quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Positivismo, Positivismos: da tradição francesa ao positivismo instrumental (parte 2)

Paul Lazarsfeld

Por Tulio Velho Barreto (Pesquisador, Fundação Joaquim Nabuco). Artigo originalmente publicado em Estudos de Sociologia 4(2). Recife, Ed. Universitária, p 7-31, 1998. Cedido ao Cazzo pelo autor. 


Os "Positivismos" do Círculo de Viena, de Popper e de Lazarsfeld

Assim como Halfpenny aponta para uma série de significados que o termo "positivismo" foi adquirindo a partir de Comte, o que amplia a polêmica sobre o seu uso, Giddens (op. cit.:317-19) acentua que o uso indiscriminado do conceito fez com que ele passasse a ter, inclusive, uma conotação pejorativa. Daí, ressalta Giddens, a importância de estudá-lo a partir da filosofia para traçar sua influência sobre as ciências sociais.

Para ele, tal influência se deu (a) de forma restrita ou específica, relativamente àqueles que se consideram positivistas; neste caso, há duas fases de desenvolvimento do positivismo, que guardam semelhanças e diferenças entre si: uma no campo da teoria social (a filosofia positiva, de Comte); e outra, na epistemologia (o positivismo lógico do Círculo de Viena); (b) de forma mais geral, ampla e difusamente, para "os filósofos que adotaram a maioria de uma série, ou toda a série, de [certas] perspectivas interligadas", tais como: "o fenomenalismo [...]; a representação da filosofia como método de análise [...]; a dualidade do fato e valor [...]; e a noção de ‘unidade da Ciência’[...]" (op. cit.:317-18).

Mas, como afirma Giddens, a influência de Comte sobre pensadores deste século foi possibilitada por Durkheim e sua obra, apesar das críticas que este fazia àquele. A despeito disso, é inegável que "o legado de Comte paira sobretudo no esquema metodológico da Sociologia que Durkheim elaborou" (op. cit.:325). E apesar de não considerar a obra de Durkheim mera extensão dos trabalhos de Comte, ele entende que

“os escritos de Durkheim tiveram maior influência do que os de qualquer outro autor na ciência social acadêmica, para a difusão da ‘Sociologia Positivista’ [...]. Através deles, o ‘positivismo’ de Comte teve uma influência importante sobre o desenvolvimento mais generalizado dessa Sociologia Positivista. Essa é uma linha que leva de Comte ao pensamento do século XX. A outra é menos direta, ligando Comte ao positivismo lógico do Círculo de Viena”. (op. cit.:327)

A ligação "menos indireta" a que se refere Giddens é a mediação operada pelo físico e fisiologista Ernest Mach entre o pensamento de Comte e os membros do Círculo.

Então, os aspectos do pensamento Comteano presentes em Mach, que permitem tal passagem, são, ainda segundo Giddens, os seguintes:

“1. A reconstituição da história como a realização do espírito positivo [...]. A fase positiva do pensamento não é transitória. 2. A dissolução final da metafísica, intimamente ligada à idéia da supressão da própria Filosofia [...]. As questões postuladas pela Filosofia metafísica são destituídas de conteúdo. 3. A existência de um limite claro e definível entre o factual, ou o ‘observável’, e o imaginário, ou ‘fictício’. [...] Comte adota o ponto de vista do empiricismo [...]. 4. O ‘relativismo’ do conhecimento humano. [...] A ciência [...] não pretende essências ou causas finais. O conhecimento científico não é nunca ‘acabado’, mas constantemente aberto à modificação e melhoria. 5. O laço integral entre a ciência e o progresso moral e material da humanidade”. (op. cit.:328)

"A concepção científica do mundo: O Círculo de Viena"

O positivismo lógico ou empiricismo lógico do Círculo de Viena (Moritz Schlick, um de seus mentores, preferia a segunda denominação) sofreu também grande influência de Wittgenstein, amplamente citado pela literatura a respeito, mas também de Bertrand Russel, além de algumas idéias difundidas então por importante físicos, notadamente Albert Einstein (Hegenberg, 1976:1-20; Giddens, op. cit.: 332-44).

