Sand, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo, Benvirá, 2011, 573 pp. |
Por Gadiel Perrusi - Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE
Shlmo Sand é historiador e professor da Universidade de Tel-Aviv. Ativista da esquerda israelense, integra a nova escola historiográfica e arqueológica surgida nos anos de 1980, em Israel, que tem revolucionado os estudos científicos sobre o povo judeu, suas escrituras sagradas e, do ponto de vista político, questionado o estabelecimento e a consolidação do Estado de Israel no Oriente Médio.
A Constituição de Israel afirma o direito sagrado dos judeus em ocupar – ou reocupar – grande parte do Oriente Médio em função da promessa divina que lhes fizera Jeová, há cerca de três mil e quinhentos anos. Trata-se da célebre aliança entre Abraão e Jeová sobre a propriedade do território de Canaã, a Grande Promessa confirmada em Isaac, Jacó, Moisés e tantos outros personagens bíblicos, bem como coletivamente ao povo judeu através de inúmeras passagens alternativas.
Na verdade, é isso o que diz a tradição judaica. Tanto quanto, aliás, a própria tradição cristã.
O povo judeu teria sido expulso e exilado do seu país, tendo, portanto, o direito de retornar ao seu antigo território mesmo que tais expulsão e exílio houvessem ocorrido na Antiguidade. O último registro data da revolta de Bar Kokhba, em 132 E.C (Era Comum).
É a famosa Diáspora, a primeira tendo ocorrido sob o império babilônico-persa, a partir do Século VI A.E.C (Antes da Era Comum).
E esse é o fundamento para a criação de um estado etnocentrista como Israel. Um estado-nação “dos judeus de todo o mundo”, no qual somente pode ser cidadão quem puder provar que é judeu.
Os árabes sob a jurisdição israelense, por exemplo, não podem ser cidadãos plenos.
É como se, ad absurdum, nossos indígenas apresentassem à ONU um pedido de reintegração de posse e de soberania sobre todo o território brasileiro sob a alegação de que eles já o ocupavam pelo menos há doze mil anos antes da chegada dos europeus. Com isso, estariam reivindicando a formação de um Estado Nacional indígena - tupi-guarani, tamoio, caetés ou seja lá o que fosse - que deveria se estabelecer soberanamente por estas plagas.
Não importa se Tupã, Guaraci, Jaci ou qualquer outra divindade assim lhes houvessem prometido.
A primeira parte do livro de Shlomo Sand concentra-se nos conceitos de povo, nação e estado nacional tais como a Ciência Política atual vem estatuindo. Nada de novo por aí.
As novidades começam na análise da obra de intelectuais judeus que, ao longo do século XIX e primeira metade do XX, paulatinamente, vêm construindo ou reconstruindo os conceitos de povo e de nação aplicados aos judeus europeus, especialmente os do leste. Tais conceitos formaram o embrião do sionismo e, depois, toda a base filosófica e política do retorno à Eretz Israel, especialmente frente a imperdoável barbárie nazista. Bem como à própria legitimação do moderno estado-nação israelense.
É o que o Autor chama de “A Invenção do Povo Judeu”.
A análise não deixa de ser interessante especialmente pela nossa ignorância da bibliografia judaica de quase duzentos anos. Na verdade, a grande questão subjacente a toda essa exuberante literatura poderia ser resumida numa só expressão: a questão judaica.
Questão, diga-se de passagem, criada, alimentada e envenenada pelo próprio Cristianismo, em especial pela ICR.
E é difícil ignorar que o antissemitismo cristão parte de uma ideia absolutamente original, isto é, que o povo judeu é culpado de “deicismo”.
E, por azar, mataram logo o deus cristão!
Contudo, não temos até ai, muita originalidade científica. São assuntos discutidos largamente em todas as épocas, pelo menos no mundo cristão e, ao que parece, não há muito mais a acrescentar à extensa bibliografia produzida.
Nesse momento, no entanto, entra a nova escola historiográfica israelense. E o restante do livro, mais de sua metade, torna-se simplesmente arrasador.
Em primeiro lugar, com a exposição crítica dos textos bíblicos e do ensino oficial israelense, totalmente baseado na Bíblia. Na verdade, um fundamentalismo mais agudo e entranhado do aquele encontrado nos Estados Unidos da América.
A Bíblia, ─ leia-se, o Antigo Testamento ─ em quase todos os sentidos, tinha razão. Pelo menos, para o Ministério da Educação de Israel.
Segue-se, no livro de Sand, a desconstrução das Sagradas Escrituras nos pontos mais significativos, em especial na sua teologia monoteísta exclusivista, criada por uma elite intelectual judaica sob o domínio babilônico e fortemente influenciada pela cultura persa e, depois, pelo helenismo.
Um monoteísmo tardio, portanto.
Nos relatos históricos, também. E não foram poupados os patriarcas judeus como Abraão, Jacó, Moisés, Josué, entre os mais votados fundadores dos antigos judeus (que o Autor prefere chamar de “judaenses”, para distingui-los dos modernos judeus).
Nem, tampouco, os ícones reais mais preciosos como, por exemplo, Davi e Salomão, criadores de um imaginário Reino Unificado que jamais teria existido. Pequenos e insignificantes monarcas de um pequeno e insignificante reino montanhoso como Judá.
Reis glorificados, cerca de 600 anos pos factum, pelos escritores bíblicos do exílio e do pós-exílio babilônico e assim repassados a toda a cultura posterior, inclusive e, principalmente, à nossa (V. Finkelman, Israel & Silberman, Neil Asher – A Bíblia não tinha razão - São Paulo, A Girafa, 2003).
Mitos, aliás, de um passado pouquíssimo glorioso. Salvo, fato excepcional, pela produção de uma riquíssima literatura histórico-teológica, cristalizada na Bíblia, e que se enraizou nos três sistemas monoteístas da atualidade, como se fosse uma verdadeira lavagem cerebral.
Contudo, um dos mais importantes objetos de estudo do livro consubstancia-se em outro mito recorrente entre os judeus modernos: a expulsão e o exílio da antiga Eretz Israel, isto é, as sucessivas diásporas.
Trata-se do mito do “judeu errante”, punido, segundo os cristãos, pelo assassinato de Jesus Cristo. Mito criado pelos cristãos e interiorizado pelos judeus modernos.
A desmistificação do “judeu errante”, na verdade, torna-se o centro da argumentação de Shlomo Sand. A jornada histórica em busca da autoconsciência do povo judeu é, a meu ver, brilhante do ponto de vista da erudição e da argumentação científica.
