sociais, Heraldo recebeu o título de
Professor Emérito desta Universidade.
12) Em 2005, foi
condecorado com a medalha Florestan Fernandes pela Sociedade Brasileira de
Sociologia.
Mas esses títulos todos podem
virar letra morta se a gente perder de vista a experiência que está condensada
nessas linhas. Como fui aluna dele, e
hoje tenho a alegria de ser sua colega de sala e de programa de pós-graduação,
eu vou traduzir pra vocês. O que eles querem dizer é que Heraldo é, antes de
tudo, um mestre. Não simplesmente um mestre-escola, como ele uma vez sugeriu.
Um mestre no sentido da cultura popular nordestina. Entendido dessa forma, mestre é o vértice de
uma linhagem de artistas, aquele imbuído da tarefa de formar os jovens a partir
do legado de uma tradição. Heraldo é nosso mestre, inclusive porque faz da
sociologia uma arte. Seu mérito é tanto maior, quanto consideramos que a
tradição que ele representa, paradoxalmente, era muito nova em sua terra natal.
Ele é um mestre que, de certa forma, fundou uma tradição. Se o pensamento
social brasileiro já encontrava em Recife, desde muito antes, um representante
do quilate de Gilberto Freyre, foi Heraldo que ajudou a fazer a transição entre
aquela forma mais ensaística de pensamento e a sociologia como disciplina
científica propriamente dita. Foi ele, com a ajuda de outros pioneiros da
sociologia em Pernambuco, que plantou aqui essa grande árvore sob a qual eu e
meus colegas nos abrigamos hoje. Ele difundiu teorias e métodos até então pouco
conhecidos e, menos ainda, utilizados. Que lições ele ensinou a seus alunos,
muitos dos quais, hoje, são professores nesta e em tantas outras universidades
pelo mundo afora? Vou destacar apenas cinco, as que considero mais importantes.
Primeira lição:
Primeiro semestre de Ciências
Sociais. Disciplina de Teoria Social I. O começo de tudo: autores clássicos da
filosofia política, como Hobbes e Maquiavel. É começo porque são os
antecessores da sociologia (os primeiros a tomar as instituições sociais como
objeto de reflexão sistemática, ainda que especulativa). Mas era o começo também em outro sentido: era
a primeira vez que eu via a imaginação sociológica em ação. Mesmo apresentando
autores que trabalham em um nível tão alto de formalização, Heraldo ensinou a
primeira lição: a teoria trata da vida e nisto reside seu interesse maior. Alunos de ciências sociais costumam ser
espíritos inquietos em busca de respostas. Heraldo demonstrou, no primeiro
semestre, que tipo de resposta a sociologia pode oferecer.
Segunda lição:
Nesse mesmo gesto que
descortinava um caminho de reflexão sobre a vida, Heraldo me ensinou uma
segunda lição muito preciosa, talvez a mais preciosa de todas: que as respostas
fáceis e apressadas podem ser piores do que a ignorância. Se á um traço que o
define como sociólogo é seu anti-dogmatismo visceral. Isso explica como,
durante o Regime Militar, ele pode parecer suspeito tanto a alguns marxistas
quanto aos próprios militares. A imaginação sociológica, essa habilidade de
perceber a dimensão cotidiana dos grandes temas e problemas da sociologia,
demanda o exercício constante da dúvida. Esse exercício, por sua vez, implica
em que não nos fechemos em nenhuma forma de absolutismo. Implica em perceber
desde logo o caráter parcial, provisório, frágil mesmo, das nossas convicções
mais profundas e, por conseqüência, do conhecimento que produzimos baseados
nessas convicções. Essa dose de weberianismo foi fundamental para mim e para
tantos colegas com quem ele conviveu em uma interlocução respeitosa e
enriquecedora.
Terceira lição:
Em meio a esse exercício
continuo de reflexão sobre o mundo e de auto-reflexão sobre os seus próprios
pressupostos, Heraldo encontrou um caminho muito próprio para conciliar
distanciamento heurístico e compromisso moral com as pessoas. A sociologia é
esse caminho. Mas não qualquer sociologia.
Hoje vivemos uma época em que o desencanto ameaça se tornar indiferença.
Heraldo me ensinou que o anti-dogmatismo não precisa nos conduzir a um
relativismo impotente. Pelo contrário: o seu riso desconcertante expressa
simultaneamente um forte espírito crítico e uma profunda capacidade de se
deixar afetar pelos problemas que seus alunos lhe trazem. E, em uma simples
tirada, ele é capaz de apontar caminhos e nos afastar do óbvio. A uma
orientanda de doutorado minha, por exemplo, ele disse uma frase que virou a
epígrafe da tese dela. Era um estudo sobre a recepção de uma revista de
celebridades em salões de beleza na periferia do Recife. Ele saiu-se com essa:
“que mocinha do subúrbio nunca sonhou em ser rainha do baile?”.