O Manifesto do Círculo de Viena, de 1929, subscrito por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolf Carnap (1882-1970), foi concebido no âmbito da Sociedade Ernest Mach e destinava-se a divulgar a nova "concepção científica do mundo", onde "a rigorosa eliminação da metafísica do domínio do pensamento racional e o estabelecimento da ciência unificada por meio da redução lógica da ciência aos termos da experiência imediata foram anunciados" (Sauer, 1996:799-803; cf. também Pasquinelli, 1983:9-22, para uma análise mais detalhada do "manifesto vienense").

Com base no empirismo clássico, que deu origem ao positivismo segundo a tradição francesa, exposta na seção anterior, os membros do Círculo de Viena admitiam que o conhecimento factual resulta da observação e não a priori. Entretanto, "julgavam insatisfatória a concepção da matemática e da lógica como sistemas de proposições muito gerais, estabelecidas indutivamente a partir de fatos empíricos particulares" (in Schlick-Carnap:1983:X, "Vida e obra"). Por isso era particularmente importante, para os membros do Círculo, a idéia de Wittgenstein de que

“toda proposição significativa fornece alguma informação acerca do estado atual do mundo, na medida em que afirme a ocorrência de certos fatos atômicos e exclua a ocorrência de outros. O valor de verdade de uma proposição deve, pois, poder ser determinado a partir do conhecimento da ocorrência, ou não-ocorrência, dos fatos atômicos envolvidos. Imaginando-se uma linguagem capaz de exprimir cada fato atômico, toda proposição significativa poderia ser reduzida a uma combinação de proposições atômicas mediante funções de verdade, de modo a ficar o valor de verdade da proposição complexa univocamente determinada pelos valores de verdade das proposições atômicas componentes” (idem ).

Daí resultou o "princípio da verificabilidade", isto é, o significado de uma proposição está relacionado diretamente aos dados empíricos que resultam de sua observação e que, uma vez existentes, dão veracidade à proposição. Caso contrário, mostram que ela é falsa. Assim, toda proposição, que, a princípio, pode ser transformada em "enunciados protocolares", só tem significado se for verificada empiricamente. Da mesma forma, os membros do Círculo de Viena foram levados a defender a idéia de que é possível submeter as proposições matemáticas e lógicas ao "princípio empiricista". Entretanto, só a verificação empírica de tais proposições definirá se elas são providas de significado ou não, se são de fato proposições ou pseudoproposições. Isto é, são apenas proposições formais, desprovidas de significado e vazias de conteúdo, o que faria delas mais propriamente uma linguagem do que proposições acerca da realidade. Finalmente, eles estenderam à filosofia a crítica então formulada à metafísica, pois só teria valor científico o que pudesse ser verificado empiricamente (cf. Sauer, op. cit.; Hegenberg, op. cit.; in Schlick-Carnap, op. cit.). Vê-se logo a importância que a lingüística teve para os empiricistas lógicos na formulação de suas concepções acerca do método científico.

Os princípios acima correspondem à fase mais "radical" do Círculo de Viena, posteriormente abrandada, isto é, tomando uma feição mais liberal, em especial com Carnap. Ocorre que tais princípios levaram a um impasse com relação, por exemplo, às leis naturais que não podem ser plena e definitivamente verificadas. Para resolvê-lo, Schlick propôs que as leis naturais fossem tomadas não como proposições mas como regras das quais pudessem ser deduzidas proposições, ficando assim, portanto, passíveis de verificação. Contudo, essa formulação sofreu resistência de Carnap, que argumentava que, mesmo tais proposições, não poderiam ser submetidos ao "princípio de verificação". Como conseqüência, Carnap deu nova forma ao princípio concebendo as idéias ou noções de "confirmabilidade" e "testabilidade" a fim de concluir se uma proposição teria significado ou não. Assim, em vez de verificar se determinada proposição tinha comprovação empírica ou não, Carnap passou a defender a verificação de certo grau de confirmabilidade daquela segundo dados empiricamente observados. Quanto à testabilidade, Carnap estava preocupado em saber em que grau uma proposição poderia ser submetida à confirmação ou não. Em síntese, de seu modelo apreende-se que uma proposição pode ser testável completamente, testável apenas parcialmente, confirmada parcialmente ou confirmada por completo, que corresponderia à verificabilidade da proposição (Carnap, 1983:171-219; cf. também Sauer, op. cit.; Hegenberg, op. cit.; "Vida e obra" in Schlick e Carnap, op. cit).