Em suma, não houve “diásporas”. Os milhares, ou milhões, de judeus espalhados pelo mundo, do norte da África com os bérberes, passando por toda a bacia mediterrânea até os confins do leste europeu, não passavam, de fato, de convertidos ao monoteísmo judaico que, especialmente a partir do regime hasmoneu (Século II A.E.C.), tornara-se missionariamente agressivo.
Pelo menos até o Século IV E.C., o judaísmo era muito mais numeroso e influente do que o cristianismo que só ultrapassa o primeiro, em número de fiéis, quando Constantino o escolhe como religião oficial do Império.
Em suma, o que tais grupos partilhavam era apenas a fé monoteísta do judaísmo e práticas litúrgicas comuns embora bastante diferenciadas.
Nesse caso, a bibliografia apresentada é, absolutamente, irrefutável.
A ênfase ao grupo dos khazares, por exemplo, na formação do “povo iídiche” (milhões de indivíduos), que sobreviveu por mais de quinhentos anos durante a Idade Média nos arredores de Kiev, não deixa de ser iluminadora para compreensão da consciência judaica ocidental.
O mito do “judeu errante” também determina o sentimento identitário dos judeus como povo e nação. Povo geneticamente herdeiro dos “judaenses”, proporcionando-lhe, portanto, uma identidade étnica.
Foram gastos, aliás, milhões de dólares em Israel em pesquisas genéticas a procura do “gene judeu”. Ironicamente, os judeus encontram-se com os nazistas na crença de uma “raça” de sangue.
Até o momento, o tal gene ainda não foi encontrado!
O brilhante estilo literário e a clareza da exposição científica da pesquisa de Shlomo Sand nos conduzem com serenidade, e quase aceitação, a um bloco de conclusões.
O Estado de Israel foi construído pela aceitação jurídica de mitos antigos, de mais de dois mil anos, sancionados pela ONU.
Os modernos judeus não são geneticamente herdeiros dos “judaenses”, isto é, dos antigos judeus. Tanto quanto os egípcios atuais nada têm a ver com Quéops, Quéfren e Miquerinos. Nem tampouco os italianos têm qualquer filiação étnica com Júlio Cesar, os franceses com Asterix - o gaulês - ou os gregos cristãos ortodoxos com Sócrates, Platão e Aristóteles.
Os modernos judeus têm em comum entre si apenas uma filiação de fé religiosa, originada do judaísmo rabínico tardio, construído a partir da E.C.
Por sob as aparências de um Estado Democrático de Direito, Israel seria, substancialmente, uma Teocracia disfarçada. A cidadania é restrita aos judeus, definidos como tal pelo rabinato que controla o seu Ministério do Interior. Consequentemente, a cidadania é derivada da ideologia religiosa dos sacerdotes. De fato, não há em Israel o Registro Civil, inexistindo o jus sanguinis e o direito de nascimento no território. Por isso mesmo, os árabes palestinos, mesmo tendo nascido em Israel, não são considerados cidadãos israelenses.
O Estado de Israel apresenta uma fragilidade política, inerente à sua própria formação, incompatível com um Estado Democrático de Direito. Ele exerce um colonialismo interno sob a população árabe residente e não pode, a longo prazo, se legitimar e aspirar à paz no Oriente Médio, enquanto não modificar suas bases ideológicas e políticas, tornando-se um Estado plural laico em que possam conviver, em pé de igualdade, cidadãos com ideologias religiosas diferentes.
A conclusão básica de Shlomo Sand é simples: Israel está a caminho de um desastre político, com gravíssimas repercussões internacionais, e sua sobrevivência, para além dos mitos fundadores, somente poderá ser assegurada com sua transformação num Estado Judaico-Palestino.
36 comentários:
Bravo!
Se a principal função de uma resenha é despertar o desejo de ler o livro resenhado, o texto de Gadiel é um sucesso!
Mas já a resenha em si é um excelente texto. Parabens por ela.
Só para enfatizar, antes que venham nos acusar de anti-semitismo: o autor é judeu. Aliás, a idéia de um estado bi-nacional na Palestina não é estranha ao que de melhor a intelligentsia judaica produziu no século que passou: essa era a idéia que defendia, por exemplo, uma Hannah Arendt, só para citar um nome.
E talvez devêssemos pensar mais detidamente sobre o caráter teocrático do estado de Israel e as exigências de um estado democrático. Acho que há alguma coisa a mais do que mero "disfarce"... Um livro como esse, escrito por um historiador judeu, cidadão do estado de Israel, professor da Universidade de Telavive (é assim que escrevo, por preguiça de conferir onde figuram os apóstrofos...), mostra que há coisas preciosas dentro daquela sociedade. Meu medo é que sejam um dia finalmente sufocadas pelos iracundos fundamentalistas que, francamente, têm um modo de pensar que é nazista... Há sombrias analogias entre o "Grande Israel" e o "espaço vital" hitleriano...
Bem lembrado, Lulu. E, vale dizer, Hannah Arendt inspirada por outro grande gigante do pensamento judaico: Martin Buber. Da geracão mais nova, do que talvez pudéssemos chamar de nova esquerda israelense, temos ainda o excelente Politicídio, livro de Baruch Kimmerling (falecido há cerca de dois anos). Fiquei de emprestar meu exemplar a Gadiel, na esperança de que ele nos brinde com outra excelente resenha.
PS. Adorei o uso do conceito de colonialismo interno para dar conta das relações entre israelenses e palestinos.
Excelente resenha sobre um livro que com certeza merece ser lido por interessados no tema.
Junto-me a vocês: a resenha de Parrusi pai provoca o desejo urgente de comprar o livro.
E acho que é um livro que merece ser lido também pelos que não estão interessados no tema, senão é o tema que os engole!
O que é bastante compreensível, mas lamentável, é que é sempre em Israel que se vê mais gente lúcida a respeito de todo esse imbróglio. Todos esses mitos, articulados à culpa pelo nazismo, terminam por impregnar demais aqueles que não vivem a colonização interna de Israel. Digo que é lamentável, porque Israel é um problema do mundo - não apenas dos israelenses e árabes. Sem contar que, quando não se é judeu, o direito à crítica é praticamente quase impossível. Por exemplo, se Lulu-Cibalena estivesse na França, seria considerado um antissemita de carteirinha - com essa aproximação entre Israel e o nazismo.