Quarta Lição:
Esta é muito necessária para os
da minha geração: a sociologia demanda uma visão de conjunto. Talvez mais do
que qualquer outra ciência, ela padece toda vez que a especialização é
exagerada. Vivemos uma época em que, por
pressões institucionais e pela força de certas correntes de pensamento, os
temas e problemas sociológicos tendem a se fragmentar em uma miríade de
especialismos, e os custos dessa tendência me parecem evidentes: muitas vezes, os
trabalhos não conseguem passar da
descrição à explicação, que demandaria a articulação entre o objeto particular
de investigação e a sociedade entendida de modo mais global, em suas múltiplas
dimensões. Heraldo sempre teve a preocupação de resistir ao excesso de
especialização. Por isso, inclusive, implantou o PET de Ciências Sociais (Hoje,
Programa de Educação Tutorial), voltado a prover uma formação o mais ampla
possível aos seus participantes. As suas aulas, o que se aprende é que toda
sociologia específica é, antes de tudo, sociologia, e essa é uma lição muito
preciosa.
A quinta e última lição que me
cabe mencionar aqui, não sei se foi a sociologia que lhe ensinou, mas, sem ela,
dificilmente um professor se torna um mestre, no sentido aqui proposto. Aprendi
com Heraldo que a docência demanda uma boa dose de firmeza, respeito, escuta, generosidade
e senso de justiça. Se possível, acrescida de uma pitada de esperança, como é o
seu caso. Por tudo isso, meu mestre, eu
quero ser você quando crescer.
7 comentários:
esqueceu de mencionar que tudo isso é construído, por Heraldo, com uma pitada generosa de humor
Que legal, justíssima homenagem a Heraldo. :)
Por algum motivo as pessoas têm preferido comentar no Facebook. Nunca transfiro os comentários de lá para o Cazzo, mas acho que, dado que Heraldo (e Eduarda) não tem facebook e que ficaria feliz com as demonstrações de carinho e admiração, acho que vale a pena fazê-lo neste caso.
Jampa Paulo Lima - Muito legal e interessante esses textos e homenagens sobre o Professor Heraldo Souto Maior. Obrigado por dividir por aqui, Cynthia Hamlin. Os textos são um registro importante da história do departamento para quem, como eu, passou por ele bem depois do momento de fundação e teve pouco contato com o próprio Heraldo. É muito importante para o entedimento mais contextualizado da importância e significado dele no PPGS e também da história viva do departamento. Valeu mesmo!
Rogerio Proenca Leite - Merecida homenagem ao nosso querido professor Heraldo!
Maria Conceição Lafayette Almeida- Um grande momento. Belo texto de Eduarda. Heraldo é parte da nossa vida no DCS!
Chico Ramos- Honrosa homenagem.
Giovanni José Gouveia Soares- Heraldo é Heraldo... :D
José Luiz Ratton - Justíssima e belíssima homenagem ao mestre de todos nós! Humor, inteligência, imaginação sociológica, generosidade, respeito à diferença! Este é Heraldo!
Marília Perrusi- E grande tenista! Quem une esporte e sociologia sabe tudo da vida, rs. Lembro que, quando estudante de arquitetura, fui procurá-lo para uma orientação numa pesquisa de iniciação científica. Foi generoso, sim, e paciente com a estudante de arquitetura que eu era, um tanto perdida de/no departamento de sociologia.
Janaína Nascimento - Gostaria muito de ter estado aí pra essa homenagem tão merecida a Heraldo. O texto de Eduarda é justo, afetuoso e verdadeiro. Gostei muito. E além de todos os atributos merecidamente destacados por todos, ainda me impressiona sua vitalidade. Pelo que vejo nas fotos, cerca de 10 anos não fizeram a menor diferença para Heraldo. Cynthia, qd vc o encontrar, pls, diz pra ele que mandei um grande abraço!
Não tive a honra de ser aluno de Heraldo, ao menos no sentido convencional do que podemos pensar como aprendizado. Mas toda vez que alguém me pergunta sobre o PPGS da UFPE e afirmo ser um ambiente acadêmico muito bom, em que a decência e os interesses mais amplos do programa prevalecem sobre as inevitáveis idiossincrasias, penso no papel estruturador que a personalidade de Heraldo desempenhou e desempenha na consolidação deste espaço e desta cultura de trabalho. E assim, também eu, tenho tido o benefício das lições de Heraldo. E ressalto também, como todos, o seu excelente senso de humor. Jonatas
Repetindo o que eu disse no FB:
A gente se assustou, num primeiro momento, se lascou todinho de estudar, leu mais, em 6 meses, que a grande maioria da população lê durante a vida toda, mas depois parece que tudo fica leve e "fácil".
Qualquer um(a) que tenha sido alun@ de Heraldo não consegue esconder o sorriso da cara ao se lembrar do Grande Mestre.
Eduarda, parabéns pela tradução do seu carinho por Heraldo! Suas palavras delicadas me emocionaram :b
Bela e justa homenagem ao Professor Heraldo, cujo nome está muito associado ao do PPGS da UFPE. Infelizmente não pude estar na homenagem, mas acompanhei aqui seus principais momentos com os textos. Abs Otávio Luiz Machado
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