O "positivismo" de Karl Popper

Apesar de não fazer parte do Círculo de Viena, Karl Popper (1902-1994) tinha relação muito próxima com os seus membros, sendo, inclusive, alguns de seus trabalhos discutidos ali. Contudo, isso não o impediu de expressar suas críticas ao positivismo lógico. Giddens (op. cit.:344-49), mas não só ele, identifica diferenças e semelhanças entres eles:

“[A filosofia de Popper] derivava dos esforços que ele fazia para distinguir a pseudociência  o marxismo [daí sua crítica ao materialismo histórico ou historicismo de Marx], a astrologia ou a psicologia freudiana  da ciência verdadeira, como a teoria da relatividade de Einstein. A última, decidiu Popper, era testável; fazia previsões sobre o mundo que podiam ser empiricamente checadas. Era o que os positivistas tinham afirmado. Mas Popper negava a afirmação positivista de que os cientistas podem provar uma teoria por indução [como queria, por exemplo, Carnap com sua lógica indutiva] ou por testes empíricos ou observações sucessivas. Nunca se sabe se as observações foram suficientes; a observação seguinte pode contradizer tudo o que a precedeu. As observações nunca são capazes de provar uma teoria; só podem provar a sua inverdade ou refutá-la. Popper costumava se vangloriar de ter ‘matado’ o positivismo lógico com essa argumentação” (Horgan, 1998:50).

Para Giddens, as diferenças entre o "positivismo" de Popper e o positivismo lógico, no caso de Popper, o termo é usado entre aspas porque, dentre outras razões, Popper não se considerava positivista, e seu "princípio da refutação", como veremos mais adiante, é prova empírica não da verificação da hipótese, ao estilo dos empiricistas lógicos, mas de sua aceitação, ainda que parcial ou momentânea, até que novos testes sejam operados  as diferenças, repito, podem ser resumidas da seguinte maneira:

“[1] sua rejeição total da indução e sua rejeição concomitante da certeza ‘sensória’, [...] manifesta como fenomenalismo ou fisicalismo; [2] sua substituição da verificação pela refutação, com a correspondente ênfase na ousadia e engenhosidade na formulação de hipóteses científicas; [3] sua defesa da tradição que, em conjunto com a operação do espírito crítico, é fundamental para a ciência; e [5] sua substituição da ambição da lógica positivista de colocar um fim na metafísica, revelando-a como um absurdo, com o objetivo de assegurar critérios de demarcação entre ciência e pseudociência”. (op. cit:345)

Da mesma forma, Baudouin (1992:30-1) aponta que, além de contestar o "indutivismo", Popper insurgiu-se contra "a eliminação da metafísica do processo de conhecimento, reafirmando o papel que esta pode desempenhar na formulação das conjecturas ou na construção das teorias". Assim, para Baudouin, a Lógica da Descoberta Científica nada mais foi do que uma réplica às teses centrais dos positivistas lógicos de Viena.

Mas, há semelhanças. Por exemplo, Popper tem a mesma posição dos positivistas lógicos quanto ao fato de o conhecimento científico ser "o mais seguro e fidedigno" que podemos pretender. Da mesma forma, Popper procurou incessantemente demarcar de maneira clara os limites entre a ciência e a pseudociência e, ao formular o "princípio da refutação", era cioso de que as teorias e constatações científicas podiam ser submetidas à prova empírica, condição necessária para serem refutadas ou não. (ibidem) Aqui, para efeito dos objetivos estabelecidos, cabe destacar o seu "princípio da refutação". É o que passo a fazer.

