sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Natureza do General McArthur (texto já publicado no Cazzo não sei bem quando)

Você quer saber o que é real, meu filho? Pula do vigésimo de cabeça na esperança de que tudo seja construto social para ver... Tenta comer um cento de manga-espada no intervalo de uma hora para ver o resultado... Come todos os quitutes - "passarinha", um delicioso "figado de alemão" - no Bar do Bigode e procura sustentar com o máximo de coerência que essa estória de disenteria é algo cultural... Procura fecundar teu parceiro gay e espera nove meses... O(A) leitor(a) vai desculpar a qualidade dos exemplos, mas grosso modo é deste tipo de argumento que nos valemos sempre que procuramos, eu e meu amigo, o general McArthur, pôr um limite a esse tal construtivismo que grassa as ciências sociais. No final das contas, o General é mais refinado que eu. “Teu anti-depressivo está funcionando bem? Então, há de haver algum limite pare esse tal culturalismo...”


O problema é que o que parece um argumento pragmático, não deixa de se valer de algumas pressuposições metafísicas que nunca emergem como tal – o que não é de espantar, já que estamos tentando nos concentrar em um argumento pragmático que nos livre da verbosidade gorda de uma certa tradição filosófica, sociológica. Há algo mais metafísico que o positivismo comteano? Sua inteção, entretanto, era nos livrar do blá-blá-blá da filosofia. Insatisfeito conosco, por antecipação, um tal Martin Heidegger escreveu um livro interessante nos idos de 1959. Li o Introdução à Metafísica há coisa de uns dez anos e me lembro um tanto vagamente do argumento do livro – o que é uma lástima, pois a obra é mesmo importante para a pesquisa que realizo no momento. Uma parte importante do livro, de qualquer modo, é dedicada à questão da diferença entre o conceito grego de physis e o conceito latino de natura. Se devemos pensar de modo sólido o que é metafísica (meta ta physis), raciocina Heidegger, devemos começar por inquirir acerca do mundo físico, uma vez que é ele que a pergunta “por que há seres e não o nada?” pressupõe. Essa pergunta filosófica fundamental (angústia que alberga - gostaram? - outras angústias importantes, como: por que eu devo morrer? logo eu...) pressupõe que há um fundamento para o que há, ou para aquilo que Heidegger chama de essentes. É esse fundamento que a palavra grega physis procura.

Em algum lugar do Introdução à Metafísica Heidegger se pergunta algo como: “O que a palavra physis denota? Ela denota um emergir auto-florescente (por exemplo, o florescer de uma rosa), uma abertura, um desdobrar, aquilo que se manifesta neste desdobrar e persevera e o sustém; em suma, o âmbito das coisas que emergem e permanecem”. (E aqui já percebemos que o General estava correto ao falar da incompetência de filósofos, cientistas sociais para a literatura: "o florescer de uma rosa?...")Para os gregos, então, o mundo físico é algo que se abre permanecendo em si mesmo; uma potência que emerge e se sustém. Lembram da definição de natureza que nos oferece Aristóteles? Está lá na Física: A natureza tem o seu princípio de produção em si própria - em oposição a um ser técnico, que tem o princípio de sua produção em outrem.

As questões metafísicas são aquelas que não podem ser respondidas por esse ou aquele ser natural, mas pela totalidade dos essentes. É essa totalidade que é pressuposta, de partida. Não prosseguirei adiante com o argumento heideggeriano, falta-me tempo para retomar o resto do livro e o ler com atenção. Mas para o que pretendo discutir aqui, já dá.

A verdade é que tanto o conceito grego de phyisis como o conceito latino de natura pressupõem essa totalidade, essa unidade dos seres cujo sentido procuramos descortinar pela filosofia, pela religião, pela ciência, pela técnica. Aristóteles, por exemplo, acreditava que essa totalidade estava cindida, em um mundo lunar e um mundo sublunar, e que as regras físicas que valiam para o primeiro âmbito, não valiam para o segundo. Newton propôs, em oposição a ele, a unidade de todo universo e a possibilidade de encontrar um denominador comum para todo o cosmos: a matemática. Em A Imagem da Natureza na Física Moderna, Heisenberg escreve a esse respeito o seguinte: "para Newton, o passo decisivo tinha sido constituído pela descoberta de que as leis da mecânica regem a queda de uma pedra são as mesmas que regulam o movimento da lua em torno da terra e podem, por isso, aplicar-se também à escala cósmica". E algumas linhas abaixo, ele prossegue: "Também a palavra "descrição" da natureza foi perdendo cada vez mais o seu significado primitivo de representação destinada a transmitir uma imagem da natureza tanto quanto possível viva e sensível; adquiriu, pelo contrário, cada vez mais o sentido de 'descrição matemática da natureza', isto é, uma compilação de informações sobre as relações e as leis da natureza, tanto quanto possível precisa, concisa e ao mesmo tempo compreensível". A partir daí os cientistas começaram a dizer que mesmo Deus, se quiser produzir algo no mundo físico, teria de se submeter as regras da natureza.

