Eduardo Leal Cunha
Psicólogo,
Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Professor do
Núcleo de Pós-Graduação
em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS,
autor de Indivíduo singular plural: a identidade em
questão, 7Letras, 2009
Com o (quase) fim do julgamento da
ação penal 470 e tendo acompanhado sem grandes pretensões o dito mensalão nas emissoras de televisão e
nos jornais, ou seja, como espectador em princípio leigo e desinteressado, não
exatamente atento a detalhes legais ou implicações políticas de cada movimento,
dou-me conta de que acabo exercendo em relação ao processo penal e sua
repercussão na imprensa ou mesmo nas mesas de botequim, aquilo que Freud
denominou, em referência à técnica necessária ao psicanalista e à possibilidade
de escutar o inconsciente dos pacientes, atenção
flutuante, a disposição de escutar o que é dito, sem esperar nada demais,
sem julgar precipitadamente ou buscar coerência no que ouve (Freud, 1912).
Pois não se trata aqui de
questionar o processo ou as decisões dos magistrados – os juristas que o façam,
se for o caso –, mas sim de colocar-se diante de alguns acontecimentos, que,
como na fala dos nossos pacientes, mostram que há algo mais na enunciação além
do enunciado.
Não se trata de encontrar a
verdade dos fatos ou decidir peremptoriamente sobre a inocência ou culpa de
cada, se é que qualquer dessas coisas é mesmo possível, pois como aprendi outro
dia em um seriado americano: confie naqueles que buscam a verdade e tenha medo
dos que a encontraram.
Trata-se, apenas, de propor
interpretações, sugerir sentidos possíveis para o que se passa e que pode ter vínculos
com a nossa história de vida e com o que vivemos atualmente, que não percebemos
de imediato, significados dos quais não temos consciência. Lembrando que, ainda
tendo como referência a clínica psicanalítica, tais interpretações são apenas
interpretações (KOHUT, 1988), tentativas de elaboração, sem a pretensão de
serem verdades definitivas ou absolutas; apenas um trabalho preliminar, um
ponto de partida, oferecido pelo analista, para que o paciente possa então elaborar, estabelecer ligações entre o
presente e o passado, reconhecer desejos e impulsos inconscientes (FREUD,
1914), rever seus pontos de vida, refletir sobre seus afetos e encontrar, ou
não, novas formas de se posicionar diante dos fatos da vida.
Trata-se, portanto, de vislumbrar
por trás de nossa vontade de justiça ou dos arroubos moralizantes dos mais
variados personagens que povoam o fenômeno da ação penal – o que inclui não
apenas políticos, advogados, procuradores e magistrados, mas também
jornalistas, homens de bem e homens comuns –, aqueles desejos odiosos e
egoístas (FREUD, 1910a) que, segundo Freud, estão presentes na banalidade do
nosso cotidiano e muitas vezes determinam nossos atos mais sublimes. Ou seja,
trata-se de interrogar – mesmo que rapidamente, a título apenas de provocação –
os consensos formados, as unanimidades que vão se estabelecendo e
naturalizando, as aparências que de tão certas ou evidentes, não nos deixam
espaço para ver o que se passa a seu redor, fazendo esquecer o que nos ensina
Saramago em A janela da alma, filme
de João Jardim e Walter Carvalho: “para conhecer as coisas, é preciso dar-lhes
a volta”.
Foi a partir dessa postura e com tais
reflexões freudianas e literárias a me guiar, que se firmou certa impressão em
relação ao caso, a qual pode ser resumida em uma única frase: precisávamos
castigar o PT.
Tomo tal frase como certeza, pois
não cabe ao psicanalista, ao menos em princípio, para que a coisa ande,
questionar a verossimilhança do que seu paciente lhe diz ou mesmo das
interpretações que lhe surgem na mente. Ao contrário, devemos escutar tudo que
é dito, sem julgar, avaliar ou medir. Assim agindo, percebi que a partir daí
minha imaginação de analista, ocupada no trabalho de ligação, de produzir
sentidos possíveis para o que escuta, deveria seguir imediatamente em nova
direção: se devemos castigar o PT, e é certo que precisamos fazê-lo, falta
enunciar o porquê.