Em Lógica das Ciências Sociais, após apresentar cinco teses, e antes de continuar enumerando-as até a vigésima sétima, Popper, na de número seis, sua "principal tese", afirma o seguinte:

“a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente, então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente.
b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então tentamos refutá-la; pois toda crítica consiste em tentativas de refutação.
c) Se uma solução tentada é refutada, através do nosso criticismo, fazemos outra tentativa.
d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamente; e a aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida e criticada mais além.
e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severas críticas. É um desenvolvimento crítico consistente do método de ‘ensaio e erro’.
f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e mais ainda, que o instrumento principal da crítica lógica, a contradição lógica, é objetivo. (1978:15-6)

Das demais teses, que, como um todo, correspondem ao que o próprio denominava de "racionalismo crítico", apreende-se, dentre outras coisas, o critério para definir que o caráter científico de uma teoria está na possibilidade de validá-la, refutá-la e testá-la. Mas, também está presente, como já ressaltei, a rejeição ao dogmatismo, o marxismo, a psicanálise etc., e ao indutivismo.

Enfim, volto ao fato, já mencionado, de que Popper declara não ser positivista. Para ele, ser chamado de positivista "é um equívoco antigo, criado e perpetuado por aqueles que conhecem a minha obra somente de segunda mão [...]". Tal "equívoco" foi criado, segundo Popper, pela tolerância de alguns membros do Círculo de Viena que chegaram a publicar suas críticas ao positivismo lógico. Como ele mesmo afirma,

"uma última palavra a propósito do termo ‘positivismo’.Eu não nego, decerto, a possibilidade de estender o termo ‘positivista’ até que ele abranja todos os que tenham algum interesse pelas ciências naturais, de forma que venha a ser aplicado até aos adversários do positivismo, como eu próprio. Sustento apenas que tal procedimento não é nem honesto nem apto a esclarecer o assunto. [...] Eu sempre lutei contra a estreiteza das teorias ‘cientificistas’ do conhecimento e, especialmente, contra todas as formas de empirismo sensualista. Eu lutei contra a imitação das ciências naturais pelas ciências sociais e pelo ponto de vista de que a epistemologia positivista é inadequada até mesmo em sua analise das ciências naturais as quais, de fato, não são ‘generalizações cuidadosas da observação’, como se crê usualmente, mas são essencialmente especulativas e ousadas [...]. (op. cit.:47 e 48)

O "positivismo instrumental" de Paul Lazarsfeld

Mills (1982:30-1) chama a atenção para o fato de que, desde o início deste século, a despeito da forte influência de Comte e Spencer sobre a sociologia norte-americana, os estudos empíricos tornaram-se centrais naquele país, em parte, desconfia ele, por causa da tradição acadêmica da Economia e da Ciência Política, ali estabelecidas já há algum tempo. Aliado a isso, Mills considera que "os sociólogos têm a tendência de se tornarem especialistas na técnica de pesquisa de quase tudo: entre eles, os métodos se transformaram na Metodologia". E, continua Mills, "grande parte do trabalho - e dos ethos nele existente - [...] de Paul Lazarsfeld [dentre outros] são exemplos atuais. Essas tendências  de dispersar a atenção e cultivar o método pelo método - são dignas companheiras, embora não ocorram necessariamente juntas". Paul Lazarsfeld (1901-1976) faria parte, portanto, de uma escola que Mills denomina de "empirismo abstrato".

Bryant prefere usar o termo "positivismo instrumental" para designar esse mesmo tipo de pesquisa social empírica, bastante difundida nos Estados Unidos, que ele chega a considerar, até mesmo, a pesquisa social norte-americana característica. Ela seria instrumental na medida em que limita aquele tipo de investigação às perguntas que os instrumentos de pesquisa permitem; e seria positivista posto que esse constrangimento auto-imposto é indicativo de uma determinação por parte dos sociólogos, de se submeterem aos mesmos rigores que eles vêem nas ciências naturais (op. cit.:133). Mills, por sua vez, caracteriza assim o tipo de pesquisa entabulada pelos "empiristas abstratos":