Mais recentemente, outro desconfiado com o conceito de natureza, e que não gosta muito de Heidegger, propôs que pensássemos se o real, e a natureza, teriam mesmo uma necessidade, uma razão oculta uma causa primeira. Em oposição a essa visão, Rosset propõe uma visão trágica do natural, onde o acaso, a contingência, seria tudo o que poderíamos ter. Na Antinatureza Rosset faz um trabalho muito interessante de mapeamento filosófico dessas duas visões básicas da natureza: uma visão cética, que encontraríamos em pensadores como Hume, Montaigne, para quem a natureza é contingência; e uma visão que propõe uma univocidade da natureza, um fundamento ou necessidade, que deveríamos procurar sob a complexidade da empiria - Platão é aqui a referência fundamental. Tenho que voltar a esse texto, mas acredito que para Rosset não haja nada como uma natureza – e não obstante não podemos abandonar simplesmente essa comodidade do pensamento e da linguagem. O que é importante, no entanto, é pensar que a cultura ocidental (permitam-me essa redução) vem há muitos anos negociando, não apenas o que é cultura, mas o que é natureza. E a negociação de um dos termos, o(a) leitor(a), deve intuir, é a negociação do outro. O que tradicionalmente é visto na sociologia como uma antinomia insuperável, apresenta-se sob essa perspectiva como o terreno de uma economia.

Mas aqui já estou entrando num terreno familiar para quem vem acompanhando meus posts neste Cazzo – ou seja, Cynthia e Arthur. Foucault, Agamben, Nikolas Rose, Negri, todos esses estão (esteve) envolvidos com um tipo de pensamento que parte da seguinte constatação: a natureza, o que ela vem sendo, vem se tornando, é um problema fundamental na definição do que a cultura pode ser. Por esse motivo eu tenho me dedicado a estudar as tais tecnologias da vida e as transformações epistemológicas, ontológicas, políticas que passam a ser supostas em algo tão simples como acreditar, por exemplo, que os sistemas vivos são determinados por instruções moleculares escritas num alfabeto cujas letras seriam: T,C,G,A. Para os que não são iniciados, essas são as bases nitrogenadas, cuja combinação determinam o genoma dos seres vivos.

A natureza, acredito, não é âncora para nada: ela é um, talvez O, espaço de negociação onde produzimos a cultura. Isso seria construtivismo? Apenas se acreditarmos que a cultura é algo imaterial. E, no mais, McArthur, sempre podemos testar nossas hipóteses vendo quanta Boêmia weiss podemos tomar numa noite – obviamente, a mesa redonda não há de ser no Bar do Bigode.


Um tempo após a publicação desse post, estudando Judith Butler, onde essa discussão toda começou, leio as seguintes linhas:

"Pois se o gênero é tudo que existe, parece não haver nada "fora" dele, nenhuma âncora epistemológica plantada em um "antes" pré-cultural, podendo servir como ponto de partida epistemológico alternativo para uma avaliação crítica das relações de gênero existentes. Localizar o mecanismo mediante o qual o sexo transforma-se em gênero é pretender estabelecer, em termos não biológicos, não só o caráter de construção do gênero, seus status não natural e não necessário, mas também a universalidade cultural da opressão. Como esse mecanismo é formulado? Pode ele ser encontrado, ou só meramente imaginado? A designação de sua universalidade ostensiva é menos reificadora do que a posição que explica a opressão universal pela biologia?" (Butler, Problemas de Gênero, Civilização Brasileira, p. 67)
(por editar)

Jonatas Ferreira

2 comentários:

Le Cazzo disse...

Prometo, para breve, post novo. Um certo saudosismo me fez voltar a publicar essa parte de um debate entre mim e Artur. Jonatas

Tâmara disse...

Socoro Artur! A natureza é um talvez?! Possa ser, como diria o Sargento Getúlio. A que Jonatas percebe. Porque a que eu percebo, é! E no entanto, sou construtivista. E aqui vai um protesto:há que se especificar de que construtivismo estamos falando. Para não haver confusão entre gregos e baianos. E eu já declarei, para todos os fins, no Blog dos Perrusi, que suporto melhor os baianos. Por conta de Dorival e suas Rosas de abril. Abraço