Espero que Perrusi pai brinde o Cazzo com mais uma resenha. Abraço
Clap, clap, clap, esse é meu papai :) Baita resenha, ainda mais sobre um assunto delicadíssimo.
Outro judeu que critica duramente a política do Estado de Israel é Marc H. Ellis, teólogo, vejam vocês, do judaísmo.
O vídeo abaixo é acachapante:
http://www.youtube.com/watch?v=TOYwzFz441c
Acho muito interessante a tese da constantinização do cristianismo. Israel seria assim a constantinização do judaísmo -- perda do sentido do exílio e da profecia (belo, mui belo)
E o PT seria a constantinização da esquerda brasileira (ruá, ruá, ruá)... brincadeirinha...
Na contra-corrente este é um livro que não li e não gostei. Meus comentários têm por base a resenha apresentada no CAZZO e outra que li há algum tempo, não me lembro mais aonde, e me fez sentir pelo referido livro, na época, uma profunda aversão. A tese de que o "povo judeu" é uma invenção, de que o judeu de hoje não é um descendente de Abrahão etc parece-me trivial e irrelevantemente correta para a conclusão do Autor: a defesa de um Estado Bi-Nacional. Se o "povo judeu" é uma invenção, o "povo palestino" o é ainda mais - aliás, muito, muito, muito mais! Se (segundo o Autor) o Estado de Israel não pode se viabilizar em razão de ser o Estado de um povo inventado, o que dizer então de um Estado de dois povos inventados que se odeiam! Há dois grupos de problemas da maior relevância para os quais tudo o que o livro discute parece-me completamente irrelevante. O primeiro diz respeito a problemas que nada têm a ver com a questão palestina: trata-se do fato de não haver em Israel o casamento civil, de haver uma casta de ortodoxos que são sustentados pelo Estado sem precisar trabalhar e um sistema educacional especial para os filhos desse ortodoxos, financiado pelo Estado, no qual não se ensina ciências nem matemática. Israel corre o risco de se inviabilizar econômica e socialmente a médio prazo se não puder dar alguma solução razoável para esses três problemas, e a defesa de um estado bi-nacional não nos ajuda a nos mover um milímetro no que se refere a isto. O segundo grupo de questões diz respeito à questão palestina e, nesse particular, a única solução que está em pauta é a solução dois-estados. Um Israelense, outro Palestino. Isto envolve basicamente resolver três problemas: fronteiras, jerusalém (divide ou não?) e refugiados. No Encontro de Campi David em 2000 (ou 1999 - minha memória não está lá essas coisas) os palestinos perderam uma oportunidade de ouro para resolver este problema - aliás, as lideranças palestinas não perdem uma oportunidade de perder uma oportunidade. Na ápoca era fácil. Agora ficou difícil. Insistir em Estado Bi-nacional é desviar energia da solução dois-estados. A mim ,particularmente, que acabo de chegar de Israel, a proposta de um estado bi-nacional soa-me simplesmente ridícula. Seria como pretender que Brasil e Argentina fossem um só país - uma Brasiltina -, com um único presidente, um único congresso etc. Contesto também a afirmação de que os árabes são cidadãos de segunda classe em Israel. Não lhes é vedado estudar, nem trabalhar, o casamento entre eles não tem validade civil mas não sei se isto traz alguma implicação importante e, por não servirem exército, não desfrutam de alguns privilégios concedidos a quem serve o Exército - eu particularmente abriria mão desses privilégios para não ter que passar três anos servindo o Exécito. Não há árabe algum querendo sair de Israel (apenas entrar) e, em Israel, vivem bem melhor do que seus compatriotas dos países árabes - quem negaria isto? No mais, no dia em que algum escritor palestino, de alguma Universidade palestina, puder escrever um livro com o título "A invenção do povo palestio", sem ser molestado, Israel e a Palestina estarão muito mais próximos de um acordo de paz.
Cynthia me alertou que eu invadi uma discussão interessantíssima com um post de humor duvidoso. É verdade. Pensei que o post do professor Gadiel (meu mestre na Economia e na pós de sociologia) e pai de Artur Perrusi (nem sempre as coisas saem como desejamos) já estava no Cazzo havia uma semana. É a correria, professor. Mil perdões. O post que eu havia colocado no Cazzo volta em outro momento. Jonatas
Renan,
Embora simples colaboradora do Cazzo, penso que os editores concordam comigo quando digo que sua participação é mais do que bem-vinda, já que um debate propriamente dito só existe quando há divergências. Dito isto, acho que vou discordar de você em quase tudo, com todo respeito. Mas vamos por partes.
Quando você diz “não li e não gostei” e que as resenhas que leu fizeram-no sentir profunda aversão pelo livro em debate, penso que está exprimindo um dos traços complicados das polêmicas em torno de identidades, qual seja o da invasão potencial de identificações apaixonadamente polarizadas. Sua interpretação sobre as teses do autor em torno da invenção do povo judaico, por exemplo, aparece imediatamente em oposição à invenção do povo palestino, como se se tratasse, para o autor, de legitimar uma identidade – a palestina – contra outra – a judaica. Ora, sócio-antropologicamente, as identidades são todas inventadas, socialmente construídas e, sua uma é mais antiga do que a outra, isso não é um critério necessariamente válido para legitimar que a mais antiga colonize a mais nova. Afinal de contas, se é evidente que um “povo palestino” não existia antes dos conflitos árabo-israelenses, não é menos evidente que as populações árabes daquele território otomano indiviso, nasciam e viviam na Palestina antes da criação de Israel. Utilizando um argumento do professor Gadiel Perrusi, podemos dizer que os povos pré-colombianos do que hoje se chama Brasil têm direito histórico sobre o território, mas isso não pode legitimar que descendentes desses povos resolvam que o Brasil transforme-se num Estado-nação que expulse e/ou colonize o resto da população; muito menos em nome de uma identidade fundamentada religiosa e mesmo “racializadamente” – já que um Estado-nação moderno (como é o caso de Israel) busca sua fundamentação em critérios secularizados.
No que diz respeito à primeira ordem de problemas israelenses que você elenca, concordo que o poder dos ortodoxos na ordem sócio-política de Israel é extremamente grave para a viabilidade desse Estado-nação. E é exatamente por isso que trabalhos como os de Schlomo Sand são de extrema importância, já que eles põem em questão, com métodos da nova historiografia, as “verdades” transcendentais dos ortodoxos que tanto sufocam a vida de Israel. Ou seja, ao contrário de você, estou convencida de que intelectuais israelenses e judeus desse calibre podem contribuir enormemente para a solução dessa ordem de problemas. Quanto à melhor solução para o conflito palestino-israelense, parece-me que o fundamental não é decidir entre um Estado bi-nacional ou dois Estados distintos, mas construir princípios e instituições que reconstruam a capacidade de viver juntos desses povos para além de “identidades mortíferas”, como bem diz o escritor franco-libanês Amin Maloouf sobre essa temática tão contemporânea e que não é um triste privilégio dos palestinos e dos judeus.