“Os estudos reputados nesse estilo tendem hoje a se enquadrar, regularmente, numa configuração mais ou menos padronizada. Na prática a nova escola habitualmente toma como fonte básica de suas 'informações' a entrevista, mais ou menos formal, com séries de pessoas escolhidas por processo de amostragem. Suas respostas são classificadas e, por motivo de conveniência, transferidas para cartões Hollerith, em seguida usados para levantamentos estatísticos por meio dos quais se buscam relações. Sem dúvida, esse fato, e a conseqüente facilidade com que o processo é apreendido por qualquer pessoa medianamente inteligente, explica grande parte de sua atração”. (op. cit.:59)

Como o texto de Mills é de 1959, parte dos procedimentos indicados não são mais usados, pois o avanço no processamento de dados foi formidável - basta que se lembre aqui o surgimento de microcomputadores e os "pacotes estatísticos" do tipo SPSS. Entretanto, o que é relevante notar é que basta observar sua descrição, acima, para perceber que o livro de Mills é uma crítica contundente desse tipo de pesquisa social. Na verdade, A Imaginação Sociológica é uma obra, como ele mesmo explicita, em defesa das grandes formulações teóricas nas ciências sociais, obnubiladas pelas "pesquisas de grupos de técnicos". Assim, para ele, "o empirismo abstrato não é caracterizado por qualquer proposição ou teoria substantiva. Não se baseia em qualquer concepção nova da natureza da sociedade ou do homem, ou quaisquer fatos particulares com eles relacionados”. (op. cit.:64)

A despeito da posição de Mills, Bryant relaciona as cinco características que considera como principais do positivismo instrumental. São elas: "1. A preocupação com o refinamento das técnicas estatísticas e instrumentalização da pesquisa [...]. 2. O endosso do nominalismo ou concepção individualista da sociedade. [...] 3. A afinidade com a indução, verificacionismo e incrementalismo. [...] 4. A conexão de uma (falsa) dicotomia de fatos e valores com um falso juízo de value-freedom [isto é, neutralidade em relação a valores]. [...] 5. A proeminência de equipes de pesquisa e a multiplicação de centros ou instituições de pesquisas sociais aplicadas" (op. cit.:139-45).

Para Mills, por outro lado, "as características intelectuais do empirismo abstrato mais importante são a filosofia da ciência adotada [...], a forma pela qual a adotam, e como dela se utilizam". Isto é, eles parecem mais preocupados com a "filosofia da ciência", embora Lazarsfeld rejeitasse este termo, e com o método que empregam do que mesmo com os próprios estudos sociais que realizam. Finalmente, gostaria de explicitar algumas referência que Mills faz a Lazarsfeld e sua concepção da sociologia, e a defesa da adoção do empiricismo abstrato ou positivismo instrumental (ou simplesmente de sua concepção de filosofia da ciência). É Mills quem transcreve e crítica Lazarsfeld:

"A transição (das ‘filosofias sociais’ e ‘observador individual’ para a ‘ciência empírica plenamente organizada’) é habitualmente caracterizada por quatro fases no trabalho dos que se ocupam do assunto: 1. Há, primeiro, a transferência da ênfase, que passa da história das instituições e idéias para o comportamento concreto do povo. [...] 2. Há, em segundo lugar, uma tendência não para estudar um setor apenas das questões humanas, mas para relacioná-los com outros setores. [...] 3. Há uma terceira preferência pelo estudo de situações sociais e problemas que se repetem, e não dos problemas que ocorrem apenas uma vez. [...] E, finalmente, há uma ênfase maior sobre os acontecimentos contemporâneos do que sobre os acontecimentos sociais históricos. (op. cit.:71-2)

É evidente que Mills contesta algumas das afirmativas de Lazarsfeld, aliás, diria, de forma acertada. Com relação ao primeiro ponto, ele lembra que "comportamento concreto do povo não é unidade de análise", e há o risco de se cair no "psicologismo"; com relação ao segundo, ele lembra que "relacionar", para os empiricistas abstratos significa "limitar-se ao estatístico"; com relação ao terceiro, o significado que tais "repetições" possuem é, por exemplo, o simples fato de muitos votarem etc.; e, finalmente, com relação à última, o que se dá é uma ênfase não-histórica e não-comparativa, que apenas resulta de (questionável) opção epistemológica. (ibidem)

Daí decorrem dois problemas graves relacionados com a forma de Lazarsfeld operar dois conceitos caros à sociologia, isto é, "teoria" e "dados empíricos". Assim, teoria passa a significar "variáveis úteis na interpretação das verificações estatísticas"; e "dados empíricos" "limitam-se aos fatos e relações estatisticamente determinados que são numerosos, repetíveis e mensuráveis" (op.cit.:76).