De novo aqui, sinto-me à vontade,
e com vontade, de continuar agindo como psicanalista, ainda que ninguém me o
tenha demandado – análise selvagem,
portanto, ainda em termos freudianos (FREUD, 1910b) – e procuro responder à
pergunta, ou seja, o porquê do castigo, tentando desvendá-lo a partir
precisamente do que define o castigo proposto, ou efetivamente dado. Ou seja,
imagino simplesmente que a maioria das pessoas, leigas em direito penal como
eu, calcula a pena como retribuição ao crime, ou vingança, se preferirmos, e
assim, sabendo como queremos nos vingar do PT, talvez possamos imaginar que mal
o PT nos fez.
Em seguida, me dei de conta que a
punição imposta ao partido dos trabalhadores começa pelo seu rebaixamento ao
mesmo nível dos outros partidos. Seus políticos não são melhores do que os
outros. Mas tal rebaixamento, e castigo, vai além: não sendo mais apenas
políticos comuns, os dirigentes petistas foram agora identificados ao que no
imaginário nacional contemporâneo deve ser reconhecido como a própria essência
do ser político: aquele que traz em seu ontos
os germes da fome do poder e do apetite pelo dinheiro.
A condenação imposta pelo Supremo
Tribunal Federal funciona então para muitos como a legitimação definitiva do
fato de que os políticos de esquerda, incluindo aqueles que lutaram com o poder
militar só o fizeram, porque foram excluídos do poder, de que os críticos da
corrupção só a criticam porque dela não se locupletam.
Desse modo, a epopeia petista
legitima o mito midiático contemporâneo de que a política não nos serve pra
nada e que bem melhor seria se pudéssemos viver sem ela.
Ao mesmo tempo, tal operação de
rebaixamento moral – e pretensamente realista – do Partido dos Trabalhadores
pode agradar àqueles que, situados nos vastos campos da esquerda e aprisionados
em seus ideais foram feridos de morte por José Dirceu, quando este nos mostrou
que mesmo o poder – e os governos – de esquerda não são conquistados com a
pureza das ideias e sim com a concretude, insalubre, dos acordos, das
concessões e das barganhas, feitas estas não com seres nobres e heroicos, mas com
elementos de carne, osso e interesses, como Roberto Jefferson e outros tais.
Talvez, assim, precisemos
castigar o PT pela pretensão de ser melhor do que nós. Ou por nos mostrar que
não somos tão bons assim. Por transformar a esperança em instrumento de
marketing político. Por nos mostrar que nossos ídolos são de barro e que o Rei
está nu.
Não que o tenham feito
intencionalmente. Como talvez, também não precisemos castigá-los
conscientemente, ou pelas razões ou da forma que nos orgulhamos em admitir.
Nesse ponto, talvez valha pena
lembrar que muitas vezes atos de caráter social atendem em verdade a propósitos
narcísicos, ou simplesmente egoístas, defensivos, como, em Freud, o tipo ideal
do caridoso (FREUD, 1930), que alimenta e protege o outro com afinco, para
manter em seu inconsciente o desejo intenso de causar-lhe mal. Assim, também,
podemos nos dedicar a julgar e condenar o outro, expor as suas vergonhas (como
na sequência de charges de Chico Caruso em que os réus do mensalão aparecem
nus), para proteger as nossas próprias. Lembrando ainda de outra categoria
freudiana, a do estranho (unheimlich) (FREUD, 1919), com a qual
ele nos ensina que muitas vezes o que nos causa horror e repugnância é aquilo
que, escondido em nosso inconsciente, retorna a partir do mundo exterior,
nossos fantasmas mais secretos materializados na figura do Outro.