Finalmente, defender a política israelense a partir da comparação com a situação dos Estados-nações árabes não me parece correto: o opressão do outro não pode justificar que eu seja opressiva. Abraço, Tâmara
Tâmara,
O cerne de nossa discordância está na seguinte passagem da resenha:
“É como se, ad absurdum, nossos indígenas apresentassem à ONU um pedido de reintegração de posse e de soberania sobre todo o território brasileiro sob a alegação de que eles já o ocupavam pelo menos há doze mil anos antes da chegada dos europeus. Com isso, estariam reivindicando a formação de um Estado Nacional indígena - tupi-guarani, tamoio, caetés ou seja lá o que fosse - que deveria se estabelecer soberanamente por estas plagas.”
Diferentemente do Prof. Perussi, penso que esta metáfora da “reintegração de posse” não se aplica ao Estado de Israel. Israel não foi construído reivindicando fronteiras estabelecidas por supostos ancestrais – isto não fazia parte do projeto sionista. Na verdade, o Estado de Israel nem precisava ser construído necessariamente no Oriente Médio – originalmente a idéia era a Argentina. Se a “reintegração de posse” fosse o móvel de Israel, ele teria reivindicado Hebron, onde estão enterrados Abrahão e Sara. Mas, mesmo que fosse aplicável a metáfora da reitegração de posse, não vejo o sentido em discutir isto passados mais de 60 anos. A legitimidade de Israel não está mais em questão – Israel não tem mais que justificar sua existência, tem apenas que bater (isto mesmo, bater, se tiver meios para isto) em quem a coloca em risco. Acho curioso o fato de nenhum comentário mencionar a presença de grupos terroristas (na Faixa de Gaza e na Cisjordânia) EXPLICITAMENTE empenhados em destruir o Estado de Israel. Na ausência dessa ameaça, Israel poderia desmantelar os assentamentos na Cisjordânia, como, aliás, o fez na península do Sinai – deixando para os egípcios cidades inteiras por eles construídos durante a ocupação pós guerra de 67. Veja-se o caso de Sharm El Sheik. Era um favelão. Israel transformou na principal atração turística da região, saiu de lá depois do acordo de paz com o Egito e hoje é um dos principais pólos turísticos do país.
(continua...)
Você afirma que a principal contribuição do livro está em por em questão as “verdades transcendentes” dos ortodoxos. Colocar em questão as “verdades transcendentes” dos ortodoxos parece-me um exercício interessante mas inteiramente supérfluo porque, se houver acordo de paz (como poderia ter havido em Campo David se Arafat não fosse um psicopata) o governo israelense desmantela assentamentos de ortodoxos (com suas verdades transcendentes e tudo).
Finalmente, quero retomar uma afirmação sua que contradiz muito do que diz a resenha e os comentários que a seguem. Você diz:
“Quanto à melhor solução para o conflito palestino-israelense, parece-me que o fundamental não é decidir entre um Estado bi-nacional ou dois Estados distintos, mas construir princípios e instituições que reconstruam a capacidade de viver juntos desses povos para além de ‘identidades mortíferas’”.
Primeiro: toda a argumentação do livro desemboca na defesa de um estado bi-nacional (daí minha profunda repulsa pelo livro), se entendo bem o resenhista e vários dos comentários (há inclusive um comentário que diz que a proposta do estado bi-nacional é o que de melhor se produziu pela “intelligentsia” israelense). Ora, agora você mesmo dá a entender que um estado bi-nacional não é fundamentalmente o que está em questão!
Segundo: a menos que você explique direitinho COMO fazê-lo, afirmar que a solução está em “construir princípios e instituições que reconstruam a capacidade de viver juntos desses povos para além de identidades mortíferas”” soa-me como um fraseado oco. Eu mantenho minha opinião de que a solução estado bi-nacional é um descalabro. Somadas as populações dos três territórios (faixa de gaza, Cisjordânia e Israel) a população de origem árabe é maior e o Estado resultante seria sempre governado por árabes (em eleições cada cabeça um voto). Isto seria varrer Israel do mapa. Não me parece razoável pretender que os judeus colaborem com isto. Por outro lado, o exemplo da carnificina em que se transformou a antiga Yuguslávia parece-me suficiente para desencorajar soluções dessa natureza.
Retribuo o abraço e agradeço por suas gentis palavras. Espero ter a oportunidade de conhecê-la pessoalmente.
Renan,
Eu também sempre espero conhecer pessoalmente as pessoas com quem dialogo virtualmente, porque sou "velho jogo", preciso de gestos, olhares e expressões para me sentir interagindo de fato com alguém. Mas vivo em Aracaju e, acho, você em Recife. Só se for no próximo carnaval (fui neste ano e adorei).
Mas continuemos com nossas divergências respeitosas. Eu não estou falando em nome dos outros comentadores, mas em meu próprio. Para mim (embora saiba que para eles também), não é a legitimidade da existência de Israel o que está em causa, mas sua viabilidade e a dignidade dos não judeus que também têm aquela região como terra de suas vidas, considerando-se o caráter crônico dos conflitos e as implicações que as bandeiras israelenses de legitimação têm nesses conflitos. Se a Argentina foi uma ideia original do projeto sionista, concretamente ele realizou-se na Palestina e eu não consigo entender como você, que tão bem colocou a força problemática dos ortodoxos em Israel, nega agora a importância das representações em torno da "reintegração de posse" no discurso de legitimação de Israel. Sinceramente, parece-me uma negação estratégica, principalmente porque articula-se imediatamente a dois temas recorrentes da justificativa do Estado de Israel diante de suas práticas colonizadoras e opressivas: o terrorismo árabo-palestino e as maravilhas econômicas que Israel realiza e até cede graciosamente aos ("bons") árabes ( que irônico! Os europeus antissemitas adoravam falar no "bom" judeu, aquele que precisava negar-se para ser bom). Ora, criticar Israel não significa necessariamente apoiar grupos que matam cegamente. Penso aqui em Lampeão e Maria Bonita (estive no Xingó esta semana): é idiota interpretar o cangaço simples e romanticamente como resistência camponesa ao coronelismo, mas os cangaceiros são sim, resultado violento de um contexto de dominação perversa. Daí a simpatia que o imaginário nordestino (inclusive o intelectual) foi construindo em torno dessas figuras.
