Por Eduardo Leal Cunha
Psicólogo,
Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Professor do
Núcleo de Pós-Graduação
em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS,
autor de Indivíduo singular plural: a identidade em
questão, 7Letras, 2009
Freud nos ensinou que ao ouvir
uma interpretação o paciente não se encontra diante da solução imediata dos
seus problemas e sim frente à necessidade, ou oportunidade, de trabalhar. É
preciso associar livremente, recordar o passado, vislumbrar futuros, reconhecer
desejos, ligar os pontos, produzir novos enunciados, colocar o psiquismo em
movimento, encontrar novos modos de pensar e outras formas de ser. É preciso,
enfim, elaborar(FREUD, [1914] 2010).
Foi mais ou menos isso o que me
levou a fazer certa interpretação da nossa presença nas Olimpíadas de Londres,
a qual me parece corrente e que, para mim, se materializou de modo mais claro no
editorial da Folha de São Paulo deste último domingo,
cujo título sugestivo é
Brasil Olímpico,
e que pretendeu, depois de apresentar um rápido balanço das nossas conquistas,
listar uma série de providências recomendáveis para que o Brasil possa “galgar
posições no ranking dos jogos”.
Nesse momento, vocês
evidentemente têm o direito de se perguntar o que diabos um psicanalista e professor
de psicologia tem a dizer sobre esporte e medalhas; e eu, por outro lado,
poderia refutar com a necessária contribuição das ciências para o progresso do
esporte e da nação.
Acontece que, na verdade, o caminho
percorrido nas minhas curiosas associações foi outro: as inúmeras recomendações
que temos ouvido recentemente em nossa gloriosa imprensa sobre como o Brasil pode
galgar posições no ranking das universidades ou da educação em geral ou do
número de patentes ou de artigos publicados em inglês ou de restaurantes
classificados entre os melhores do mundo. E vamos parar por aqui antes que as
tais associações livres me levem longe demais.
Estamos obcecados por rankings,
classificações, números e é através deles que o maior jornal do país, organiza
seu (ou nosso) pensamento em torno do que aconteceu em Londres. O que
curiosamente me fez pensar em algumas coisas razoavelmente difíceis de medir,
senão mesmo de objetivar.
Comecemos como os principais
argumentos do texto da Folha: o primeiro deles é que avançamos no quadro de
medalhas e batemos nosso próprio recorde, estabelecido em Atlanta há 16 anos, porém
o fazemos de modo muito lento; o segundo, e que se torna o eixo central de
argumentação é que o problema não está no dinheiro: investimos muito nessa
última olimpíada e os resultados, portanto, foram insatisfatórios, ou seja, em
termos de custo-benefício, Londres não foi um bom negócio.
Antes mesmo de nos aprofundarmos
no diagnóstico para tal fracasso do empreendedorismo olímpico nacional e que,
aliás, não trará nada de novo além da velhíssima tese da ineficiência do
governo e dos seus agentes (tese certamente verossímil, embora insuficiente
para explicar todos os infortúnios verde-amarelos), parece impossível evitar uma
pergunta preliminar e um tanto incômoda, daquelas que a intervenção do
psicanalista deve nos obrigar a fazer: que tipo de benefício esperamos do
investimento em esporte?
Porque me parece esquisito
acreditar que o governo deve investir dois bilhões de reais em quatro anos (ao
que parece, foi esse o investimento do Brasil nas últimas olimpíadas) prioritariamente
para ganhar mais medalhas. Imagino que tal investimento deva produzir, isto
sim, uma ampliação do número de jovens envolvidos com esportes, o aumento do
número de opões educativas e de lazer para as camadas mais pobres da população,
a melhor integração das pessoas em suas comunidades com a ampliação de redes
comunitárias e sociais formadas em torno de práticas esportivas, o
desenvolvimento de habilidades sociais e competências atléticas entre um
percentual maior da população, a difusão de valores e ideais vinculados
culturalmente ao esporte, como a superação de limites e obstáculos ou a
cooperação mútua. Ou seja, muito simplesmente a consolidação das diversas
práticas esportivas como opção de formação, inserção social e lazer para uma
parcela significativa da população, em função do que, com o tempo, certamente
teremos brasileiros campeões e, salvo inevitáveis acidentes de percurso, mais
medalhas.
Dito de outro modo, o pódio
olímpico deveria ser consequência e não o único ou principal objetivo da
política oficial em relação ao esporte. Além disso, o número de medalhas pode
ser até um indicador do valor do dinheiro investido, mas não é o único e talvez
não seja nem mesmo o mais importante.
Infelizmente, no entanto, parece
que a única coisa que importa é o numero de medalhas. O que é muito parecido
com o que acontece em certos setores da educação no Brasil, em especial na
pós-graduação: definimos metas, estabelecemos a mensuração como critério fundamental
e, de olhos nos números, perdemos de vista o que realmente interessa. Um
exemplo: nós das áreas de ciências humanas e sociais estamos nos últimos anos
sendo delicadamente constrangidos a publicar em inglês. Em nossos currículos
individuais e na avaliação dos nossos programas, publicar em inglês é
fundamental, pois seremos mais lidos e nossos artigos atingirão um maior fator
de impacto, ou seja, seremos mais citados. Será mesmo? Será que em todas as
áreas do conhecimento o essencial da nossa contribuição precisa ou deve ser
feita em inglês? Não haverá problemas e setores específicos em que é preciso
conversar prioritariamente com nossos colegas de outras regiões do país ou da
América Latina? Será mais bem investido o dinheiro gasto em uma tradução para o
inglês ou para o espanhol? Ou ainda, melhor investir agora na publicação de
revistas brasileiras em língua inglesa ou na disponibilização pela internet,
com acesso aberto, das milhares de dissertações e teses produzidas anualmente
no país e que morrem de inanição nas prateleiras dos programas de pós?
