Cynthia Hamlin, Heraldo Souto Maior e Maria Eduarda Rocha. Foto de Rebecca Melo, fisgada da página da ALAS no FB |
Por Heraldo Souto Maior
Surpreendeu-me esta homenagem da Associação Latino Americana de Sociologia. Perguntei-me porque um “poeta municipal”, para usar a expressão de Carlos Drummond de Andrade, era escolhido para ser homenageado neste XXVIII Congresso em que a ALAS completa sessenta anos de existência. Não seria algo desproporcional? Que sentido simbólico ou latente teria isso?
Depois de alguma reflexão, lembrei que o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE), que acolhe o Congresso em seu campus, também aniversaria neste ano, completando quarenta e cinco anos. Como o acaso me colocou à frente da idéia já existente para sua criação, julguei que, como último sobrevivente daquele momento ainda em atividade em seu funcionamento, essa era uma forma de, na verdade, homenagear o nosso programa e o sucesso do projeto. Cumpre perguntar se estava apenas sendo homenageado o PPGS/UFPE, por ser o hospedeiro, ou, se de alguma forma, o dono da casa, vem realizando a seu modo e nesta região os ideais que têm movido a ALAS durante sua longa existência. Ou, dito de forma mais geral, se vem realizando os ideais da sociologia, no ensino ou formação de seus profissionais, na pesquisa e em sua utilidade, no sentido que Robert Lynd perguntava já faz bastante tempo, conhecimento para que?.
Já que sou considerado “fundador” sobrevivente e me homenageiam por isso, tomo a liberdade de falar um pouco sobre mim mesmo e minha participação. Para usar palavras de Maquiavel, veremos se à “fortuna” que me colocou naquela condição corresponde alguma “virtu” na realização dos objetivos propostos. Se sim, de certa forma, o homenageado não deslustra a instituição que, em última instância, é a homenageada. A minha história pessoal teria algum interesse, na medida em que mostrasse o contexto de uma época e como nela se “fazia um sociólogo”, para usar a expressão de Sebastião Vila Nova. Tempo houvesse, falaria dos acasos, dos encontros e desencontros e das redes sociais que construíram essa minha fortuna. O que poderia dar uma boa análise sociológica de destinos pessoais e contextos socioculturais, ou, se quisermos, das relações entre ator e estrutura social.
É bom que se diga que, apesar de “fundador”, contei com uma série de circunstâncias ou com um contexto que, apesar de fatores desfavoráveis, abria caminho para o sucesso do empreendimento. Naturalmente sem esquecer um grupo de colegas e administradores que me favoreciam na formulação final desse projeto a ser levado à frente. E, posteriormente, tantos outros que contribuíram e continuam contribuindo para a continuidade desse sucesso.
Naquela época, falar em sociologia no Brasil era principalmente falar em São Paulo e Rio de Janeiro. Principalmente São Paulo. Para usar um termo muito em moda, diria que éramos colonizados por São Paulo, ou seja, a chamada escola paulista de sociologia. Tínhamos Gilberto Freyre, mas este, apesar de sua fama nacional e internacional, nunca se acomodou ao estilo da academia. Como todos sabemos, a institucionalização da sociologia ocorreu, ao longo do tempo, nas universidades e em seus departamentos de sociologia. Gilberto Freyre, é bom que se diga, institucionalizara a pesquisa no fim dos anos quarenta, ao criar o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje FUNDAJ, nosso parceiro na realização deste Congresso.
Aqui, nesse aspecto, na Universidade, éramos praticamente zero. Nosso primeiro departamento de ciências sociais chega tardiamente em 1950, inicialmente fora da então Universidade do Recife, esta que hoje acolhe a ALAS com o nome de Universidade Federal de Pernambuco. Era um departamento praticamente sem pesquisa, dedicada a uma sociologia de poltrona, herdeira ainda da tradição da Faculdade de Direito do Recife e da chamada Escola do Recife, dos fins do século XIX. Contra isso, se movimentou um grupo de jovens pesquisadores, não apenas de sociologia, de dentro e de fora da universidade. É bom lembrar que essa nova maneira de ver encontrava resistência em certo setores tradicionais dentro da universidade, não apenas pela nova forma de pensar, mas, também, por uma possível ameaça a um sistema de poder.