Quanto ao que é fundamental para você, Estado Bi-nacional ou dois Estados, repito, os comentadores não são um bloco com uma mesma reivindicação. O que incomoda e muitas vezes desespera, é a obstinação do Estado de Israel em não reconhecer o outro - que também é parte daquele território. E não sou Deus para saber como fazer direitinho uma solução viável (aliás, Ele também não parece saber, já que é único, fez toda a humanidade mas escolheu apenas um povo para estabelecer contratos, prometer, castigar e o escambau). Quando digo que Estado Bi-nacional ou dois estados não é o fundamental, é porque penso que, mesmo na solução de dois Estados, eles serão fronteiriços, logo, devem encontrar um jeito de conviver - como árabo-muçulmanos e judeus sempre conseguiram relativamente bem, antes da invenção moderna de Israel. A não ser que o sionismo reatualize o projeto argentino (ô meus deuses e demônios, nunca pensei ficar tão preocupada com o destino de los hermanos!) Espero que você possa perdoar a ironia final: é que sou itabaianense (Sergipe): a gente corre o risco de perder o amigo, mas não perde a piada. Abraço
Outra coisa, Renan (sem nenhuma ironia): para mim, definir Arafat como psicopata é muito mais absurdo do que definir Lampeão como resistente camponês contra o coronelismo. Abraço
Vi uma entrevista de Arafat no programa do Larry King no qual ele insinua com um sorriso nos lábios que participou e continuaria participando de atentados terroristas. Cinicamente lembrou que isto envolveu a morte de crianças inocentes. Diz-se que um psicopata comete atrocidades sem qualquer sentimento de culpa. Esta definição ajusta-se perfeitamente ao Arafat. De qualquer forma, se psicopata ele não era (isto cabe aos especialistas dizer), era a escória da condição humana em pessoa. Talvez Ariel Sharon também o fosse, mas Sharon não é herói nacional em Israel nem no futuro o túmulo dele se transformará em local sagrado. Não há um único retrado dele nas ruas de Israel - retratos de Arafat (e estátuas) há às centenas nas ruas da cisjordânia, pelo que vi na televisão! Acho uma infelicidade de sua parte, Tamara, comparar a minha perspectiva com a dos antissemitas europeus que falavam dos "bons judeus". Foi uma agressão gratuita, desnecessária e incompatível com o tom respeitoso que estava sendo mantido entre nós até então. Li coisas em seus comentários que me soam como o mais rematado antissemetismo e me furtei a mencionar isto justamente para evitar que a discussão resvalasse para agressões pessoais. Seja como for, permanece o ponto central da discordância: a metáfora da reintegração de posse é boa ou não? Acho uma infelicidade da sua parte dizer que minha negação da pertinência dessa metáfora seja "estratégica". Por aí simplemente não dá para conversar. Não entendo nada de cangaço, mas não vejo os grupos terroristas como "resultado do contexto violento de uma dominação perversa". A idéia de que Israel é o bad guy é sua premissa e sua conclusão, daí você considerar a minha negação "estratégica", uma vez que ela não conduz à conclusão de que Israel é o bad guy. Você parece ter se irritado com o fato de eu argumentar fora do círculo dessa premissa. Qualquer forma de argumentação que não conduza à conclusão de que Israel é o bad guy lhe soará como uma "estratégia". Por isto, não vejo proveito em manter a interlocução.
Seja como for, se o Hamas, Fatah e outros grupos terroristas existem não é porque o povo escolhido (já que você desnecessariamente ridicularizou a doutrina judaica do povo escolhido vou entrar na sua onda, lembrando que os judeus fazem pilhéria disto também com alguma frequencia)faz crueldades: esses grupoos terroristas existem simplesmente porque não admitem o fato de Israel existir. O terrorista fundador do Hamas, Ahmed Yassin, na véspera de ser mandado para o inferno pela IDF, bradou aos 4 ventos que não importa o que Israel fizesse o comportamento do Hamás não iria mudar porque se tratava de eliminar Israel. O que estou querendo dizer é que tanto o antissionismo quanto o antissemitismo são inelásticos - eles não aumentam ou diminuem em função do que Israel faz ou deixa de fazer. Quando Israel foi criado todos os países árabes vizinhos tentaram acabar com ele. Aos poucos foram vendo que isto seria complicado. Em 1964 (ou65?) criou-se a OLP justamente para este fim. Também não deu certo. Os grupos terroristas são mais uma tentativa, nessa longa caminhada de tentativas frustradas, no sentido de acabar com Israel. Claro que Israel cometeu muitos erros e ainda comete. Os assentamentos ilegais é um deles, e (talvez) um erro grave. Mas a existência desses grupos não tem a ver com esses erros, mas com a existência de Israel em si. E se esses grupos estão agora ficando mais "light", no Hamás por exemplo já há a ala anti-terror, é porque perceberam que não têm chances depois das medidas militares de Israel (principalmente barreira de segurança e assassinatos seletivos). Não tenho mais interesse em manter interlocução a respeito deste assunto, que é um saco sem fundo. Os leitores do CAZZO têm coisas mais edificantes para ler. Claro que você pode continuar se quiser. Só te peço que me poupe de ataques pessoais.
Renan,
Ataques pessoais não existiram nem existirão. Releia serenamente tudo o que eu escrevi, relaxado de sua missão de defesa de Israel, e você verá. Aliás, como poderíamos nos atacar pessoalmente se nem temos ideia do que fazemos na vida - um e outro?
Concordo que continuar a discussão é impossível. Mas pode ter certeza de que não me incomodo que me chamem de antissemita, racista, homofóbica, machista e até misógina ( e olhe que sou do sexo feminino). Essas definições são-me imputadas, às vezez, quando assumo a responsabilidade de discutir concretamente com as identidades. Eu tenho uma orientação universalista de vida, esse significante vazio, essa inexistência inevitavelmente presente para os que buscam ir além de suas identificações próximas, concretas e, na maioria das vezes, mesquinhas, para construir pontes até o outro. É por isso que insisto na sociologia, essa disciplina vaga mas cheia de imaginação, que busca compreender a interdependência humana. Como são interdependentes os palestinos e judeus daquela região explosiva - e também alhures. E é isso
Finalmente temos um verdadeiro debate no Cazzo! Ou tínhamos, porque Renan cortou-o alegando ofensas pessoais por parte de Tâmara. Sinceramente, não as vi.