Desse modo, Castigar o PT seria
talvez, ainda, uma espécie de ação sintomática, descrita por Freud como
formação de compromisso entre tendências opostas presentes no psiquismo (FREUD,
1910c): condenamos a corrupção, e, portanto, o sistema político brasileiro
fundado na desigualdade, mas selecionamos como alvos da condenação aqueles que
aderiram recentemente ao esquema e de certo modo são estranhos a ele, como
Genoíno e Dirceu, pois assim, ao mesmo tempo, preservamos o mesmo sistema e as
suas elites, com a quais, de algum modo, nos identificamos. Condenamos, aliás,
aqueles que, enquanto governo, para além de eventuais transgressões, pecados e alopramentos, colocaram em questão
precisamente tal desigualdade e abriram as portas para que uma parcela da
população habitualmente excluída da cidadania, a ela tivesse acesso.
Desse modo, saciamos nossa fome
de justiça e de mudança, mas agimos de modo a reconfortar aqueles que se sentem
ameaçados pela justiça e pela mudança. Do mesmo modo que quando protestamos por
Lula não se tratar no SUS, ao mesmo tempo em que criticamos os políticos que
desrespeitam a maioria do povo brasileiro e a tratam mal, reafirmamos que o
ex-presidente pertence a esta maioria, é apenas um operário nordestino sem
instrução, um quase preto nos termos da canção de Caetano, e é assim mesmo,
mal, que deve ser tratado.
Assim, certamente precisamos
castigar o PT, precisamos constranger Lula, pois temos sede de justiça e
estamos cansados da corrupção. Mas é possível, ainda, que tenhamos também em cada
um de nós, uma pequena parte, consciente ou inconsciente, assumida ou
recalcada, no sentido popular do termo, que, como diria o Senador Jorge
Bornhausen, não vê a hora de se livrar dessa raça e de por de volta as coisas
no lugar, a começar pelos operários na fábrica e os velhos subversivos na
cadeia.
Por conta disso, agora como
cidadão e eleitor – não mais submetido à regra da abstinência que rege o
trabalho do analista e legitima seu lugar – pergunto-me por fim, e neste caso pensando
especialmente nos votos dos eminentes magistrados, se houve efetivamente uma
mudança quanto ao estatuto das provas necessárias à condenação de corrompidos e
corruptores, ou se o tipo de evidência que seria insuficiente para condenar o
filho do senador Arnon de Mello ou o Banqueiro Daniel Dantas, simplesmente provou-se
suficiente para selar o destino de políticos que não são filhos de ninguém,
bancários e banqueiros de menor estatura.
Espero, sinceramente, que seja
apenas coincidência, azar do destino ou mesmo ironia da vida que um
publicitário menor tenha sido condenado a quarenta anos de prisão, enquanto o
ilustre marqueteiro de Maluf e de outros grandes nomes da política nacional e
sul-americana, tenha sido capaz de provar sua inocência. Sob esta esperança
habita, devo confessar, o medo de que, como diria o saudoso Millôr Fernandes, nossa
justiça seja cega, tenha a espada sem fio e a balança desregulada; e continue capaz
apenas de castigar os pretos e os pobres ou quase pretos de tão pobres, ou
aqueles que, na política ou nas finanças, lançando-se com apetite excessivo,
sobre o que sempre teve dono, seja o poder político, os cargos comissionados ou
os esquemas de corrupção, tornem-se então também quase pretos e permaneçam
pobres, apesar dos milhares ou milhões que manuseiam, ao menos aos olhos da
justiça e talvez de muitos de nós que nos consideramos, agora legitimados pelos
supremos homens da lei, melhores que eles.
Referências Bibliográficas:
Freud,
Sigmund “Cinco lições de psicanálise” (1910a) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1980. Vol. 11 pp.13-58
Freud,
Sigmund “Psicanálise silvestre” (1910b) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1980. Vol. 11 pp.207-216
Freud,
Sigmund “A concepção psicanalítica de uma perturbação psicogênica da visão”
(1910c) in ______. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 11
pp.197-206
Freud,
Sigmund “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912) in ______.
Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. 12 pp.149-163
Freud,
Sigmund “Recordar, repetir, elaborar” (1914) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1980. Vol. 12 pp.193-207
Freud,
Sigmund “O estranho” (1919) in ______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1980. Vol. 17 pp.275-314
Freud,
Sigmund “Mal-estar na civilização” (1930) in ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1980. Vol. 21 pp.15-80
KOHT, Heinz Análise do Self. (1988) Rio de Janeiro:
Imago.
3 comentários:
Eduardo, rapaz,
Quando você me passou esse texto, minha primeira leitura foi, digamos assim, pragmática: ando sentindo (e outros colegas e amigos também), um clima meio udenista ou lacerdista nesses anseios justiceiros de nosso Brasil varonil e conclui que o que você escreve é particularmente útil neste momento. Relendo agora, lembrei de minha velha tese de doutorado onde, por uma abordagem sociológica, cheguei a conclusões que têm afinidades com o sentido de sua busca psicanalítica por sentidos. Seguinte: meus entrevistados eram demandados a justificar suas práticas de suborno de policiais, uso de políticos para obter habilitação, ou de amigos funcionários para suspender multas de trânsito. Em três dos quatro tipos ideais construidos, aparece um discurso de indivíduos repletos de boas intenções para com as normas impessoais de sanção à transgressão no trânsito, mas que, coitados, não as cumprem por causa da corrupção essencial de um Outro que os domina: o Brasil, uma espécie de gigante malandro que a tudo corrompe para manter as desigualdades também diante da lei. O único tipo ideal que não construiu esse discurso era composto por indivíduos das classes populares; eles justificavam suas próprias motivações para driblar a lei simplesmente por um cálculo custo-benefício, além de manifestarem uma visão fatalista da realidade social, gênero: "quem pode, pode; quem não pode se sacode".
Em suma: febres por justiça podem ser uma potência conservadora e violenta apavorante.
E isso não significa que penso (pensamos) que o mensalão seja apenas uma farsa midiática e elitista; mas que seu processo jurídico-político manifesta nossas estratégias práticas e simbólicas de conservação e/ou restauração da identificação, envergonhada mas sólida, com o imaginário-identitário gigante corrupto e perversamente desigual. Não é a toa que a ARENA quer voltar...É preciso reagir a isso, mas o PT não ajuda, né? Abraço
Eita, Eduardo, seu texto tá me dando trabalho, viu? Verificando se você tinha respondido ao meu comentário, percebi que fiz afirmações incorretas sobre um dos tipos ideais de minha pesquisa. Pensei: mesmo que isso não tenha importância pra ninguém, eu própria dizer besteiras sobre um trabalho meu, assim também é demais também!
Voilà a correção: um dos três tipos ideais que possui a identidade nacional como representação essencialista da corrupção, não a usa como justificativa de suas próprias práticas; pelo contrário, eles rejeitam ferozmente essa corrupção, são estruturalmente decepcionados.E têm uma orientação política terrível: são adeptos e/ou nostálgicos de uma ordem autoritária - a boa solução, segundo eles, para superar a essência corrupta do Brasil e do braileiro. Detalhe: sócio-economicamente, são de classe média-média, não intelectualizada. Pensei nos seus "homens de bem"/"homens comuns". Pensei na moça tomando chimarrão,parece que antiga estudante do PROUNI, defendendo a novíssima ARENA...
Ai, amigo, estamos mal encaminhados, hein...?
Tâmara, lendo seu comentário penso que seja esse um trabalho vital nesse momento: perceber certo vínculo maldito entre certo discurso moralizante e práticas nada decentes, até o ponto em que o discurso moral pode se converter em legitimação do status quo, em certa medida verdadeiramente imoral. Foi isso que tentei fazer, perceber os fantasmas que nos assombram nessa defesa intransigente da lei e do castigo.
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