Em janeiro último, foi aberto, pela Secretaria de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo de Sergipe, edital para realização de Concurso Público para provimento do cargo de professor de Educação Básica, com 47 vagas para licenciados em Ciências Sociais ou em Sociologia. Esse edital chegava em boa hora, pois aqui em Sergipe vivemos alguns anos convivendo com a resistência governamental à abertura de vagas para diplomados em ciências sociais ou sociologia – fato que agravava os numerosos pontos frágeis do retorno da sociologia ao ensino médio no país.
Estávamos então animados, sabendo da preparação para o concurso de numerosos de nossos egressos e aguardando o certame e seus resultados. O concurso foi realizado em 1º de abril, dia da mentira, pois é...Pelo menos entre os professores do DCS/UFS, ninguém tinha atinado para essa coincidência temporal, até começar a perguntar a um(a) e outro(a) egresso(a) como ele(a) tinha se saído. Fomos percebendo que gente demais saiu-se mal ou muito mal, inclusive alguns cuja reputação desde o primeiro ano de graduação até a seleção para o doutorado em sociologia, sempre foi a de excelentes estudantes. As palavras de uma candidata (doutoranda em sociologia) sintetiza o alarme: “acho que não passei, professor, foi uma prova tão confusa...” Logo depois, fomos consultados por outros candidatos – que abriam recursos contra os resultados da prova (dita objetiva).
Entretempo, outros acontecimentos nos faziam pensar: o Ministério Público estadual já tentara, sem sucesso, anular o concurso antes de sua realização e, posteriormente, recebendo uma comissão de concursados para denunciar irregularidades, continuava apurando os numerosos problemas da prova desse concurso, em várias áreas do conhecimento: química, física, geografia, biologia... Conversando com colegas de outros departamentos, soubemos que em história, também, concursados procuraram professores do departamento para auxiliá-los na análise e elaboração de recursos. Em reunião ordinária, o professor José Rodorval Ramalho trouxe o assunto à pauta e o Conselho Departamental de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe deliberou pela composição de uma comissão para analisar e elaborar parecer sobre a prova de sociologia, bem como sobre as justificativas do responsável por sua elaboração (Fundação Professor Carlos Augusto Bittencourt – FUNCAB) a respeito dos recursos impetrados por candidatos. Essa comissão foi composta por mim, Christine Jacquet e José Rodorval Ramalho.
Antes de qualquer coisa, decidimos que cada um faria a prova em casa. Teve sua graça. Descobrimos que nós, professores do único departamento de ciências sociais de Sergipe, estaríamos provavelmente entre os reprovados do concurso. Disse provavelmente, porque nem verificamos nossos resultados pelo gabarito da prova, tamanho foi o susto que cada um teve em sua casa, à medida da leitura das questões da prova de sociologia, dita objetiva, da FUNCAB. Nosso exercício lúdico de se testar numa prova para o ensino básico de sociologia sofreu um terrível choque de realidade: esse concurso público, ao invés de exprimir um avanço no retorno do ensino médio de sociologia, revela que o recrutamento de professores pelos governos estaduais (responsáveis pela maior parte do ensino básico no Brasil), pode até agravar os pontos frágeis desse retorno.
Já sabíamos que a Ação Pública com Medida Liminar ajuizada pelos promotores do MPE-SE em março de 2012, requerendo suspensão do concurso, fora justificada por ausência de licitação na escolha da FUNCAB como elaboradora das provas. Mas essa Ação foi recusada pela justiça, tendo em vista a diversidade interpretativa possível e juridicamente legítima que se dá ao conceito de inexigibilidade de processos licitatórios. O que pudemos perceber, analisando a prova de sociologia, é que o princípio legal que foi mais afrontado pela escolha sem licitação da FUNCAB foi o da eficiência do serviço contratado – inscrito no Art. 37 da Constituição Federal, ao lado dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.
Com efeito, a FUNCAB elaborou mal a maioria das questões (com certos enunciados falsos, outros imprecisos, outros simplesmente confundindo comentadores indeterminados com os autores em questão; com certas questões possuindo mais de uma ou até todas as alternativas potencialmente válidas – a depender do ponto de vista que não foi explicitado –, outras com a alternativa oficialmente válida simplesmente incorreta, outras ainda deformando a argumentação dos próprios autores ou comentadores utilizados – devido à introdução de termos equivocados ou adjetivos excessivos).
O resultado não pode ser considerado como uma prova que testa conhecimentos específicos em sociologia, mas como um conjunto errático de questões e/ou alternativas oficialmente válidas que, majoritariamente, confudem os candidatos. Com efeito, dado o impressionante número de questões problemáticas, pode-se afirmar que a prova da FUNCAB tem mais afinidades com um videogame (onde cada etapa implica em armadilhas cada vez mais perigosas contra o jogador) do que com um teste de conhecimentos científicos de candidatos. Abaixo, reproduzo o parecer que elaboramos e que foi entregue ao promotor Luiz Fausto Valois, em audiência pública do MPE-Sergipe aos 09 de maio de 2012:
O edital n°01 de 27 de janeiro de 2012 referente ao concurso público n° 01/2012 para provimento do cargo de professor de Educação Básica do estado de Sergipe, como também a capa do caderno de questões entregue aos candidatos no dia da prova escrita explicitam que a primeira etapa do referido concurso é constituída por uma prova objetiva composta por questões de múltipla escolha, o candidato devendo "marcar, para cada questão, somente uma das opções de resposta. Será considerada errada e atribuída nota 0 (zero) à questão com mais de uma opção marcada, sem opção marcada, com emenda ou rasura" (artigo 9.10, p. 14 do edital).
Uma questão de prova é objetiva quando as opções corretas (ou incorretas) são independentes do candidato e do autor da pergunta, e portanto, irrefutavelmente exatas (ou erradas) em relação ao enunciado do problema. Deve, conseqüentemente, ter delimitação de conteúdo inequívoco.
Ora, o Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Universidade Federal de Sergipe sustenta que determinados enunciados, tanto das questões como também das alternativas propostas, não são objetivos e propiciam várias possibilidades de resposta ou até nenhuma: o uso recorrente de termos dúbios (em geral, alguns estudiosos, os estudiosos contemporâneos da modernização, as teorias acerca da pós-modernidade, os escritores pós-modernos, os novos teóricos sociais, os funcionalistas em geral, etc.), como também de aspas para expressões que não se reportam a conceitos sociológicos, títulos de livros ou ainda citações explícitas (por exemplo nas questões 29-30-33-41-49-50), geram ambigüidades, criando problemas gravíssimos no entendimento. As ciências humanas e sociais são caracterizadas por uma diversidade interpretativa. Se a prova objetiva não explicita com clareza os pontos de vista aos quais as questões se referem, não distingue os comentadores utilizados dos autores em foco na prova, ou ainda, é errática na seleção dos comentadores utilizados (contruindo questões, por exemplo, que ora incluem ora excluem tal ou tal autor da tradição sociológica) e, excede em adjetivos ou termos estranhos à sociologia que deformam argumentos dos próprios comentadores utilizados, o resultado é a própria negação do princípio de uma prova objetiva. A prova desfavoreceu os candidatos que se prepararam para o concurso, pois os confundiu desde a imprecisão de certos enunciados até as alternativas apresentadas para responder aos mesmos.
A propósito, vale a pena indagar sobre a composição efetiva da equipe de elaboração das provas. Quais foram os sociólogos ou cientistas sociais participantes? Quais as modalidades concretas dessa participação – coordenação efetiva e regular ou mera consultoria pontual e apressada? Eis algumas questões fundamentais que nossa responsabildade profissional e cívica desenvolveu durante essa necessária avaliação da prova da FUNCAB/SEED.
Assim, segundo a análise realizada pela Comissão nomeada pelo DCS, quanto às questões da prova e, outrossim, quanto às justificativas sobre os recursos feitos por candidatos que se sentiram prejudicados, a FUNCAB/SEED incorreu em todas as falhas acima citadas. Desse modo, acatar tal prova como instrumento adequado para o recrutamento de professores do sistema público de ensino de Sergipe seria corroborar e reforçar seus graves problemas. (Jacquet/ Oliveira/ Ramalho)
Nosso documento inclui ainda a análise de cada questão problemática, bem como das justificativas da FUNCAB para o deferimento ou indeferimento de recursos. Para ilustrar o tamanho do problema, solicitamos anulação de 18 das 24 questões da prova de sociologia. Uma delas já fora anulada pela própria FUNCAB, deferindo apenas um dos numerosos recursos dos candidatos. Os concursados prejudicados de química tiveram mais sorte do que os nossos, já que a FUNCAB deferiu recursos referentes a nove (9) das questões específicas em química...Em geral, segundo a imprensa local, o MPE declarou que o período dos recursos fechou-se com a anulação de 62 questões da prova e a alteração de mais 23 pela própria FUNCAB. Mas novas denúncias continuavam a chegar, como as de concursados em sociologia e a da comissão do DCS – que só foram entregues ao MPE durante a audiência do último dia 09 de maio. Francamente, quando a próprio elaborador da prova anula 60 questões e altera 23, durante o período de apreciação de recursos contra os resultados, podemos estar certos de que as denúncias não são mero efeito da judicialização das sociedades contemporâneas, desse fenômeno responsável pela proliferação de uma espécie nova, a dos candidatos a recursos, mas a indicação de que o próprio elaborador da prova está desorientado sobre o que elaborou.
Durante a audiência pública em 09 de maio, decidimos comparecer todos da comissão, acompanhados de nossa chefe departamental, profª Joelina Menezes – que compôs a mesa da audiência, a convite do promotor Valois.
Entendo que fizemos muito bem em comparecer institucionalmente. De fato, embora os problemas da elaboração das provas envolvam diversas áreas do conhecimento, fomos o único departamento universitário a se apresentar oficialmente como reclamante. Dois professores do departamento de física da UFS atestaram por escrito a legitimidade dos recursos dos concursados de física, mas seu departamento não se pronunciou oficialmente. E mais nada. A maioria dos candidatos sentindo-se prejudicados estavam naquela audiência por sua conta e risco, principalmente o de serem considerados candidatos sem preparo que, por razões oportunistas, estavam instrumentalizando a justiça para justificar sua reprovação – como podemos ler entre internautas que comentam as notícias sobre esse imbróglio.
Ora, enquanto órgão responsável pela formação universitária de licenciados, nosso departamento, como qualquer outro, conta com egressos aprovados e reprovados, logo, não é parte interessada na anulação oportunista do concurso. Nossa motivação vem da análise cuidadosa das questões da prova de sociologia, constatando que a mesma fere o princípio moderno de seleção, qual seja o da meritocracia que, embora atravessado de problemas (como dira um John Rawls), ainda é o meio mais legítimo para a distribuição de cargos em sociedades democráticas. Neste sentido, lembramos ainda que concursos públicos ou ferramentas de avaliação de desempenho referentes à educação formal no Brasil, têm sido recorrentemente contestados (como o ENEM, por exemplo). Mesmo relativizando essa recorrência pelo fato de que vivemos num contexto histórico-social de judicialização abusiva de situações de conflito ou desacordo, nossa avaliação técnica da prova da FUNCAB/SEED indica que estamos diante de um problema muito grave, já que esses concursos ou ferramentas de avaliação de desempenho referem-se à educação formal, ou seja, a um domínio societal ao mesmo tempo problemático e crucial para uma sociedade que pretende consolidar suas aquisições democráticas. Selecionar empresas para a elaboração de concursos (ou convidar legalmente, como foi o caso de Sergipe) a partir de uma lógica meramente econômico-burocrática pode revelar-se – como revela-se neste caso – trágico, no que diz às possibilidades de consolidação de nossas aquisições democráticas e, sobretudo, de enfrentamento das condições lamentáveis de nosso sistema de ensino básico.
A FUNCAB (também representada na audiência pública) comprometeu-se em avaliar as novas irregularidades encaminhadas ao MPE. Todavia, a fala do representante da Procuradoria Geral do Estado apresentou uma consideração que nos deixa inquietos sobre o desenrolar do processo. Com efeito, declarando que o mais importante é que nossas crianças e adolescentes não permaneçam sem professores em sala de aula, parece-nos deixar indicado que a orientação do governo estadual é a de solucionar rápida e “jeitosamente” os problemas levantados, economizando o tempo necessário para a organização e realização de outro concurso.
Cá pra nós, se a prioridade é colocar professores nas salas de aula o mais rápido possível, independentemente da qualidade do processo seletivo, reclassificando candidatos a partir de uma quantidade cada vez menor de questões válidas, por que não contratar professores pela mera análise de cartas de motivação dos candidatos? Em termos não irônicos: como sustentar a validade de um concurso em que a própria empresa que elaborou as provas já anulou ou alterou mais de oitenta (80) questões e ainda pode anular dezenas de outras?
No que diz respeito à prova de sociologia, não sabemos que “jeito” poderia ser dado, considerando-se que a maioria das questões são problemáticas. Digamos que a FUNCAB defira apenas metade de nossos recursos: isso significaria a anulação de 8 questões, ou seja, um terço da prova de conhecimentos específicos. Qual a validade de uma reclassificação dos candidatos, nessas condições? É o que já se pergunta sobre a prova de química, posto que a FUNCAB, analisando recursos que lhes chegaram às mãos a partir da própria comissão local de organização do concurso (segundo um de seus membros presentes à audiência), já anulou 9 das questões.
É por isso que estamos tentando tornar o mais público possível a situação que vivemos com esse processo mais do que sintomático de recrutamento de professores do ensino básico em Sergipe. Precisamos enfrentar a tentação governamental de considerar a economia de tempo e dinheiro como o princípio fundamental da solução das necessidades e problemas educacionais. De fato, a autonomia quase totalitária da lógica do capitalismo financeirizado, bem como as consequências socioantropológicas do imperativo da aceleração da experiência social do tempo (tão adequada ao funcionamento desse capitalismo financeirizado e enlouquecido), mantêm-se impregnando as orientações das políticas públicas dessas nossas sociedades globalizadas e cada vez mais desiguais e injustas.
Finalmente, estou falando sobre um concurso ocorrido no estado de Sergipe, mas tratando de um grave problema de recrutamento de professores do ensino básico que pode acontecer em outros estados brasileiros. Considerando que o retorno do ensino médio da sociologia apresenta fragilidades que interessam diretamente aos profissionais e entidades das ciências sociais do país, espero que nosso caso seja objeto de reflexão e ação mais amplas. Além disso, como o processo do MPE junto à justiça continua em andamento, sendo que o julgamento de seu mérito pode ser beneficiado com o acúmulo de análises das provas, como a que fizemos, entendo que ainda é tempo de reagir.