Aqui pra nós, Renan, incriminar Tâmara de anti-semitismo é de uma enorme falta de sensibilidade e de espírito de diálogo franco, mesmo quando firme. Conterrâneo e velho amigo de Tâmara, partilho sua visão sobre o problema, da mesma maneira que concordo com você quando diz que a hipótese, a essa altura, de um estao bi-nacional (o que não era necessariamente o caso em 1948)na velha e sofrida Palestina, é descabida. Não sou anti-semita, e se você deduzir, do que disse antes e agora, que sou, não aceitarei a acusação. No momento estou relendo um livro magnífico de um historiador judeu, Arno Mayer, "A 'solução final' na história", que me deixa arrepiado e impactado com "o indizível sofrimento físico e mental infligido aos Judeus no curso da noite mais negra que conheceu a Europa cristã". (Se algum militante do movimento negro vir na metáfora da "noite mais negra" alguma fumaça de racismo, darei uma boa risada!) Isso é uma coisa. Outra coisa é a arrogância do fundamentalismo judeu que, ao contrário do que você sugere, certamente não vai aceitar sem mais nem menos uma eventual decisão do governo israelense em desmantelar as colônias implantadas na Cisjordânia. O mais trágico de tudo é que os judeus que lá estão, sobretudo os que lá nasceram, terão reivindicações legítimas pela posse da terra onde vivem e laboram há tantos anos... A história é feita disso, Renan, de "invenção"... e de sangue e fúria, como diria o Bardo. Eu, de meu lado, tenho horror de sangue, e muito medo de fúria.
Seria interessante que você voltasse ao debate, porque vo~cê parece um sujeito muito bem informado sobre a realidade geo-política da Palestina. Mas, novamente, uma coisa são os fatos, outra coisa é nossa interpretação deles. No fundo, outra "invenção"... minha, sua, de todos nós. Por isso a única possibilidade de conveniência decente entre os homens é a partilha da convicção democrática de que a História não existe isenta da nossa opinião sobre ela.
Luciano,
o Prof. Parrusi encerra a resenha afirmando:
"A conclusão básica de Shlomo Sand é simples: Israel está a caminho de um desastre político, com gravíssimas repercussões internacionais, e sua sobrevivência, para além dos mitos fundadores, somente poderá ser assegurada com sua transformação num Estado Judaico-Palestino."
Você concorda comigo que a pretensão de um estado judaico-palestino é descabida (seu termo)nos dias de hoje. Logo concordamos no fundamental! Se a "conclusão básica" do livro é a de que a "sobrevivência de Israel só pode ser assegurada se ele se transformar em um estado judeo-palestino" e se você admite que a hipótese de um estado judeo-palestino era viável em 1948 mas não o é mais, então a viabilidade de Israel nada tem a ver com o que o livro propõe. Chegamos a um belo acordo! PT saudações. Podemos nos entender melhor ainda se você me poupar de seus comentários a respeito da minha "sensibilidade" ou do meu "espírito de diálogo".
Sem comentários...
Meu caro Renan, você se crispa muito facilmente!
Falei de falta de sensibilidade e de espírito de diálogo porque achei que sua reação ao que disse Tâmara foi no mínimo exagerada...
Extrair do que ela disse, inclusive das brincadeiras (pois brincadeiras servem muitas vezes para aligeirar a dureza dos argumentos, evitando que se descambe num clima de confronto ruim para o debate), sintomas de um "rematado antissemitismo", achei isso uma torção ao bom senso e ao tom respeitoso e até aparentemente amigável que até então havia nas suas divergências.
Bem, agora você me diz para lhe poupar de meus comentários num tom de superior dando ordens a um subordinado...
Eu, hein!
Desarme-se um pouco, meu caro.
E por favor não acredite que acho o terrorismo uma forma válida de luta. Acho-o asqueroso, pura e simplesmente. Mas isso vale para qualquer dos lados. Nunca vi essa entrevista de Arafat, não sei quando ela foi dada e portanto fio-me no que você diz sobre sua impiedade em relação às vítimas.
Mas, meu caro, naquela região do mundo, quem pode atirar a primeira pedra? Menahem Begin, que terminou ganhando um Nobel da paz, esteve envolvido com terrorismo na época do mandato britânico... Enfim, por aí não se irá muito longe. E já que ninguém até então fez qualquer referência aos atentados terroristas às cegas do hamas, como você lembra, faço-o agora: são um crime contra a humanidade! Evidentemente não incluo nessa categoria ataques a instalações militares israelenses... Afinal, há uma guerra em curso, e já seria muita ingenuidade de minha parte achar que numa guerra não deve haver mortos... Mas, ao mesmo tempo, sou contra as guerras. Tenho horror às guerras, ainda que reconheça que às vezes elas têm de ser feitas. Por exemplo, aquela que foi feita contra o nazismo, que, aliás, deveria ter sido feita muito antes de setembro de 1939...
Fico por aqui.
Cordialmente,
Luciano
Obrigado, Luciano, por seu esforço em evitar que toda essa conversa terminasse em mal estar. Já que você fez este esforço, vou também procurar fazer minha parte, pois acho uma pena que esse debate, que começou de forma tão promissora, termine com um leviano comentário anônimo. Antes de passar ao que de fato importa não quero deixar sem registro que mantenho tudo o que disse à respeito dos comentários da Tãmara - apesar de seus protestos. Agora, ao que importa.
Se os leitores do CAZZO não se incomodam, vou aproveitar essa oportunidade para levantar uma questão diretamente relacionada com o livro resenhado e que talvez valha a pena ser discutida.