No entanto, em um contexto mais geral, criado pela reforma das universidades federais, abriu-se um ruptura que propiciou uma transformação profunda, anulando as resistências internas. Tratava-se da Lei No 4024, de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de dezembro de 1961, com base na qual foram criados os Institutos Universitários ao lado das Faculdades e Escolas já existentes, entre eles, o Instituto de Ciências do Homem, no qual estava localizada a sociologia, completando a institucionalização da disciplina. Não seria exagerado dizer que esse projeto nacional em favor da pós-graduação e da pesquisa terminou por favorecer a sociologia em outros estados, poucos a princípio, mas em todo Brasil ao final. Pode-se, creio, perguntar agora, o que é essa sociologia brasileira e qual a sua identidade ou suas identidades. Dada a proporção continental do País, podemos indagar a respeito de semelhanças com a o resto da América Latina. O que vemos hoje é que a sociologia está presente e tem o que dizer no Brasil inteiro e contracena com instituições além do continente. Estes congressos da ALAS, por seu lado, procuram promover a maior integração na própria América Latina.
Vamos, então, a nossa proposta inicial, ou seja, de como a nossa atividade tem realizado, a sua maneira, ideais que também, creio, o são da sociologia latino americana, na América Latina ou da América Latina, como quer que o seja.
Em primeiro lugar, a própria concepção do projeto e de sua possível viabilidade só se se torna possível com as condições proporcionadas pela Lei acima referida e pelo anterior estabelecimento das universidades federais. Como já afirmamos, o crescimento científico no mundo moderno não se faz senão a partir da expansão e fortalecimento das universidades. Isto valeu para o Brasil e também vale para a América Latina.
Em nosso caso particular, com a SUDENE e a idéia do desenvolvimento regional, sentiu-se a necessidade de pesquisas e pesquisadores no campo das ciências sociais que mostrassem a realidade socioeconômica do Nordeste. Isso quer dizer, conhecimento interdisciplinar, intercâmbio entre essas diversas ciências. Daí, a criação de um programa integrado de mestrado em economia e sociologia, o PIMES. É bom não esquecer o nome do professor Roberto Cavalcanti de Albuquerque, economista e humanista, que, juntos, concebemos o projeto final, aprovado pela Universidade em dezembro de 1966.
Não foi sem percalços que a empreitada foi levada avante. Enfrentamos a oposição dos setores tradicionais do Departamento de Ciências Sociais, dentro da própria Universidade. Também, de grupos soi disant progressistas que se nos opunham por aceitarmos financiamento e suporte da agências internacionais como a Fundação Ford e a USAID. Sem falar, nos serviços de segurança do governo militar que viam a sociologia com extrema suspeição, mantendo-nos sob vigilância por muito tempo. Era um caminhar com muito temor e ansiedade entre fogos cruzados. Necessitávamos de muito tato e sensibilidade política para caminharmos nessa selva selvaggia, nesses tempos de muita intolerância.
No entanto, não fossem esses recursos e os alocados pela SUDENE e pelas contrapartidas da própria Universidade, não poderíamos ter ido à frente. Não fosse o apoio decisivo e a confiança do então Reitor Professor Murilo Guimarães e do Pró-Reitor Marcionilo Lins, depois também reitor, não sei se naquela época teríamos superado as dificuldades.
Mas, como suposto homenageado, mencionarei alguns pontos da filosofia que, como coordenador por cerca de onze anos, procurei imprimir ao projeto.
Em primeiro lugar, uma posição de abertura teórico metodológica no recrutamento e na formação de seus professores e pesquisadores que permitisse o confronto e o debate entre perspectivas diferentes de ver e de investigar o social. De promover a controvérsia e evitar a ditadura do pensamento único. Isso incluía também a perspectiva interdisciplinar, implícita na idéia de um mestrado integrado em economia e sociologia e que coincidia com os objetivos do Instituto de Ciências do Homem, com suas Divisões de Sociologia, Psicologia, Economia, Antropologia, Ciência do Direito e História. Daí a idéia de formarmos professores e pesquisadores em diferentes universidades, em países diferentes. Tanto quanto possível, evitar a endogenia.