Considerações Finais

Neste artigo, minha primeira preocupação foi a de traçar, ainda que brevemente, um panorama geral do positivismo, em especial, a partir de quatro correntes ou escolas, ou alguns dos autores a elas vinculados ou relacionados, identificadas como positivistas. Com isso, foi possível organizar e, por assim dizer, consolidar material de leitura e estudos acerca do tema e possibilitar ao leitor fazer uma ponte com as obras manuseadas. Por outro lado, desejo oferecer uma idéia de conjunto sobre um aspecto da filosofia da ciência que é muito criticado. Aliás, da mesma forma como alguns dos comentadores do positivismo, aqui referenciados, ressaltaram, desde meu curso de graduação em ciências sociais sempre ouvi falar do positivismo de forma pejorativa e, já na pós-graduação, observando o exame de algumas teses, às vezes, quando se exigiam procedimentos metodológicos mais rigorosos de estudantes, ouvi, em defesa desses, até mesmo de alguns orientadores, que tal exigência é "positivista". De fato, era como se estivessem exigindo a adoção de um procedimento ultrapassado ou algo similar.

Contudo, se se pode criticar ou apontar as falhas e lacunas, em especial, creio, do positivismo de tradição francesa, de Comte e Durkheim, há de se reconhecer a importância dos dois no sentido não de criar neologismos, que passaram a denominar um novo ramo do conhecimento humano e conceitos, mas, sobretudo, no de procurar torná-lo realmente uma ciência, no sentido mais exato da palavra, isto é, com objeto próprio e métodos rigorosos, científicos, enfim, que permitam a investigação sobre o social. Sim, digo métodos, e não método. Pois, parece-me, não há um método apenas. Nem sei se tais métodos devem ser modelos virtuais dos métodos, ou método, empregados nas ciências naturais. Ademais, essa é uma discussão que permeia a filosofia da ciência e, ainda que muito parcialmente, este trabalho. Por outro lado, como nos lembra Merton (1992), é preferível que as ciências sociais tenham vários métodos, que disputem entre si e que façam com que elas estejam em aparente "crise crônica", do que apenas um, que se imponha autoritariamente sobre os pesquisadores e as investigações científicas na área social, em outras palavras, obnubilando "a imaginação sociológica", como tanto receava ou "denunciava" Mills. É claro que isso não implica a feitura de pesquisa social de qualidade duvidosa. Isso ocorre independentemente do método, da metodologia utilizada ou, ainda, da teoria em que a pesquisa se apoia, o que realmente conta é a qualidade de quem a realiza.

Então, como dizia, se cabem tais ressalvas em relação a Comte e Durkheim, assim como o reconhecimento necessário, apontado, quanto ao "positivismo instrumental" ou "empiricismo abstrato" de Lazarsfeld, diria que, apesar das observações e considerações de Boudon (1993), tendo a concordar com as críticas de Mills, formuladas ainda em 1959, o que poderia fazer com que elas tivessem sido superadas pelos avanços alcançados nas pesquisas sociais aplicadas, em especial nos próprios Estados Unidos. Na verdade, embora sua elaboração, particularmente a reflexão que se faz do positivismo instrumental, se insira no campo da filosofia da ciência, parece-me que se trata mais de discutir sobre instrumentos e práticas operacionais de pesquisa do que acerca de um método científico, mais quanto ao modo de operacionalizar conceitos e testar hipóteses, enfim, do que sobre epistemologia das ciências sociais. Lembro, por exemplo, que Bryant (op. cit.:141) já chamou a atenção para o fato de que Popper procurava convencer alguns pesquisadores de que adotassem "seu" modelo "hipotético-dedutivo", pois considerava-o compatível com o "incrementalismo", com o qual o positivismo instrumental teria afinidades. Se assim fosse, possivelmente poderíamos, ainda mais, caracterizar o positivismo instrumental como um meio, quantitativo e/ou estatístico, para se realizar pesquisa social científica.