Perguntar, ao menos, não custa nada.
Este, contudo, não me parece
sequer o problema fundamental. A meu ver, ele aparece, por exemplo, na própria
nomenclatura do setor da Capes que define a nota dos nossos programas e a partir
daí hierarquiza nossos pesquisadores e estudantes: diretoria de avaliação. Por que não diretoria de qualidade ou de qualificação?
Colocamos a avaliação e a classificação em primeiro lugar e a partir de dados
quantificáveis, como o número de artigos publicados em periódicos, definimos
posições, construímos nossos rankings e distribuímos medalhas, muitas vezes na
forma de verbas para pesquisa e bolsas de estudo. Mas para onde vão
especificidades regionais ou fatores como inserção social e contribuição para a
formação docente. Ao que parece, o importante é medir e obter números e, assim,
em nome da objetividade priorizamos o que pode ser medido e deixamos de lado
todo o resto. Ou seja, o que importa é apenas a classificação, nosso lugar na
fila.
O mesmo, ouso pensar, acontece no
caso das medalhas que ganhamos, ou deixamos de ganhar. O que fica claro se
continuarmos seguindo os argumentos dos editorialistas da folha, especialmente
quando nos colocam diante de outros países e dos seus resultados.
Comparando nosso desempenho com
“países com população menor que a do Brasil”, aprendemos então que erramos ao
privilegiar esportes coletivos ao invés dos individuais, pois “dos 258 atletas
nacionais, 38% disputaram apenas sete medalhas – no futebol, vôlei, basquete e
handebol”. Devemos então priorizar o individualismo e deixar em segundo plano esses
esportes improdutivos, nos quais é preciso um consistente trabalho conjunto de
cooperação e assistência mútua para conquistar uma vitória. Certamente, ao
menos segundo a lógica que guia o argumento da Folha, nosso país só teria a
ganhar com isso.
Da mesma forma – e eu aqui deixo
de lado o editorial de domingo da folha e passeio, no mesmo jornal, pelas
matérias pós-olímpicas da segunda-feira –, devemos nos mirar nos exemplos
vitoriosos dos verdadeiros campeões olímpicos, como China e Estados Unidos.
De novo, sou atormentado por
algumas perguntas: alguém ainda acredita que o sucesso chinês e sua invejável
disciplina olímpica não têm absolutamente nada a ver como o regime totalitário
em vigor no gigante asiático ou muito simplesmente com a falta de liberdade e
oportunidades que marca a grande maioria da população, e que o prêmio Nobel
Amartya Sen (2000) descreveria de modo simples e provocativo como baixo desenvolvimento
econômico, a despeito dos impressionantes números da economia chinesa?
Ou queremos para nós exatamente o
mesmo ambiente cultural que produz os talentos atléticos dos nossos irmãos
americanos do norte, no qual é quase inconcebível que os ricos paguem mais
impostos e que a assistência em saúde deva se estender a toda a população, inclusive
aqueles que não podem pagar? Isso se não quisermos continuar no mundo
paradisíaco dos números e, em mais uma associação livre, registrar que os
Estados Unidos, como lembrou recentemente um personagem do seriado The Newsroom – criado por Aaron Sorkin e
exibido no Brasil pela HBO – não são apenas campeões nas olimpíadas, são também
o país como maior percentual de jovens encarcerados em presídios, os quais,
aliás, livres da ineficiência estatal, são excelente negócio.
Enfim, eu também, como torcedor,
quero mais medalhas e quase morri de tristeza vendo a final do vôlei masculino.
No entanto, acredito que o quadro de medalhas, como qualquer classificação,
deve refletir alguma outra coisa além dele mesmo. Afinal, os rankings e as
hierarquias existem para nos dizer quem são os melhores, mas isso nos obriga a
pensar o que é ser o melhor ou o que e, sobretudo, de que modo, queremos ou
precisamos, enquanto nação, melhorar.
Definitivamente, não posso crer
que o número de medalhas seja mais importante do que o modo como elas são
conquistadas ou produzidas. Se é que para nós, dito povo brasileiro, a medalha de
ouro é mesmo o objetivo maior a ser alcançado. Pois, como nos diz José Miguel
Wisnik, o brasileiro, dentro ou fora dos campos, talvez seja movido mais por um
desejo de felicidade do que pela vontade de potência (WISNIK, 2008). Ou como
Santos-Dumont, esteja mais preocupado em voar do que em registrar a patente.
Será mesmo isso tão ruim assim?
Não estará aí um elemento central
em nossa capacidade criativa e mesmo produtiva? Sem de modo algum ir de
encontro ao mais puro espírito esportivo, o qual, segundo o sábio tupiniquim
Millôr Fernandes, nunca foi tão bem representado quanto pelo nosso frescobol:
único esporte sem vitórias ou derrotas, vencidos ou vencedores, no qual o
importante realmente é apenas competir.
Referências bibliográficas