Também era intenção contribuir com pesquisas voltadas para os problemas do Nordeste e que pudessem fundamentar políticas públicas para resolvê-los. Assim o fizemos com a SUDENE, com a CODEVASF, com a Prefeitura do Recife, com a COHAB, entre outras. Pensávamos que um bom diagnóstico seria a melhor base para a ação. Conhecer a realidade para melhor transformá-la. Ir além da pura indignação e de um voluntarismo sem sentido concreto. A interpretação do mundo e da sociedade é necessária para que possamos transformá-la, mas acontece que a história não para. Necessitamos sempre de estarmos a reinterpretá-la. Paradoxalmente, os melhores diagnósticos, apesar de uteis e necessários, não nos permitem a previsão do futuro. A sociologia tem que conviver com os paradoxos. Para essa convivência precisamos da sabedoria.
Esforçamo-nos para concretizar a colaboração com outros programas e estivemos presentes na fundação da ANPOCS e participamos sempre de suas atividades. Bastante antes mesmo da ANPOCS estivemos em encontros dos poucos programas de pesquisa e pós-graduação existentes. Estivemos presentes na reorganização da Sociedade Brasileira de Sociologia. Considerávamos o fortalecimento de associações e sociedades científicas fundamental.
Do ponto de vista pessoal, como professor, sempre evitei impor minhas idéias aos meus alunos. O importante, para mim, era despertar neles a capacidade de pensar e de descobrir onde estavam os problemas, de pensar sociologicamente. Não acredito em teoria única ou teoria final. Penso a sociologia como um conjunto de perspectivas, cada uma revelando uma forma de ser do social e da sociedade. Não existe uma teoria final.
Acredito em uma sociologia crítica, sempre se renovando. Nada nela é sagrado, tudo é possível de contestação. A maior conquista do espírito científico é a rejeição do espírito dogmático. A sociologia, portanto, tem que ser crítica dela própria.
Imagino a academia como um modo de vida, mais que um meio de vida sem deixar de sê-lo. Se a sociologia é o meio de vida do sociólogo, resta-nos provar que é um meio de vida honesto e não devemos nos envergonhar dele. Que não seja um meio de vida espetáculo, uma corrida de vaidades e lutas de poder, mas uma atividade que, com as armas do conhecimento disponível, transforme apropriadamente problemas sociais em questão sociológica, sem esquecer o seu compromisso com o aprofundamento da construção de relações sociais justas e democráticas. Assim deve ser a academia, assim deve ser a sociologia.
Este o meu ideário. Assusta-me, pois, esta homenagem e me indago se o “poeta municipal” de alguma forma o merece. Se seus esforços para criar e dar vida a este PPGS/UFPE e os rumos que ele tomou com a participação de tantos outros justifica que a homenagem seja feita a meu nome.
6 comentários:
O texto da homenagem foi escrito por Maria Eduarda Rocha, que ficou de enviá-lo para nós. Eu estou na foto só de enxerida. E para não deixar Heraldo sozinho com Eduarda - afinal de contas, eu tenho prioridade.
E já dizia uma aluna de mestrado: "Ai! Ele não é um fofo?!..." E disputado.
Parabéns, Mestre Heraldo, por uma mais essa merecida homenagem!!
Lindo texto! Parabens Heraldo!!! Todos nós nos sentimos homenageados!
Que texto esclarecedor de uma trajetória e muitas trajetórias....Tenho voces da UFPE como referencia fundamental para a sociologia brasileira!!! Oportuna a homenagem ao Heraldo. Em 2005 tive oportunidade de presenciar uma homenagem a ele na SBS de BH. Fui no mesmo onibus do hotel à UFMG, ficava olhando para ele até que o mesmo puxou conversa comigo... adorei!!! Ileizi (UEL)
Vixe, quanta honra, Ileizi!
Depois me manda seu endereço para eu te enviar um exemplar do livro de Heraldo sobre a História da Sociologia em Pernambuco. Embora diga respeito à formação do PPGS daqui (já nos anos de 1960), é um excelente estudo de caso referente ao processo de institucionalização mundial da sociologia no Pós-Guerra.
Fica especialmente claro o papel das grandes fundações americanas como a Ford, a Fullbright etc, assim como a ênfase em uma concepção particular de sociologia, muito voltada para a pesquisa empírica de questões locais.
Outro aspecto interessante do livro diz respeito às tensões entre as demandas do governo militar, por um lado, e a resistência local ao que se concebia como imperialismo americano. Vale a pena ler se se quer compreender a institucionalização da sociologia no Brasil.
Bjs
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