Embora não tenha formação em história, sou um leitor de Braudel. Em sua obra, Braudel faz afirmações incidentais a respeito da inviabilidade a longo prazo do capitalismo; afirmações que são, para dizer o mínimo, muito discutíveis. Mas essas afirmações são, como disse, incidentais, e em nada comprometem a magnífica historiografia dele. Braudel nunca colocou a historiografia dele a serviço dessa sua tese mais geral a respeito da inviabilidade do capitalismo. Tenho a impressão que este erro que Braudel não cometeu a historiografia de esquerda israelense comete - esses historioadores colocam sua historiografia a serviço de uma tese mais geral cuja validade eles supõem já estabelecida a priori. Isto envolve problemas de toda ordem, mas um em especial diz respeito à discussão aqui: quando não se sustenta a conclusão a que o Autor quer nos conduzir, o que sobra de todo o resto? Seria possível dizer algo do tipo: "ok, a conclusão geral de Sand é muito discutível (eu particularmente não acho discutível, acho um disparate, e você mesmo, Luciano, parece concordar que seja "descabida") mas, ainda assim, o livro é muito valioso porque tem uma contribuição original a respeito da formação dos judeus enquanto um "povo"? É possível dizer algo dessa natureza? Pelo que li em ambas as resenhas não vislumbrei novidade alguma, mas o próprio foco das resenhas, como do livro, não está nisto, mas em demonstrar uma tese, a de que Israel só se viabiliza se se tornar um estado judeo-palestino. Como historiografia minhas reservas seriam as mesmas se se tratasse de uma reconstrução histórica com vistas a "demonstrar", por exemplo, que Israel estaria justificado em construir seus assentamentos na cisjordânia ou coisa que o valha. Alan Dershowitz,um autor muito polêmico, parece-me mais honesto porque ele dá ao seu livro o título: Em Defesa de Israel. Ponto Final. Está posto desde o início do que se trata. Tenho pra mim que esta esquerda israelense faz propaganda travestida de investigação histórica - daí minha repulsa. Talvez essas considerações mereçam alguma discussão.
Sobre Menahem Begin, Luciano, se alguém se referisse a ele como um psicopata eu não iria retorquir que há algum "absurdo" em se referir a ele dessa forma. Eu saberia que "psicopata" é talvez pegar pesado demais, mas que está muito próximo disto ...Essa, aliás, é uma das razões para manter tudo o que disse no que se refere à Tãmara.
Obrigado mais uma vez por impedir que esta discussão terminasse com um patético e deplorável comentário anÔnimo. Que papelão, hein?, senhor ou senhora anônimo!!!Estou à disposição para continuar, caso haja interesse.
Cordialmente,
Renan
Renan,
Eu creio que a questão central a ser discutida é se o Estado de Israel é um Estado Democrático de Direito. Acho difícil negar que há pelo menos duas categorias distintas de cidadãos em Israel, o que é incompatível com a ideia de democracia. Neste sentido, embora se possa questionar os meios ou mesmo a viabilidade da solução política proposta, a conclusão é até bastante "leve": sua continuidade está condicionada ao desenvolvimento de um Estado Judaico-Palestino que garanta direitos iguais aos dois grupos. Não vejo aí nenhuma agenda escondida, nem algum equívoco epistemológico que inviabilize tal conclusão.
Quanto à sua crítica ao anônimo, estou em total acordo e já sem paciência alguma para esse tipo de coisa.
Bjs.
Esqueci de uma coisa: acho que o único argumento que inviabilizaria a tese do Sand seria a de que a tese do colonializmo interno não se sustenta (que é, na verdade, o que parece sustentar sua negação de um Estado Democrático).
Eu tinha dito que considerava a continuidade da discussão impossível, considerando que Renan interpretou minhas divergências e o humor que utilizei (não me arrependo, diga-se de passagem), como expressões de "rematado antissemitismo". Mas, como a acusação persiste, em tom de sentença de tribunal (só rindo!) sou obrigada a reaparecer. Pois bem, Renan, não só recuso sua acusação, como a considero calúnia e difamação. E agora vejo que apareceu mais uma vítima: um anônimo que, se realmente não contribuiu nem com seu "sem comentários",muito menos com seu anonimato, está longe de parecer com certos anônimos que já surgiram no Cazzo para caluniar realmente. Não há calúnia alguma no comentário do anônim@, apenas uma recusa lamentável de argumentar e de se identificar.
O comentário de Cynthia, pelo contrário, recoloca o debate nos trilhos da lucidez e da reflexão, assim como os de Luciano Oliveira, embora partindo de entradas diferentes: Luciano argumenta em torno do estado de guerra; Cynthia argumenta em torno das condições de vida cotidianas da população palestina, naquela região, de seu caráter de sub-cidadãos. Isso foi providencial, já que o juíz Renan parece reduzir a população palestina a terroristas e a israelense parece reduzida à condição de soldados em defesa.
Felizmente (nem tudo é desgraça), há árabo-palestinos e judeus israelenses ainda lúcidos, como tantos isralenses já citados aqui; como tantos judeus e árabes que trabalham juntos, buscando recuperar um horizonte de discussão e convivência, para além de um estado de guerra permanente.
Enfim, a utilização da acusação de antissemitismo como arma ideológica automática, tem-se tornado, em minha modesta modificação da frase célebre de Hannan Arendt, uma banalização do mal. E é isso.
Cynthia, acho que há um desacordo conceitual aí. Não sei o que você está entendendo por "Estado judaico-palestino", mas, tal como defendido pela esquerda israelense e por diletantes como Tariq Ali isto envolveria juntar tudo o que hoje é Israel, Cisjordânia e Palestina e transformar tudo isto num único Estado - é isto o que o livro parece defender como a solução para Israel. Nesse caso, nem mais existiria Israel tal como hoje existe. Você parece entender por isto algo bem diferente: manter os dois Estados e Israel conceder aos árabes que ali habitam os mesmos direitos de que desfrutam os judeus. Em tese eu concordo com você, mas se os direitos são os mesmos os deveres devem também ser. Em Israel o serviço militar é obrigatório por 3 anos (para todos os homens) e 2 anos (para todas as mulheres) para os judeus. Se é para os árabes serem "cidadãos plenos" eles teriam que servir ao Exército Israelense também, da mesma forma que os judeus. E lutar contra seus compatriotas em caso de guerra! Como eles são isentos do serviço militar para evitar que eventualmente tenham que guerrear contra outros árabes, eles não podem ser cidadãos plenos, porque cidadania plena envolve não só direitos iguais, mas também deveres iguais. Mas mesmo sem a cidadania plena eles têm um padrão de vida e oportunidades e liberdade muito maior do que teriam em qualquer outro país árabe. Não há restrição alguma a trabalho, a estudos, a críticas ao governo, a votar, a se candidatar etc, enfim, a essas coisinhas de democracia que nenhum país árabe conhece. Sob certos aspectos os árabes têm até mais vantagens que os judeus em Israel. Os taxistas judeus, por exemplo, não podem trabalhar ou conduzir passageiros a cidades de população de maioria árabe como, por exemplo, Jericó, um ponto turístico importante de Israel. Os taxistas árabes não têm esta restrição. Eu quis visitar Jericó, tive que pegar um taxi de um árabe. A coisa é mais complexa do que se imagina.