Quanto ao Círculo de Viena e a Popper, entretanto, assim acredito, a questão está realmente no âmbito da filosofia da ciência. Como procurei mostrar, há, dentre outras, uma diferença entre eles, pois enquanto os positivistas lógicos defendiam a utilização do método indutivo, Popper considerava a necessidade de se usar o hipotético-dedutivo. Da mesma forma, posso ainda apontar outra distinção, que provoca uma discussão relevante para a filosofia das ciências, qual seja: enquanto os primeiros defendiam o "princípio da verificabilidade" - para atestar se uma proposição tinha ou não significado, isto é, se era ou não científica, observando se os dados empíricos corroboravam a sua ocorrência - ou mesmo em sua formulação mais branda dos graus de confiabilidade e testabilidade, de Carnap, Popper partia de premissa, perece-me, inversa, mas que, no entanto, tinha o mesmo objetivo, com seu "princípio da refutabilidade" de hipóteses.

Uma última consideração: refiro-me ao "abuso" que explicitava Popper, por ser chamado de positivista por Habermas e outros, procede se, para ele e para os que assim o estigmatizavam, ser positivista significava a adoção da filosofia positivista de Comte ou do modelo "unicausal" de Durkheim, associado ao modelo filosófico Comteano. Mas, parece-me que, se positivista significa a adoção de procedimentos científicos rigorosos com os quais se buscam evidências através do levantamento e da observação de dados empíricos, para testar hipóteses, quer através do método indutivo quer por meio de método hipotético, ele não deixa de sê-lo. O certo é que tanto Popper quanto os positivistas lógicos, antes de mais nada, estavam preocupados em demarcar claramente o caráter científico das ciências sociais, e diferentemente de Comte e Durkheim, por motivos que devem parecer evidentes, sem partir de especulações, tais como o modelo dos três estágios de Comte ou a homogeidade social que resultava na solidariedade mecânica de Durkheim.

Bibliografia Citada

Aron, R. (1982). As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes/Brasília: Editora da Universidade de Brasília.
Baudouin, J. (1992). Karl Popper. Lisboa: Edições 70.
Benton, T. (1977). Philosophical Foundations of the Three Sociologies. London, Henley and Boston: Routledge & Kegan Paul.
Boudon, R. (ed.) (1993. "Introduction". Paul Lazarsfeld. On Social Research and its Language. Chicago and London: University of Chicago Press.
Bryant, C. (1985). Positivism in Social Theory and Research. Hampshire and London: MacMillan. Carnap, R. (1983). "Testabilidade e Signficado". In: Schlick-Carnap. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os pensadores).  
Comte, A. (1983). "Curso de Filosofia Positiva", "Discurso sobre o Espírito Positivo" e "Discurso sobre o Conjunto do Positivismo". In: Comte. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores). Durkheim, E. (1983). "As Regras do Método Sociológico". In: Durkheim. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os pensadores).  
Giddens, A. (1978). "O Positivismo e seus Críticos". In: T. Bottomore e R. Nisbet (org.). História da Análise Sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.  
Halfpenny, P. (1982). Positivism and Sociology: Explaining Social Life. London: George Allen & Unwin.  
Hegenberg, L. (1976). Etapas da Investigação Científica: leis, teorias e métodos. Vol. 2. São Paulo: EFPU/EDUSP.  
Horgan, J. (1998). O Fim da Ciência. Uma discussão sobre os limites do conhecimento científico. São Paulo: Companhia das Letras.  
Merton, R. (1992). "El análisis estructural en sociología". In: ______. Teoría y estructura sociales. México, D.F.: Fondo de Cultura Ecnómica.  
Mills, W. (1982). A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.  
Pasquinelli, A. (1983). Carnap e o Positivismo Lógico. Lisboa: Edições 70.  
Popper, K. (1980). A Miséria do Historicismo. São Paulo: Editora Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo.
______ (1978). Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/Brasília: Universidade de Brasília.  
Sauer, W. (1996), "Círculo de Viena". In: W. Outhwaite et at. (orgs.). Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

Nenhum comentário: