A reconstrução de Berlim |
O texto abaixo consiste num excerto da introdução do novo livro de Frédéric Vandenberghe, cujo título (provisório?) é Bhaskar etc.: Essays in Realist Social Theory. Sua proposta geral é a de um “realismo metacrítico” (uma elisão entre o “realismo crítico” e a “filosofia da metarrealidade” de Roy Bhaskar), ou um ponto de transição entre a teoria crítica e a desconstrução, por um lado, e a reconstrução, por outro. Embora tenha cá minhas dúvidas de quão bem-vinda será essa proposta por grande parte dos realistas (por Bhaskar, em particular), a necessidade dessa transição já havia sido sugerida pela canadense Carrie Hull (The Ontology of Sex). Falta a Hull, entretanto, o fôlego teórico e filosófico de um Vandenberghe e que possibilite transformar essa intuição em um programa de pesquisa consistente. Ou, talvez, lhe sobre aquilo que, num momento de raro mau-humor, Frédéric poderia atribuir à sua inserção nos “Estudos”. Pouco importa. Para mim, que também me interesso por uma crítica aos pós-ismos que não jogue fora o bebê com a água do banho, o trecho em questão revela não apenas o tipo de contribuição que uma abordagem realista poderia trazer para a teoria social, mas também, por meio de sua ironia fina, o prazer de pensar e de escrever que deveria orientar o trabalho de qualquer intelectual. A “traíção” do texto em inglês foi feita por mim. [Cynthia Hamlin]
Por Frédéric Vandenberghe
Ao mesmo tempo em que nossos sociólogos neoclássicos apresentavam suas teorias gerais do mundo social, o posmodernismo apareceu na cena e tornou-se a febre do fin de siècle. As raízes do posmodernismo encontram-se na crise intelectual do marxismo ocidental. Como sintoma de seu tempo, expressa uma descrença geral nas filosofias da história que prometem um futuro radiante e, no entanto, são cúmplices da perpetuação do presente. O posmodernismo recusa toda referência a “mecanismos causais” subjacentes que produzem os fenômenos, a “estruturas profundas” que controlam os eventos ou a “grande narrativas” que dirigem a história. Ao evitar a profundidade e promover a superficialidade, prende-se à superfície das coisas e textos, coisas-como-textos, e vagueia-se por lá. Apesar de sua denúncia reiterada de todos os discursos de autoridade, baseia-se fortemente em uma série de injunções antifilosóficas que vão de encontro ao espírito do realismo crítico: “Não deveis tecer grandes narrativas históricas, construir grandes retratos societais, entreter grandes ideais utópicos ou pensar profundos pensamentos filosóficos” (Hoy and McCarthy, 1994: 218).[1]
Com o benefício da retrospecção, agora podemos entender o posmodernismo, que começou como um movimento na arquitetura e nas artes (Connor, 1989), como uma tentativa sistemática de trazer questões estéticas de representação para a filosofia, em geral, e para a epistemologia, em particular. Quando esse tema estético, que considera toda representação como uma versão possível da realidade, é estendido para as ciências, a ontologia desliza para uma “filosofia decorativa”[2]: a realidade não é um pressuposto da ciência, mas um ‘pro-jeto’ e um ‘pro-duto’ de suas representações. Assim como ocorre nas artes, considera-se que os discursos científicos (textos sem autores) “performam” as realidades que supostamente descrevem. De acordo com os posmodernistas, por baixo do discurso, fora do texto, nas entrelinhas, não há nada, senão texto. Nada além de textos, discursos e signos que proliferam e se disseminam. Desconstruída e destruída, a realidade (sem aspas) é textualizada e reaparece como “realidade”. De acordo com os aftermodernists a realidade é, no melhor dos casos, uma Ding an sich [coisa-em-si] a que ninguém tem acesso; no pior, uma reificação do discurso que se apresenta como natureza e, dessa forma, proíbe a proliferação de outros discursos e a realização de outros mundos.
Neste ponto, onde o realismo é rejeitado como uma ordem restritiva às margens da criatividade, o estético torna-se político. Para os posmodernistas, toda afirmação científica e filosófica deve ser lida e decodificada como uma afirmação política. Isso pode não ser sempre uma postura consciente dos próprios autores, entretanto ela é apropriada pelo radical do campus a fim de exibir seu progressismo e sua correção política. Nas leituras textuais, politizadas, da “realidade”, sempre há um subtexto político que é reprimido e que pode ser encontrado nas margens, possibilitando que se releia o cerne do texto de uma perspectiva oposta. Os posmodernistas saúdam a proliferação de textos como um ato transgressor de liberação. Quando a inclusão universal é recodificada como uma forma de exclusão da particularidade, a ‘jaula de ferro da razão’ começa a desmontar nas emendas. Visões alternativas da realidade revelam mundos diferentes daqueles que as versões hegemônicas da realidade permitem. Quando a hegemonia é então invocada como uma força repressiva que inibe a proliferação de mundos, a injunção só pode ser a de se recusar o Um, liberar os Muitos e dar voz ao Outro da Razão.
Muito frequentemente, as leituras politizadas que os posmodernistas fazem da prática científica levam a uma confusão entre os registros político e filosófico – como se a correção política pudesse se sobrepor a correção epistêmica! Quando os textos científicos são lidos como qualquer outro gênero, a distinção entre ciência e literatura entra em colapso. Do ponto de vista do realismo crítico, a confusão de registros e de gêneros tipicamente inverte epistemologia e ontologia. Em vez de considerar visões alternativas da realidade como diferentes visões da mesma realidade, a distinção elementar entre descrições do real e aquilo a que elas se referem é desconstruída, com o resultado de que o elo que liga as interpretações à realidade é rompido e o relativismo pode proliferar à vontade. Qualquer coisa vale. Tudo é uma questão de interpretação (e, como Nietzsche complementaria, “interpretações de interpretações”). O posmodernismo não apenas dispensa uma teoria da [verdade como] correspondência, ele também exclui explicitamente as teorias discursivas da verdade. Sem um compromisso com o diálogo, a discussão e o consenso, a ‘fusão de horizontes’ que marca toda tentativa genuína de compreensão é negada. Entre diferentes comunidades linguísticas, não há ponte. Apenas diferença, incomunicabilidade e incomensurabilidade. Se Habermas e Giddens introduziram a hermenêutica nas ciências a fim de delimitar o âmbito das ciências naturais, os posmodernistas universalizam a hermenêutica para além dos seus limites, com o resultado de que as ciências naturais são agora vistas como uma sub-área das humanidades.
Não obstante as aparências, o ‘pós’ de posmodernismo, pós-estruturalismo e outros pós-ismos não é tanto um marcador temporal, mas espacial. O prefixo indica o que acontece à “teoria francesa” (Cusset, 2005) quando ela atravessa o Atlântico e a filosofia decorativa adentra os departamentos americanos de literatura comparada. Quando o mesmo processo de deslocamento ocorre nas ciências sociais, os vários pós-ismos da filosofia dão origem a uma rapsódia de investigações pós-disciplinares acerca do nexo poder/discurso – os chamados ‘Estudos’, que entram em competição direta com as ciências sociais e podem mesmo desarranjá-las (como evidenciado pela crise da antropologia). O impacto do marxismo cultural de Gramsci e da genealogia de Foucault nos chamados ‘Estudos’ não podem ser subestimados.[3] Seja como estudos culturais, de gênero, de raça ou qualquer outro “Estudo” derivado de um pós-ismo, como os estudos subalternos, diaspóricos e pós-coloniais, por ex., a variedade de sociologias e antropologias decorativas geralmente exploram e expõem a conexão entre discursos, poder e práticas. Essa combinação de ênfase estruturalista em discursos, genealogia foucauldiana e práticas wittgensteinianas tornou-se tão comum que ela poderia ser considerada como o “novo consenso ortodoxo”. Por meio de uma generalização e concatenação das leituras de suspeição de Marx, Nietzsche e Freud (ou Bourdieu, Foucault e Lacan), os discursos, os textos e as imagens são reconduzidos à realidade de base da violência que expressam, assim como da que escondem. Representações da realidade na linguagem não propriamente reprimem, mas produzem os sujeitos cognoscentes e os objetos de conhecimento enquanto objetos que são “aclamados” por discursos que os trazem à existência e assujeitados pelo trabalho sutil da governamentalidade e do poder. O ponto central do exercício interpretativo dos ‘Estudos’ parece consistir em uma exposição de como classe, gênero e/ou raça aparecem e se intersectam nas rachaduras e fendas do discurso. Uma vez que o subtexto do poder é des/coberto, o autor geralmente revelará pistas de outras vozes que esperam ser liberadas das margens do texto. Por meio da identificação com o outro excluído que pressiona contra o texto, o analista pretende subverter seu centro e, dessa forma, apressar a morte do Iluminismo. O impulso para liberar o Outro da Razão e mover-se para além das armadilhas do pensamento identitário não é, no entanto, necessariamente regressivo. As revelações sobre alteridade efetuadas por Derrida, Levinas e Judith Butler estão em sintonia com as lembranças de Adorno acerca da mimesis. Há, aqui, uma voz genuinamente ética que deve ser ouvida (Honneth, 2000: 133-170). Mas, frequentemente, a indignação moral e a denúncia política que têm se tornado a marca dos ‘Estudos’ funcionam apenas como uma justificativa velada do ressentimento e da raiva. Neste sentido, os chamados ‘Estudos’, embora venham de uma tradição diferente (os estudos culturais britânicos e o pós-estruturalismo francês), podem de fato fingir continuar a teoria crítica, embora sem a sofisticação filosófica da primeira geração da Escola de Frankfurt, do compromisso moral da segunda e do compromisso com a análise sociológica da terceira.
Referências
CONNOR, Steven. 1989. Postmodernist Culture: An introduction to theories of the contemporary. Cambridge: Basil Blackwell Inc.
CUSSET, F. (2005) French Theory. Barcelona: Editorial Melusina.
HONNETH, Axel (2000). Suffering from indeterminacy: an attempt at a reactualization of Hegel's Philosophy of right : two lectures. Amsterdam: Van Gorcum.
HOY, David C.; McCARTHY, Thomas (1994). Critical Theory. Cambridge, MA: Blackwell.
ROJEK, Chris; TURNER, Bryan (2000) Decorative sociology: towards a critique of the cultural turn. The Sociological Review 48 (4), Nov. pp. 629-648.
VANDENBERGHE, Frederic (2006). L'aftérologie et le décalogue de la déconstruction. X-Alta, v. 9, pp. 195-206.
Notas
[1] Para o Decálogo da desconstrução, veja também Vandenberghe, 2006.
[2] A frase ‘filosofia decorativa’ é adaptada da crítica de Rojek e Turner (2000) à ‘sociologia decorativa’, termo que eles usam para se referir a “uma vertente da estética modernista devotada a uma leitura textual e politizada da sociedade e da cultura”.
[3] Gramsci foi, claro, a referência central de Stuart Hall, assim como de Ernesto Laclau e de Chantal Mouffe. Enquanto Hall é a figura fundadora dos estudos culturais britânicos (que se metamorfoseou em posmodernismo quando chegou aos EUA), Hegemony and Socialist Strategy (não-traduzido e desconhecido na França), que formaliza a lógica da inclusão/exclusão, é considerado o clássico do pós-estruturalismo. O que quer que tenha restado dos estudos culturais originais fundiu-se agora com os estudos sobre governamentalidade. Os estudos de subalternidade indianos também se basearam em Gramsci, mas quando começaram a se misturar com o pós-colonialismo de Said e chegaram à cidade de Nova York deram uma virada posmoderna decisiva.
8 comentários:
Excelente introdução. Deu vontade de mais (risos). Porém, tive a sensação de que, no final, houve o resvalamento para uma posição que apela um tanto para um posicionamento político, uma preocupação com o progressismo e uma leitura reducionista dos "Estudos" como um trabalho velado de ressentidos e raivosos. Quase uma crítica pós-modernista ao pós-modernismo.
sempre me pergunto porque esses 'estudos' nao vao estudar para aprender a ser boa ciencia social...
Cuidado com o infanticídio, Pedro Eduardo, tão bem anotado pela Prof Cynthia.
Oi?
A ultima linha da para pensar:
O herdeiro verdadeiro da teoria critica é o proprio Bourdieu.
De fato, ele continua a teoria crítica, com a sofisticação filosófica da primeira geração da Escola de Frankfurt, do compromisso politico da segunda e do compromisso com a análise sociológica da terceira.
O Autor
Tá rebocado, Frederic, concordo com você.
Bourdieu consegue ser a síntese das várias gerações da teoria crítica. Isso não significa, para mim, que a gente consiga encontrar adequadamente, em Bourdieu, os recursos metodológicos para a apreensão da dimensão ativa (ou construtiva, ou reflexiva - cada um com suas afinidades conceituais eletivas) dos atores sociais na construção social da realidade. Mas que ele sustentou esses compromissos, sustentou.
A introdução desse seu novo livro é muito instigante. Quando ele sai? Ou já saiu? Abraço
Frédéric, eu tenho uma novidade para você: Bourdieu morreu, tadinho.
Muito bom! O final é uma marretada impiedosa.
Giddens, salvo engano, no Em defesa da Sociologia sugere uma correlação entre o declínio da atratividade e da legitimidade da Sociologia nos EUA com a tomada dos departamentos de Humanidades e Ciências Sociais pelos militantes e intelectuais dos vários "Estudos".
Segundo o sociólogo inglês, os últimos suplantaram os fundamentos da disciplina e da atividade cientítica pelas pautas de demandas específicas dos movimentos socias ou questões políticas nos quais se engajam intelectual e politicamente.
A crítica do Giddens também é uma marretada. Ela sustenta que em função dos "Estudos" e o crescimento de sua força acadêmica nas universidades americanas, a Sociologia tornou-se aquilo que os seus detratores sempre afirmaram a seu respeito, isto é, uma pseudociência.
Por último, para Giddens, e, neste ponto, penso ser um diagnóstico certeiro e o melhor de sua crítica, os diversos "Estudos" representam uma ameaça a capacidade unificadora da Sociologia, uma ciência, a meu ver, acolhedora desde sua origem para as diversas ramificações de pesquisa, abordagens teóricas e metodológicas, saberes sem que isso resulte em prejuízdo do sentido forte da identidade da disciplina, sua história e patrimônio. Abraços,
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