Por outro lado, se os árabes não são cidadãos plenos em Israel (e mesmo assim não migram para outros países árabes onde poderiam ser cidadãos plenos!!!!!), o que dizer dos judeus nos países árabes?????? Simplesmente foram escurraçados! Onde está a comunidade judaica do Egito, do Iraque, do Iemen - todos escurraçados! Beijo, extensivo aos colegas que tiverem a paciência de me ler.
Tâmara,
De fato, não há calúnia no (não) comentário do anônimo, mas há agressão. Se não quer comentar, não comente; se quer, dê ao outro o direito de responder e de responder a alguém, não a um fantasma. Simples assim.
Acho que de todos os desentendimentos que esse post tem gerado (o que acho lamentável, dado que tenho o maior carinho e admiração intelectual por todos os envolvidos), creio que uma lição pode ser tirada: por mais acirradas que possam ser as discussões, um mínimo de reconhecimento tem sido mantido. Sem isso, o que se tem é violência pura.
Renan, serei bem breve pq preciso terminar de preparar minha aula de hoje à tarde (tento voltar com calma à noite). É só um comentário sobre sua frase "Não há restrição alguma a trabalho, a estudos, a críticas ao governo, a votar, a se candidatar etc, enfim, a essas coisinhas de democracia que nenhum país árabe conhece".
Acho que tive a oportunidade de conversar com você sobre o projeto que participei em Toronto sobre homens bomba, coordenado pelo Bob Brym e formado por um time de pesquisadores israelenses e árabes. Um deles, "cidadão" árabe em Israel, foi preso durante 6 meses, aos 13 anos de idade (!) por ter jogado uma pedra na bandeira de Israel na escola (!). Sei lá, mas isso não me parece coisinha de democracia.
Aliás, faz tempo que planejo uma entrevista com esse cara. Trata-se de uma das histórias de vida mais impressionantes que já ouvi. Quem sabe consigo fazer isso.
Cynthia,
Parece que anônim@ tem-se tornado visitante problemático no Cazzo, né? Talvez seja um bom convite para que os editores rediscutam e deliberem sobre isso. Se a opinião de uma admiradora e colaboradora puder ser utilizada como material de reflexão, lá vai: compreendo o argumento de que a aceitação do anonimato pelo blog deve-se à abertura de possibilidade para que os mais tímidos participem. Entretanto, como o anonimato, principalmente em temas polêmicos, implica no que você disse, ou seja, na retirada do direito de alguém responder a alguém e não a um fantasma, penso que um blog com a natureza do Cazzo pode ter vida mais saudável e reflexiva sem a possibilidade de anonimato. Abraço
Cynthia,
fiquei curioso para saber o que acontece no Brasil com quem apedereja a bandeira e encontrei o seguinte:
2. Da Bandeira Nacional:
"Art. 44 – Destruir ou ultrajar a bandeira, emblemas ou símbolos nacionais, quando expostos em lugar público:
"Pena – detenção de 2(dois)a 4(quatro) anos."
O Brasil é menos democrático por causa disto? O menino tinmha 13 anos, mas nem todo país tem 18 anos como a linha divisória para a responsabilidade penal. Estou ensinando padre nosso ao vigário ao te dizer isto, que já morou anos no exterior. Na Inglaterra até crianças de dez anos são punidas, dependendo do crime. Eu não sei como é a questão da maioridade em Israel, mas os judeus são considerados responsáveis pelo que fazem a partir dos 13 anos. Portanto, embora eu considere uma estupidez prender alguém (ainda mais de 13 anos) por seis meses por apedrejar uma bandeira, isto nada tem de incompatível com um estado democrático.
Renan,
O Brasil não é exatamente um modelo de democracia. Mas admito que isso é se afastar do cerne da questão. Para falar a verdade, eu preferia quando a gente discutia epistemologia. Acho que vou fazer como o Bob Brym e abrir um arquivo sobre o Oriente Médio em meu computador com o título de "a situação impossível".
Tâmara,
Eu acho que só falta convencer Jonatas, que tem um espírito excessivamente democrático. Vou jogar ele no meu arquivo da "situação impossível", junto com o povo do Oriente Médio.
Mantenhamos, então, a coerência, Tâmara. Afinal, "como poderíamos nos atacar pessoalmente se nem temos ideia do que fazemos na vida - um e outro", não é verdade ?
Quanto ao não-comentário patético (no dizer do Sr Renan), nunca teve, nem poderia ter, a pretensão de impedir novos comentários. Espantei-me, apenas, com o que entendi ser uma grosseria desnecessária por parte dele. Só isso. Quanto à lamentável recusa em argumentar, só posso apelar para o bom humor sergipano: quando um burro fala, o outro baixa as orelhas.
Anônimo,
Eu vou melhorar meu argumento, porque eu não senti que o "sem comentários" anônimo contivesse alguma agressão. Acho que o interpretei assim: esse debate chegou a uma situação patética, "sem comentários".
Mas acontece que em outros temas polêmicos sobre textos do Cazzo (anteriores a este), têm aparecido realmente comentários anônimos que agridem e caluniam "comme si de rien n'était". É por isso que acho que, independentemente da polêmica em torno da resenha do prof. Perrusi, os editores do blog bem que poderiam rediscutir a possibilidade do anonimato.
Quanto ao humor sergipano, que ele viva! E reviva sempre em nós, nós de todo o planeta. Forte abraço, Tâmara
Cynthia,
você quer que Israel seja um modelo de democracia? Só pra não perder o costume de trocar farpas com você! Quanto à epistemologia, aaaah, que preguiça! Abraço a todos que se dispuseram a debater comigo e espero poder retornar ao CAZZO debatendo sobre algum tema menos delicado. Imagino que essa resenha tenha sido uma recordista de comentários!
Oi, Renan,
Certamente esteve entre os mais comentados, junto com os posts sobre a violência policial contra os estudantes (abaixo) e alguns posts sobre feminismo. Falar nisso, toda vez que você escreve CAZZO, assim, em letras garrafais, eu me sinto intimidada. Credo!
Aguardamos você nas próximas polêmicas.
Bjs
Cynthia e Jonatas, francamente!
Esses dois últimos comentários que não têm nada a ver são um elemento a mais para vocês pensarem ou repensarem a possibilidade de pessoas participaram do debate cobertos pelo manto envergonhado do anonimato.
Luciano
Deletados, Lulu.
Bj
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